domingo, 24 de abril de 2016

A solução portuguesa de governo anti-austeridade (I)

A atual solução governativa portuguesa já leva o tempo suficiente para uma análise com suficiente fundamento. São de salientar alguns elementos essenciais para essa análise. Primeiro foram as leis sobre a reversão dos cortes salariais e sobre a sobretaxa. Depois, o OE2016. São exemplos muito interessantes das potencialidades do novo ciclo político aberto pelos acordos entre o PS e os partidos à sua esquerda. No âmbito dos acordos, PCP e BE aceitaram o compromisso com as propostas do PS, apesar de distantes das suas próprias posições.
É um exemplo da originalidade desta nossa conformação política de governo. Em vários países europeus, há governos de coligação mas baseados numa plataforma comum pré-estabelecida. Em Portugal, não há um programa comum, nem sequer uma plataforma táctica programática. O programa de governo é o do PS, concretizável, a cada caso, pelo apoio derivado dos acordos. Isto deixa uma larga margem de manobra para salvaguarda da identidade do PCP e do BE, que até se podem valer da manifestação de discordância com entendimentos entre o PS e o PSD, como aconteceu no caso BANIF.
Antes do mais, é justo salientar que neste novo ciclo político houve principalmente duas partes (sem desprimor pelo BE, mas porque estava menos crispado) que souberam vencer velhos antagonismos: Jerónimo de Sousa e o PCP, e António Costa e o PS. Refiro ambos porque, ao contrário da cassete habitual, a responsabilidade pelo antagonismo entre os dois partidos, desde há décadas, é mútua (ficando-me por aqui, para não ter de quantificar relativamente essas responsabilidades).
Não quero dizer que este sistema de “geometria variável” não tenha fragilidades. O funcionamento do sistema acaba por ser a resultante de diversas contradições: dentro do PS, entre os parceiros do PS e entre o PS e esses parceiros.
Quanto à primeira, é bem sabido que há uma ala do PS, encabeçada por figuras de proa entre os notáveis do partido, que preferia um bloco central. No entanto, tudo indica que António Costa tem controlado a tensão interna e dificilmente será por esse lado que o entendimento à esquerda sofrerá riscos.
As contradições dentro da frente de apoio ao governo (além do PS), e mais notoriamente entre o PCP e o BE, também são bem conhecidas e tenho para mim, contra o que dizem muitos comunistas, que agravadas pelos melhores resultados eleitorais do BE em relação ao PCP (CDU) em duas eleições seguidas, legislativas e presidenciais. Não é agora ocasião para uma análise comparativa entre os dois partidos, o que farei em outra nota, mas, tendo um eleitorado de base muito diferente socialmente, é-lhes necessário um discurso, propostas e mesmo estilo que fixem e alarguem esse eleitorado e que mantenham a sua imagem identitária. De certa forma, isso fragiliza a plataforma de apoio ao governo, porque cada um dos partidos quer poder estar em condições de aparentar maior distância crítica no que não está abrangido pelos acordos. Pode ser quase ver-se quem é mais papista do que o outro e o papa.
Parece indiscutível que a maior contradição é entre as políticas – de crescimento e emprego, anti-austeritárias e de reposição dos prejuízos sofridos desde o memorando de 2011 – dos dois partidos de esquerda transformadora e do PS, embora todos concordem aparentemente com esses objetivos.
Essencialmente, há uma base consensual: de que, sem desdenhar o crescimento equilibrado das exportações, o principal fator será o crescimento da procura, do mercado interno. dito isto, muito fica de diferenças. 
O BE e o PCP, embora com nuances diferentes, acentuam a necessidade de resolver um dos principais componentes do défice orçamental e da incapacidade de investimento, a saber o serviço da dívida, defendendo a imediata renegociação da dívida, para a sua reestruturação. Mais o PCP do que o BE (ou este só mais recentemente e com menor ênfase) admitem que isso possa passar pela saída do euro. Da mesma forma, opõem-se ao Tratado orçamental, não sendo todavia claro até que ponto, nas respetivas propostas, poderia ir a desobediência ao tratado.
Como é público e notório, o PS só aceita falar em renegociação da dívida num quadro institucional europeu, multilateral; votou pelo Tratado orçamental e continua a defendê-lo, mesmo que falando, de forma pouco compreensão, na sua “aplicação inteligente”; e tem a saída do euro como tabu, sem margem sequer para o debate.
Esta é uma contradição essencial, a que fez soçobrar tristemente a experiência inicial do governo de Tsipras: querer uma política anti-austeritária expansionista e, ao mesmo tempo, manter um compromisso integral com o Tratado orçamental e com o espartilho da moeda única. 
Ainda por cima, com uma Comissão Europeia inteiramente dominada por uma aliança entre a direita neoliberal e uma social-democracia em miséria ideológica e com um banco central e a prática totalidade dos governos alinhados com o pensamento único neoliberal.
Os acordos para o apoio ao governo foram hábeis na ultrapassagem destas dificuldades, desde o início. A plataforma de apoio foi desenhada “à la carte”, com acordos bipartidários separados abrangendo pontos diferentes, em que cada partido ficou com alguma margem de manobra, para a opinião pública e o eleitorado, para poder exercer alguma oposição, mas, no conjunto dos acordos, cobrindo-se uma vasta convergiria programática a curto prazo. 
A não participação do BE e do PCP no governo também lhes é benéfica, bem como ao PS, protegendo-os de receios de excessiva cedência, por parte de setores dos seus militantes; e, por outro lado, minimiza ataques da União Europeia a uma nova experiência de governos de esquerda, sendo difícil para ela considerar assim um governo constituído apenas por membros de uma formação europeia “bem comportada”. 
Mesmo assim, essa habilidade não obsta a que as referidas dificuldades constituam o maior risco possível para a estabilidade e mesmo sustentabilidade do governo. Os acordos pressupõem a viabilidade das medidas de combate à austeridade, refortalecimento do Estado social, desemprego, crescimento, etc., com base na expetativa de maiores receitas do Estado derivadas do maior rendimento das famílias e, acessoriamente, das empresas. São quantificadas nos diversos cenários económicos que a equipa de Mário Centeno tem elaborado, mas que, com o passar do tempo, têm vindo a ser revistos em baixa ou a ser apontados como pedindo cautela. Muitos comentadores, apoiantes do governo, tendem a esquecer este problema, para não acrescentarem a dúvida sobre a força dos acordos.
Por outro lado, há a incógnita europeia. O que interessa mais aos poderes centrais, em relação ao governo? É visível a manutenção, em lume brando, das ameaças, mas também se pode pensar que, tendo já sido dada a lição à Grécia, não interessa forçar demais as coisas e abrir nova frente, tanto mais que a UE está neste momento com problemas graves, nomeadamente o do referendo britânico, o da instabilidade dos mercados financeiros e o dos refugiados. No entanto, tudo isto é incerto e só o tempo dirá. Por exemplo, pode simplesmente bastar dar “ordem” à única agência de “rating” que ainda nos segura, a canadiana DBRS.
Com tudo isto, a possibilidade de uma falência da plataforma de governo mudou de consequências. Inicialmente, podia pensar-se que seria o PS o afetado e que o BE e o PCP poderiam sair relativamente incólumes. Parece-me que não. Para os eleitores desse amplo espetro, desde o BE ao PS, a falha do entendimento seria provavelmente penalizante para todos. 
Isto pela ideia de incapacidade dos dois partidos de esquerda transformadora em puxarem o PS; pelo desgosto da negação do sonho de muitos de “convergência da esquerda”; por vir acima, para alguns, a ideia agora silenciada de que esses dois partidos cederam demais a um PS apenas um todo nada mais social-democrata (ou menos social-liberal); mas também, pelo contrário e para muitos outros, o castigo pelas promessas abertas, com aval dos acordos, de correção dos sacrifícios sofridos com a política de austeridade.
Isto leva a outra questão: têm aqueles dois partidos possibilidades de recuperação desta via política? Deixo de lado a diferença de situação entre os dois, cada vez mais visível pelo maior compromisso do BE na colaboração com o PS, colocando principalmente discordâncias marginais e secundárias e desviando para iniciativas insignificantes e “folclóricas”, como o caso ridículo do género gramatical tornado questão policia de fundo.
Julgo que, mau grado a penalização que acabo de referir, o recuo dos dois partidos para posições pré-acordo não é o fim do caminho. O problema está em que, para haver a convicção geral de que foi apenas uma derrota tática, 
é necessário mostrar que há uma linha estratégica definida e uma nova proposta de alternativa tática
Em boa parte, se houver desde logo a ideia de que esta solução de governo teve muito de defensista, de mal menor, para alívio do garrote que se vinha a apertar ao povo português e à economia nacional.
Um dos caminhos essenciais é a abertura de perspetiva de maior participação sócio-política. Como já deixei bem claro, a aliança tática que hoje suporta o governo foi um esquema muito hábil, mas que deixa muita coisa em aberto, principalmente em termos de consolidação futura e de contribuição para uma definição estratégica para além deste ciclo político. Está aberto o caminho para uma frente popular? Uma frente interpartidária, à maneira clássica de Dimitrov, ou um movimento mais amplo e flexível, incluindo novos movimentos sociais?
Em contraste com a habilidade da atual solução governativa, Portugal está a ser exceção na reconversão política de esquerda do sul da Europa. Estamos moles e apáticos, sem ideias novas. 
Na Grécia, o Syriza reanimou o espírito da social-democracia, espírito embora traído pela derrota de Julho, e não se vendo ainda uma nova alternativa de esquerda, com a Unidade Popular ainda em embrião e demasiado centrada na questão do euro. Na Itália, é a estagnação à esquerda. Também em França, em que a Frente de Esquerda não rompe a iniciativa de Plano B, de Mélenchon e outros, não tenha tido apoio popular significativo. Mais interessante é o caso espanhol, em que se confronta uma movimentação marxista moderna, a Esquerda Unida, com um fenómeno populista pós-marxista, o Podemos. Fica para outro artigo desde já prometido a discussão da esquerda espanhola.
Uma da consequências da concentração de atenções na tática baseada na solução de governo, é que tudo se coloca a nível partidário, mas não havendo à esquerda (à esquerda do PS) uma modernização de pensamento, pode ser muito difícil abrir perspetivas de uma alternativa.
Parece ser a maior dificuldade a uma renovação política. Parece indiscutível a debilidade da ideologia e da cultura filosófica-política dos dois partidos de esquerda radical, porque do PS, partido aparelhístico, “catch all” e clientelista, nem vale a pena falar. 
A situação do BE e do PCP é distinta: o BE não tem referenciais teóricos, não obstante os seus ideais genéricos, o que até pode ser uma janela de refrescamento, mas também um convite ao ecletismo e indefinição cultural. O PCP define-se sem ambiguidade em termos ideológicos sistemáticos, mas o seu marxismo-leninismo, uma codificação de cartilha, anula o rico potencial de constante renovação teórico-prática do verdadeiro marxismo, o clássico e os seus muitos desenvolvimentos modernos.
Que fazer? Caracterizada a situação neste artigo, fica para o seguinte a reflexão sobre caminhos possíveis para a alternativa política, para uma esquerda transformadora e com respostas à sociedade atual, a nível nacional e internacional.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

As duas faces da medalha militar

É falacioso o argumento, muito usado pelos militares, da especificidade institucional em relação à homossexualidade masculina, agora em foco com o caso do Colégio Militar (CM) e da demissão do Chefe de Estado Maior do Exército (CEME).
As relações afetivas íntimas podem criar problemas institucionais, funcionais, em certas atividades, principalmente se envolverem pessoas com subordinação hierárquica uma à outra, tão importante nas forças armadas. Mas não só: a própria ciência – em que agi durante tantos anos – é uma atividade que mistura uma forte articulação horizontal, de colaboração, e uma necessidade de liderança, com relações verticais. Por isto, é frequente que instituições científicas, claro que autorizando a contratação de cônjuges, até a favorecendo como segurança da família, não permitirem que trabalhem na mesma unidade e no mesmo tema de investigação. Sei bem como isto é sensato.
No caso das forças armadas (FA) acresce à dependência hierárquica normal, como conhecemos em quase todas as atividades, a obediência e a disciplina estrita. Não é difícil aceitar que uma relação conjugal ou mesmo uma ligação amorosa possam dificultar a prática dessas características funcionais da vida militar. Outra dificuldade, nesses casos, pode ser a suspeita, mesmo que infundada, de falta de isenção, coisa muito importante no comando respeitado de homens.
Simplesmente, o CM não é uma unidade militar, não se organiza e funciona em lógica de preparação para o combate. Portanto, sob a capa de preparação militar e educação em valores, está-se a incutir em jovens o hábito de atitudes profissionais, confundidas com valores, e de facto a treinar a maioria, que não seguirá a carreira militar, a serem civis-soldados, com comportamentos que, se aceitáveis ou mesmo necessários na vida militar, não o são de todo, pelo menos da mesma forma, na vida civil. 
Depois, trata-se de jovens em idade em que muitas vezes a orientação sexual ainda tem alguma ambiguidade e a sua punição pode ser um ferrete para a vida, Para além da ilegalidade e imoralidade da segregação e punição, a expulsão do CM é certamente tida como vergonha, em particular tendo em conta a cultura própria de quem ou os seus pais escolheu tal colégio invulgar.
Por outro lado, tudo o que escrevi acima sobre os possíveis problemas militares de uma relação conjugal ou amorosa vale para qualquer relação, hetero ou homossexual, incluindo entre lésbicas, agora que já há tantas mulheres militares. Limitar o problema à homossexualidade masculina (e agora o CM até também tem alunas) não traduz uma preocupação militar justificável, mas sim pura e simples homofobia.
Outra falácia é a da necessidade de respeitar a “sensibilidade militar”. É coisa que precisa de ser escalpelizada. Essa sensibilidade é compreensível quando significa a preocupação dos militares em verem reconhecida, por exemplo pelo poder político, a especificidade da sua profissão. Na maioria dos casos, todavia, tende a ser apenas manifestação de espírito de corpo ou de casta.
Pode mesmo chegar a coisas que, mesmo que legítimas, dificilmente deixariam de ter consequências para outros servidores do Estado, como o apelo à recusa concertada de todos os generais de aceitarem a nomeação como CEME. Afinal, um tiro de pólvora seca, já que o novo CEME foi nomeado em prazo curto após a demissão do anterior.
Claro que uma desautorização pública de um militar tem consequências muito negativas, mas também a de qualquer dirigente político e da administração pública. Mas foi desautorizado o ex-CEME? Entendo que não, que foi ele que não se deu ao respeito quando, durante dias depois das inconcebíveis declarações públicas do sub-diretor do CM, ficou silencioso, podendo daí deduzir-se a sua conivência e concordância. O Ministro fez o que devia, e que se teria evitado se o CEME também tivesse feito o que devia. O Ministro, pelo que li, não ameaçou demitir o CEME nem de forma alguma o repreendeu. Limitou-se a interrogá-lo sobre o que se passava no CM e sobre o que o CEME pensava fazer.
Falou-se também, até eu me referi a isso, de inabilidade do ministro. Claro que todas as sensibilidades têm aspetos políticos que, taticamente, devem ser tidos em conta, por simples razão de eficácia. Mas isto vale também para todas as profissões com peso mediático ou com capacidade de influência, de pressão policia ou sindical: juízes, policias, professores, etc. O que esta atenção prática à “sensibilidade” não pode ser confundida é com receio, com limitação do dever de atuação de um governante.
Nem tudo o que é essa sensibilidade é razoável e muito menos se pode converter em fundamento mais ou menos assumido de corporativismo. E, sendo uma questão cultural (e não de essência da “psicologia dos militares”, como diz o comunicado da Associação 25 de Abril), pode sempre e deve ser analisada e corrigida, com outra cultura, ainda que com respeito pelas especificidades funcionais (e não psicológicas…) da vida militar.
Finalmente, lamento que a minha Associação 25 de Abril, que não representa militares nem sequer os capitães de Abril, fundadores, é certo, mas agora seus membros como tantos civis, tenha vindo a imiscuir-se neste assunto corporativo. O seu presidente é um militar respeitado, a quem a democracia muito deve. Individualmente e como militar reformado, já se tinha pronunciado, como é seu pleno direito. Não o devia ter feito em termos da Associação.
Além do mais, são muito lamentáveis os termos do comunicado. A questão para a direção da A25A resume-se a uma manipulação pelos lóbis (presume-se que o lóbi gay ou talvez um desconhecido lóbi anti-CM), com aproveitamento partidário. Tudo indefinido, sem dar o nome às coisas, hábito nosso tão vulgar e detestável. E não há o lóbi, ou irmandade de proteção mútua, dos ex-alunos do CM?
Pior é dizer-se que as declarações do subdiretor do CM “podem ser” (ou são?!) “imprudentes e não politicamente corretas”, assim como terem sido deturpadas. É falso; não houve qualquer deturpação, como se vê inequivocamente pela leitura da entrevista do Observador.
E, a propósito: pode um subdiretor de um estabelecimento militar conceder entrevistas a um jornal sem autorização superior, desde logo do diretor? Não é apenas questão militar; eu fui diretor duma instituição pública e não aceitaria que o meu subdiretor falasse do instituto sem primeiro me consultar. Não o proibiria, mas podia eventualmente tirar consequências em termos de confiança.