quarta-feira, 8 de junho de 2016

A moda das primárias


As primárias para eleição dos líderes partidários estão na boca de cena da discussão política. Há dias, foi assim reeleito António Costa. Há também pouco tempo, foi assim eleito Alberto Garzón coordenador da Esquerda Unida espanhola.
São processos muito diferentes, embora com aspetos comuns a discutir (mediatismo, protagonização do líder, subalternização das equipas, problemas de financiamento, etc.). Nos EUA, com os seus partidos muito atípicos em relação à tradição europeia, são coisa consagrada. Na Europa é que é recente e assume muitas variantes que afetam muito a discussão.
Primeiro. A votação é restrita aos membros do partido, aberta a simpatizantes e em que termos, ou aberta a todas as pessoas? A restrição aos membros do partido respeita a coesão interna e, se com base em moções programáticas, não afeta em princípio a discussão ideológica. No entanto, como veremos a seguir, pode afetar o princípio da direção coletiva, valorizando a priori o líder.
A abertura a simpatizantes, como fez o LIVRE e o PS na eleição anterior do secretário-geral, é aparentemente simpática e sinal de espírito democrático, mas exige uma noção bem definida do conceito e responsabilidade do simpatizante. Aliás, nem é coisa nova. O PCP sempre cultivou esta figura, embora sem tradução estatutária e muitas vezes só com significado instrumental. Curiosamente, o BE não a prevê nos seus estatutos, mas não sei se, na prática, o BE dá relevo significativo a simpatizantes. Deixa margem de manobra à participação. Eu, pessoalmente, não me importaria de ser reconhecido simultaneamente como simpatizante do BE e do PCP, com direito a opinião bem ouvida e a discordâncias amigáveis.
Por outro lado, a abertura a simpatizantes é aparentemente ilógica. Afinal, porque há-de ter o mesmo direito de intervenção partidária, até no momento decisivo da escolha do líder, quem não assume deveres, não paga quota, não participa regularmente na construção da posição política identitária? Ou, na escolha de outros dirigentes ou candidatos a cargos policias, se baseia apenas em curtos sumários de candidatura, sem verdadeiro conhecimento dos candidatos? A democracia à moda e aparentemente bonita não significa obrigatoriamente a seriedade e fundamento da democracia. Modas vão e vêm.
Já a abertura a todos os eleitores, como em alguns estados americanos, é perversa, porque, em alguns casos, simpatizantes de um partido podem usar as primárias de outro para influenciar a escolha dos dirigentes. Há casos bem conhecidos.
Segundo. A primária serve para votar um nome ou uma moção? Em Portugal, o caso do PS é ambíguo. Pela mediatização justificada pela importância do partido, ninguém liga ao documento político e é a personalidade do candidato que manda. Aliás, o processo está invertido: primeiro é eleito o secretário-geral e só depois, em congresso e com o peso da autoridade do eleito, é que é aprovada a moção política.
Já no LIVRE, por exemplo, nem sequer era preciso uma moção, bastando meia dizia de linhas de proposta política. Não é de estranhar que os resultados tenham obedecido linearmente à projeção mediática dos candidatos.
No caso espanhol, o que foi sujeito a votação primária, por todos os militantes da IU, foram plataformas políticas, mas era óbvio que se votava era no principal proponente. Quem elegeu Garzón muitas vezes nem terá lido a sua proposta.
Terceiro. Como se garante a responsabilidade coletiva? Na tradição leninista, hoje ainda em vigor no PCP, os dirigentes são eleitos em cascata. Os dirigentes propõem ao congresso o comité central, este elege os órgãos de topo e o secretário geral. Garante-se a manutenção do estilo coletivo de direção, mas é muito difícil qualquer renovação. Na prática, funciona em circuito fechado, em ciclo vicioso. É certo que funciona aqui o “espírito de partido”, muitas vezes confundido, por leigos, com unanimismo norte-coreano.
Pode-se dizer que, nos tempos atuais, a importância da direção coletiva está diminuída e que principalmente a mediatização destacou a figura individual do líder. É também verdade que a autoridade interna do líder é crucial, muitas vezes ancorada no seu papel no impacto mediático do partido. É um poder moderador e congregador de vontades, em muito contribuindo para o compromisso de facções e convergência de posições. No próprio PCP, é evidente como foi importante esse papel de Cunhal.
Também se deve distinguir partidos “ideológicos” e partidos populistas, “catch all”. Estes, como o Podemos em Espanha, são principalmente partidos de ação eleitoral e conquista de posições institucionais, muito mediatizados, com uma base de apoio muito individualista e muito sensível às ofertas de escolha “democrática” (muitas vezes viciada pela mediatização ou pelo maior acesso à internet e redes sociais). A experiência mostra nestes casos uma fraqueza do debate interno e elaboração política, circunscrita a um núcleo de académicos e “tertulianos” iluminados, em redor do líder consagrado pela massa Não admira que Laclau e a sua teorização do populismo/liderança estejam sempre a ser invocados. 
Note-se também que, no caso espanhol, a Assembleia da Esquerda Unida elegeu o seu líder e respetiva direção por um sistema misto de primárias e eleição em assembleia. Tem os problemas que referi, mas é de atender a que se trata de um partido/frente, essencialmente eleitoralista, coligação de vários partidos que, para outros efeitos, mantêm a sua autonomia. Assim, é importante garantir nos órgãos de direção a representação proporcional dos partidos constituintes. Mas já o maior membro da IU, o PCE, continua a ter para si próprio um mecanismo de escolha de direção tradicional nos partidos comunistas.
Pessoalmente, e com o direito que se tem de opinar sobre o funcionamento interno dos partidos, considero negativo esse procedimento tradicional, como o do PCP.  Dir-me-ão que isso é marxista-leninista e portanto no DNA do partido. Mas eu não sou leninista adepto do centralismo democrático dos tempos da revolução russa. Preferia que o comité central, como a mesa do BE, fosse eleita por representação de moções. É claro que há sempre o risco da personalização da direção, mesmo que as moções não identifiquem claramente o líder. Mas claro que tudo se sabe…

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