domingo, 30 de julho de 2017

Memória curta

Portugal e Espanha tiveram processos muito diferentes de derrube das ditaduras franquista e salazarista, mas muito em comum no branqueamento de responsabilidades, de antes e depois, na transformação de vilões em personagens exemplares, mesmo na deturpação dos factos para consagração de vencedores.
Nos últimos tempos, a imprensa espanhola progressista tem escalpelizado o processo de transição, do franquismo para a democracia. Está cheio de episódios bem ilustrativos, ainda hoje, que só se resolverão, ao menos parcialmente, com a adoção do regime republicano, contra o mito, hoje fundamentadamente contraditado, do papel salvador de Juan Carlos no 23 de fevereiro, ele que tudo indica ter estado bem conivente com o golpe até ao seu fracasso.
La cruz y la corona”, de La Nueva Tribuna, é um artigo elucidativo.
Não é que a mudança de regime seja muito significativa, em termos de processo histórico. Mas sabemos como o nosso 5 de outubro teve consequências políticas profundas, para além da substituição da monarquia pela república (sem que eu queira endeusar o significado mitificado da República).
As transições, revolucionária a nossa, negociada a espanhola, estão cheia de contradições. As coisas também se medem pelos símbolos, como se diz nesse artigo. Adolfo Suárez era um franquista nova-via só para si e para amigos próximos. Juan Carlos tinha sido educado na nata do sistema franquista e tinha jurado os seus princípios. Fraga Iribarne, o pai do atual PP, o partido de governo, assinou as últimas sentenças de morte do franquismo.
E, entre nós, não teve grande peso a camaradagem de caserna? Ou o respeito por uma célebre personagem da oposição democrática, Almeida Santos, que protegeu o seu amigo Veiga Simão, o dos gorilas e o maior demagogo da reforma educativa marcelista a retocar a política salazarista, dando-lhe a embaixada na ONU? Ou a chamada ao Conselho de Estado de um desconhecido e jovem professor de direito e de direita, Freitas do Amaral, apenas conhecido por ser o delfim académico de Caetano e diz-se que por ele recomendado a Spínola? Ou José Hermano Saraiva, salazarista ferrenho, embaixador no Brasil? Ou Adriano Moreira, recauchutado sem se perceber como?
E os spinololista, golpistas, recuperados por Soares, até o chefe da sua Casa Militar, Carlos Azeredo. Souto Cruz, Pedro Cardoso, são homens que entram no Conselho da Revolução, por mão da ala direita do 25 de novembro, de Eanes. Mas, no rescaldo do 25 de novembro, até parecia que tudo o que era militar era a pureza da revolução.
Canto e Castro era simultaneamente conselheiro da Revolução e membro do MDLP/ELP, suspeito também no caso de Camarate. talvez não seja tão conhecido por ter sido sempre educado à responsabilidade de Salazar. Vítor Alves também esteve profundamente envolvido em relações, admitamos que apenas negociações, com a rede bombista (sigo aqui o livro de Miguel Carvalho e as minhas memórias da época).
Vasco Lourenço é hoje um símbolo, como presidente eterno da Associação 25 de Abril. Ninguém hoje sabe ao certo qual o seu papel no 25 de abril e na sua preparação (mais nesta, porque na data estava nos Açores, com Melo Antunes). Conhece-se dele a prosápia, evidente no seu livro, o assumir de todos os protagonismos relegando para segundo lugar os atores do 25 de abril, e, sobretudo, o seu papel no 25 de novembro, em que, ao que julgo, nem sequer apoiou explicitamente a célebre declaração de Melo Antunes acerca da imprescindibilidade do PCP.
Havia uma ala de esquerda no 25 de novembro? Suspeito de que só tinha um membro, amargurado até ao fim da vida pela porcaria em que teve de se meter: Ernesto Melo Antunes, de quem uma velha e tutelar amizade me impede de pensar mal. É tend~encia preservar da porcaria a memória dos grandes amigos.
Falta falar de Otelo. Custa-me, vou-me calar. Falaria não só por causa das FP-25, mas já de antes, das muitas asneiras e erros crassos, em boa parte por defeito básico de vaidade pessoal e obsessão pelo palco, que tanto puseram em risco o-processo revolucionário.
Mas vamos às recuperações. É muito útil a leitura do “Quando Portugal Ardeu”, de Miguel Carvalho, leitura apaixonante e imprescindível para informação dos mais novos e para refrescar a memória dos mais velhos. Não se fica com dúvidas sobre a implicação descarada do PSD e do CDS na rede bombista, bem como todas as tentativas militar-corporativistas para apagar os traços da intervenção militar, em particular de Mota Freitas. Transparece a coexistência dos dois 25 de novembro, o dos nove-Eanes-Jaime Neves e o de Pires Veloso. Este um homem de pouco discernimento, que nunca percebeu nada, mas que aparentemente foi apoiado pelos serviços secretos alemães, com Carlucci a apoiar os nove. Mário Soares perdido entre os seus dois amigos, a ir para o Porto, quando tudo se jogava em Lisboa. Mas, no livro, também o PS não sai nada limpo. E até é de um veterano do PS, Mesquita Machado, a iniciativa da estátua ao criminoso cónego Melo.
A memória histórica, a que nos é inculcada pelas instituições, é manipuladora, aos interesses do poder de cada momento. Vejamos, por exemplo, o Panteão.
Entre políticos, lá figuram Teófilo Braga (como político, não com escritor e pensador), Manuel de Arriaga (só depois do 25 de abril, e lamentavelmente, triste figura que facilitou o primeiro golpe ditatorial contra a República), Sidónio Pais, Óscar Carmona e Humberto Delgado. São as maiores figuras da política contemporânea? Como político/pensador, que até nem aprecio, António Sérgio? Jaime Cortesão? Afonso Costa?
Escritores, só, inicialmente, Garrett, Junqueiro (um poeta menor, apenas panfletário republicano) e João de Deus. Depois Sophia de Melo Breyner e Aquilino. É certo que Camões, Herculano e Pessoa estão em destaque nos Jerónimos. Mas Fernão Lopes e Gil Vicente (mesmo que só simbolicamente), Camilo, Eça, Saramago? Domingos Sequeira, Columbano, Amadeo? E João Domingos Bontempo, Viana da Mota, Lopes Graça? Canto da Maia? É verdade que S. Engrácia é pequena, mas arranjem um local maior e mais adequado ao número das nossas personagens “que da lei da morte se foram libertando”.
E a gesta dos descobrimentos? Só Vasco da Gama, nos Jerónimos. E Pedro Álvares Cabral, Diogo Cão ou Bartolomeu Dias (este é verdade que com os ossos perdidos no mar), que em nada lhe ficam atrás?
Também os populares, Amália e Eusébio. Mas António Silva e Vasco Santana? Ou Joaquim Agostinho?
Muito instrutiva, voltando à memória da resistência e da democracia de abril mas com evidente significado em relação ao 25 de novembro, é a lista dos condecorados com a Ordem da Liberdade. É a que mais revela as discriminações do poder político de cada fase do processo revolucionário/contrarrevolucionário/consensual-europeu.
Dos principais dirigentes político-partidários da primeira fase da revolução, receberam-na Adelino da Palma Carlos, Mário Soares, Sá Carneiro, Gonçalo Ribeiro Teles, só faltando Freitas do Amaral, mas era demais. Não constam da lista de condecorados Álvaro Cunhal, nem José Manuel Tengarrinha, nem Francisco Pereira de Moura. Do conjunto histórico de dirigentes máximos clandestinos do PCP, que emergiram à luz do dia no 25 de abril, só, para não se dizer que ninguém, Francisco Miguel.
Dos militares de abril, praticamente todos, exceto Vasco Gonçalves, Rosa Coutinho ou João Varela Gomes, entre outros exemplos do gonçalvismo. Ajuste de contas.
Das grandes figuras da resistência antifascista, muitos, principalmente da oposição democrática, republicano-maçónica, mas também, é verdade, companheiros de estrada do PCP. No entanto, é evidente que estes estão em franca minoria.
De membros do PCP, da resistência ao fascismo, só presenças simbólicas: António Abreu, Carlos Brito, Francisco Miguel, alguns outros mais da atividade pós-25 de abril.
E Aristides Sousa Mendes, só condecorado este ano? E os professores universitários demitidos nas grandes purgas? Ou os perseguidos do MUD? E os promotores dos congressos da oposição?
Já nos militares, para além das figuras indiscutíveis do 25 de abril, temos os duvidosos, sempre oscilantes ou ambíguos, por exemplo Almeida e Costa, Ramalho Eanes, Galvão de Figueiredo, Costa Neves, Sanches Osório, Rocha Vieira, etc. Mas nem sequer a título póstumo, os mortos no Tarrafal.
Depois, as figuras políticas duvidosas, em que abundam políticos partidários ativos, com participação muito reduzida ou até inventada na resistência antifascista, lista infindável, de gente que receosamente, quando muito, punham o nome num inócuo e muito defensivo abaixo-assinado. Claro que a grande maioria é do PS.
E porque nunca foram condecorados com a Ordem da Liberdade, Fernando Lopes Graça, Carlos de Oliveira, Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Eugénio de Andrade? Ou, em relação ao período de Argel, Pedro Soares ou Pedro Ramos de Almeida? Ou Francisco Martins Rodrigues ou Carlos Antunes (o dirigente do PCP em França)? Ou os heróis da reforma agrária? Ou os da luta contra o separatismo fascista nos Açores e na Madeira?
A memória é muito traiçoeira e os homens movidos por interesses mesquinhos não têm a grandeza da humildade perante os heróis.
(A imagem representa Talleyrand, o maior vira-casacas da história, que até começou como bispo)

segunda-feira, 24 de julho de 2017

A fraude oficializada das medicinas alternativas

A misteriosa doença de José Eduardo dos Santos desperta curiosidade. Sabendo que tem estado internado na Clínica Planas de Barcelona, fui ver por aí, mas sem resultados, porque a clínica, fora algumas coisas extra, é principalmente de cirurgia plástica. Coisa eventualmente importante para as novas madamas angolanas frequentadoras das lojas da Av. Liberdade, mas creio que não para o setentão presidente.
Entretanto, desviei a minha atenção para outro tema, porque a dita clínica também tem um departamento de quiroprática. É a invasão da medicina pelos bárbaros do florescente negócio (psicologia dos doentes favorece!) das “medicinas” alternativas ou complementares. Até a OMS pactua com o lóbi!
Há anos atrás, fui contratado pela Lusófona como diretor de uma Faculdade de Ciências Biomédicas, com o encargo essencial de propor um curso de Medicina. Na altura, havia lá já um Departamento de Ciências da Saúde, essencialmente reduzido a um curso de farmácia e dirigido por um professor de perfil pouco claro, passeando entre Medicina e Farmácia da UL, sem grande progresso na carreira. Por razões obscuras, de que suspeito mas não tenho provas, coisa daquela universidade, tinha grande poder.
Um dia, soube por acaso que aquele departamento rival com o meu (e o termo é exato, dado o que se passava, até em relações internacionais e novos cursos) ia propor uma licenciatura em Osteopatia. Protestei junto do administrador, Prof. Manuel Damásio, contra essa fraude científica, mas a resposta foi a de que era um negócio promissor.
Há muita gente que aceita a osteopatia como manipulação local, fisioterapêutica, do sistema esquelético. Têm toda a razão. Havia um técnico do meu IGC que, onde punha as mãos, fazia milagres em coisas osteo-articulares. É a velha e muito respeito prática dos endireitas.
Mas a osteopatia do tal curso, que melhor se devia chamar osteoterapia, é coisa muito diferente. É uma ideia global da medicina, de um médico americano do séc. XIX, segundo a qual todos os sistemas orgânicos estão articulados e se relacionam uns com os outros. Assim, cada ponto do esqueleto reflete um órgão e a estimulação de cada ponto cura uma doença cardíaca, digestiva, urológica, ginecológica. Mais, cura doenças sistémicas, como a hipertensão, a diabetes, etc. E pagam-eew quatro anos de propinas para aprender isto, uma “ciência”, como descaradamente diz o sítio da net da tal licenciatura com que discordei.
Até aqui, é folclore de incultura e de irracionalismo. É o que temos. Mas será que se acredita e se aceita no quadro das formações profissionais reconhecidas como licenciaturas essas fraudes? Ingénuo, há muitos anos, nem me passava pela cabeça. Muito menos agora, em que me defrontei repetidamente com o “rigor” da A3ES, que me reprovou sucessivamente propostas de novos cursos de Medicina, com razões ofensivas da inteligência e da cultura médica.
Mas foi essa agência de acreditação que autorizou para cima de uma dezena de licenciaturas em osteopatia, uma fraude médica e científica, e um atentado à defesa do consumidor. Não tarda a homeopatia.
A A3ES é presidida desde a sua criação pelo ex.reitor da Universidade do Porto, Alberto Amaral. Começou com Sócrates, diz-se que se ofereceu a Passos Coelho para ser reconduzido, continuou com Costa. É coisa vulgar, no círculo dos reitores que findam os mandatos. Depois de anos de administração (muitas vezes porque não eram bons cientistas) já não têm competência científica e pedagógica para voltarem a ser muito bons professores. Vão para sinecuras à margem das universidades ou para fundações que eles próprios criam ou fomentam. E todos nós, ignorantes, a permitirmos isto.

Populismo

O termo populismo teve outrora um significado preciso, ligado ao trabalhismo sul-americano dos anos 30. Foi um sistema político bem exemplificado pelo peronismo argentino e pelo getulismo brasileiro.
Essencialmente, era uma mistura de trabalhismo, apoio a uma camada socialmente pouco definida de pobres, e desenvolvimentismo nacionalista. O termo mais popularizado ligado ao populismo era o célebre “descamisados” argentinos.
No entanto, foi um movimento muito contraditório e ideologicamente muito pobre. Por exemplo, no Brasil do Estado Novo getuliano, nos anos 30, houve enorme repressão ao partido comunista e às centrais sindicais, como conta bem Graciliano Ramos nas suas “Memórias do Cárcere”. E foi Getúlio que entregou à Gestapo a mulher grávida, alemã, de Luís Carlos Prestes.
No entanto, a política de Getúlio, de certa forma continuada com o desenvolvimentismo de Juscelino, foi progressista, nacionalizante (Petrobras), anti-imperialista. E levou-o ao suicídio perante a força da classe oligarca. E também deixou um legado trabalhista, com expoente posterior em Brizola e no seu partido, hoje bastante desvirtuado.
É coisa que temos de ter em conta na América latina: os herdeiros ainda fortíssimos da sociedade colonial e esclavagista, hoje os oligarcas que detêm a hegemonia cultural e ideológica, principalmente pelo domínio de uma comunicação social, que, entrando nas casas com a telenovelas, instila também a desinformação noticiosa.
Numa recente visita ao Brasil, onde tive de ter muito contacto com uma média burguesia de quadros técnicos, e que quis contrapor com o máximo que me foi possível de visões populares, vi como o Brasil está dividido visceralmente por um racismo que se mistura com um espírito de velho colono, de uma rejeição do pobre. 
A categoria pobre nem é uma classe, é um paradigma de estratificação social. É o que dá o coxinha, o casal branco que vai à manifestação pro-golpe com a babá negra atrás a levar o carrinho do bebé.
É esta experiência real de populismo que é corretamente teorizada por Laclau, concorde-se ou não.
Entretanto, na Europa, há todo um uso abusivo do termo pela comunicação social e alguns “teóricos” pouco rigorosos.
Populismo passa a ser tudo o que se dirige às massas populares, seja em que sentido for, desde que não intermediado pelo sistema democrático institucional e tradicional. Ou com alguma demagogia e caciquismo do populismo sul-americano ou, novidade! tudo que de radical, antissistema, confronta a ordem estabelecida e apela à revolta popular. 
Claro que assim, definindo-se populismo como significando a oposição ao pântano, é fácil misturar extrema esquerda e extrema direita, com o novo aforismo de que “os extremos tocam-se”. Intelectualmente é uma aberração que nem vale a pena discutir.
Na mesma linha, aprofundou.-se a falácia ligando-a à UE. Quantas vezes os leitores já leram que populismo é tudo o que enfrenta o consenso cultural ideológico, hegemónico, da inevitabilidade da UE? São tão “populistas” Farage e Le Pen como o PCP. Querem fazer-nos de parvos?