segunda-feira, 11 de julho de 2016

A armadilha da plataforma de governo

Há dias, o BE, pela voz de Catarina Martins e aparentemente desmentindo o que disse na véspera (ou então meteu os pés pelas mãos), propôs que, em caso de sanções, houvesse um referendo, não se sabe bem a quê mas presume-se que ao Tratado orçamental (TO). Ontem, Jerónimo de Sousa propôs a convocação de uma conferência intergovernamental (CIG) da UE com o mesmo fim, o da revogação do tratado.
São ambas propostas irrealistas, sem sentido prático e objetivamente enganadoras da opinião dos eleitores. Fico menos surpreendido no caso do BE, que nos habituou a uma mistura um pouco surreal de boas posições políticas e de infantilidade ou demagogia. Pelo contrário, o PCP costuma ser sisudamente sério, mesmo que com a imagem de “cota”, angolicismo que os nossos jovens agora usam.
O que os faz convergirem neste tema? Tem a ver com o seu compromisso na plataforma de governo? Antes de responder, alguns dados para esclarecimento.
Não vou insistir na questão do referendo, que tem sido bem escalpelizada, com destaque para a crítica (com alguma dose de autocrítica) de António Filipe. A menos que se subverta tudo desde a raiz, denunciando a convenção de Viena que rege o direito internacional em relação a tratados, não podemos facilmente, sem acordo de todas as partes, desvincularmo-nos de um tratado que firmámos e ratificámos. Só por via de revolução, claro. E isto, contra o que diz o BE, seja o tratado um tratado da UE (que o TO ainda não é), seja o que de facto ele já é, tratado assinado e referendado e sem cláusulas de previsão de denúncia por uma das partes. 
Como também parece não merecer dúvidas que o referendo seria inconstitucional, para além de, muito objetivamente, depender do crivo discricionário do Presidente da República.
Lembre-se, todavia, como pessoas ligadas ao BE bem insistiram, que o PCP, agora crítico desta proposta do BE, também repetidamente a fez. É certo que com uma diferença essencial. Na maior parte das vezes, propôs o referendo, sem sucesso, como passo prévio, antes de ficarmos presos pela assinatura e ratificação dos tratados.
E o que é a CIG, agora proposta pelo PCP? Não é novidade, esta proposta. Foi feita, em relação à dívida, a proposta de uma variante de CIG no já esquecido manifesto dos 74. O LIVRE e todos os escritos de Rui Tavares, quem diria que antecipando o PCP!, defende sempre a solução dos problemas europeus vinda milagrosamente por conversão das potências do mal, reunidas em CIG iluminada pelo espirito santo. E, da mesma forma, outros movimentos europeístas, como o Plano B de Mélenchon e o DiEM de Varoufakis.
Uma CIG é um dos mecanismos previstos no Tratado de Lisboa para o processo de revisão de tratados europeus. Primeiro erro do PCP: o TO ainda não é um tratado europeu, até ao fim do período quinquenal de experiência. Não pode, portanto, ser revisto por uma CIG. A CIG não é mais do que uma reunião de representantes de todos os estados membros, para aquele fim específico.
No processo de revisão ordinário de um tratado europeu, qualquer estado membro, o parlamento europeu ou a comissão, apresenta ao conselho europeu (chefes de Estado e de governo) uma proposta de alteração (e, teoricamente, de revogação) de um tratado. Se a maioria dos estados for favorável, convoca uma convenção, com representação de várias entidades, incluindo os parlamentos nacionais, para fazer uma recomendação, por consenso, ao conselho europeu. Só então este convoca a CIG, que decide por unanimidade.
É por esta via que o PCP, sempre realista, está a prever a revogação do TO e, porventura, de todo o capitulo sobre o euro introduzido pelo tratado de Maastricht e transitado para o de Lisboa? Com a Sra Merkel a abrir uma garrafa de champanhe na votação unânime da revogação do TO? Ninguém pode acreditar. Então o que se passa?
Ponto prévio, sobre o atual modelo governamental português, com declaração pessoal. Parece indiscutível que, depois do governo anterior, troikiano e austeritário, há forte apoio à manutenção deste governo, mesmo com muitos sapos a engolir. Não é só uma questão prática; é também a concretização, para muitos milhares de antifascistas da época e seus sucessores, do mito da convergência de esquerda, mau grado a dificuldade atual de definir a esquerda.
No panorama europeu, é do melhor que se pode esperar. Nos tempos de hoje, de ofensiva capitalista mesmo em crise, não devemos imaginar que, ao elegermos um novo governo teremos grandes mudanças. As alterações globais de fundo dependem de uma grande crise económica, social-humanitária ou ecológica, num nível internacional.
Pessoalmente, sou claramente apoiante do governo e da sua plataforma de sustentação, mas em princípio e com atitude crítica. Tenho defendido que tem um grande calcanhar de Aquiles por simples razões: 1. a política de reversão da austeridade tem de ser proativa, exige crescimento, investimento e aumento da procura interna, o que não se compadece com as regras do TO; 2. um grande constrangimento ao cumprimento das metas oficiais de dívida e défice é o serviço da dívida; 3. não há o mínimo entendimento entre o PS no governo e os partidos da esquerda que o apoiam nestas matérias.
Algum irrealismo dos cenários macroeconómicos nacionais e internacionais desenhados pelo PS, numa opção de partida europeísta e respeitadora das regras, e o que a realidade já mostrou entretanto parecem dar razão a esse esquema que descrevi.
É certo que, sob ameaça do ónus de anularem a primeira tentativa de entendimento de esquerda em décadas, BE e PCP vão fazer tudo por tudo. E vai ser cada vez mais difícil, porque a reversão da austeridade tem sido escassa e porque não há uma política que faça prever mudanças significativas, nomeadamente em relação à banca, à fiscalidade, à melhoria bem visível dos serviços públicos, etc. Um dia destes, os eleitores, nomeadamente os de esquerda, vão começar a perguntar-se se a herança de Passos está mesmo a ser desfeita definitivamente e sem ambiguidades, mesmo descontada a inevitável dose de compromisso ambíguo da política.
O BE e o PCP sabem isto, e devem ter algum sentimento de estarem reféns. E, no caso da habitual oscilação do eleitorado do BE, até é bem possível que muito do eleitorado de 2015, socialista descontente, agora simpatize com a imagem de novo PS à esquerda dada por António Costa.
Volto ao tal calcanhar de Aquiles. A questão europeia (TO e reestruturação da dívida) é o ponto de clivagem que BE e PCP ainda vão segurando, mas que, com a evolução da economia nacional e internacional (e nem sei avaliar as consequências do Brexit) muito possivelmente explodirá no OE de 2017.
São lutas políticas terríveis, a exigir enorme convencimento, motivação e mobilização populares. A esquerda, refém, não o está a fazer. Está a privilegiar claramente o plano institucional. E até está a ir na corrente, incidindo mais atenções no momento, o das possíveis sanções – logo, o TO – do que no fundo, a reestruturação da dívida.
Eu compreendo a dificuldade e não queria estar no papel dos dirigentes (e militantes) do BE e do PCP. É preciso esticar a corda sem a partir e ao mesmo tempo, sabendo que os outros vão acabar por a soltar (pressão europeia), estar preparado para o consequente efeito de “cair de costas”, como se conhece do jogo da corda.
Uma coisa, no entanto, é certa. As pessoas cada vez mais querem ser informadas e poderem refletir. Não são estúpidas e a hegemonia exercida pela comunicação social neste caso não influencia, porque pera ela é coisa do “campo inimigo”. A proposta de referendo do BE e a proposta de CIG do PCP igualam-se em demagogia e como manobra de diversão em relação a um compromisso com o PS que está no fio da navalha.
A esquerda cada vez mais vai viver, nos próximos tempos, enormes desafios políticos, estratégicos e táticos. Apoio esta solução governativa, desejo-lhe o melhor, mas tenho muitos receios.
NOTA – Como habitualmente, dou notícia no Facebook destas entradas no blogue. Pelo perfil de centenas de leitores meus no FB, sei que são militantes ou simpatizantes do PCP e do BE. Este é um caso em que fico com esperança em que esse interesse pela minha escrita seja pela independência, objetividade e frontalidade das minhas críticas aos dois partidos, a quem também elogio quando deve ser.