sábado, 19 de setembro de 2015

O Syriza no seu labirinto

Muito se diz que não somos a Grécia. Começa logo por o candidato a poder contra a direita retintamente neoliberal e troikiana, o Syriza de antes de julho não ser equivalente ao PS como partido de governo. No entanto, a coincidência das duas eleições suscita algumas análises comparativas interessantes.
Mas o que se espera destas eleições gregas (e, infelizmente, das nossas eleições)? O fim de semana de “negociações” brutais que levaram à chamberlainiana derrota de Tsipras fez explodir a esperança numa mudança progressista no quadro europeu, que o Syriza defendia, e determinou rigidamente o curso da política grega para os próximos anos, seja qual for o partido que vá governar. O que se vai passar neste fim de semana é uma pequena agitação no parlamento grego para que ele reflita esta realidade.
Como é que se apresenta o Syriza? Só agora consegui ler, com muito interesse, o programa do Syriza para as eleições de 20 de setembro. Como li num comentário irónico no Facebook, é preciso outro programa para além do 3º resgate? É verdade, foi como o PSD/CDS-PP em 2011.
Por isto e muito mais que se segue, a situação eleitoral grega é um marasmo. Tsipras desbaratou grande parte do seu prestígio e aguenta-se porque os outros são piores e não tem uma oposição forte à esquerda. A intromissão dos media e governantes estrangeiros não se vê. A campanha está morna, apesar do aliciante de captar uma considerável percentagem de indecisos. Não há dramatização, como se vê pelos juros baixos da dívida.
O labirinto
Por fatores objetivos, políticos e económicos, mas também muito por consequências das posições do Syriza (o Syriza de Tsipras), a situação atual na Grécia é um segundo labirinto de Creta. 
Primeiro, as contradições do Syriza. Até 2012, era uma coligação flexível, não centralista, com bom funcionamento democrático interno. Transformando-se em partido, para poder beneficiar do bónus ao partido vencedor (que não abrange as coligações), tornou-se mais rígido, com duas correntes (a de Tsipras, com cerca de 70% de delegados e a Plataforma de Esquerda) e mais centralizado, com maior poder do líder, eleito diretamente pelo congresso e pouco responsável perante o comité central (recorde-se que em toda a governação do Syriza, até à capitulação de julho, Tsipras nunca convocou o CC).
Segundo, também a caracterização política do Syriza é ambígua. O Syriza, nas eleições de janeiro, beneficiou de uma imagem de esquerda radical, a despertar a simpatia e depois, nos meses seguintes, a solidariedade de muita gente europeia de esquerda. Solidariedade merecida pela sua luta na UE, mas que exige ponderação. Se se pensar na corrente majoritária de Tsipras, desde 2012 que havia um desvio deslizante para posições moderadas, que só pareciam manter a chama de esquerda radical por o Pasok se ter convertido e degradado em cogestor do 2º programa de resgate e por toda a social-democracia europeia estar alinhada com o neoliberalismo. O Syriza era uma luz de esperança. No quadro conservador europeu, um partido com um programa genuinamente social-democrata, à anos 50, era uma diferença marcante.
No entanto, de facto, o programa de Salónica, das eleições de 2015, era fundamentalmente de natureza assistencialista (em boa parte levado à prática) e antiausteritária, mas não radical. Por exemplo, não tocava no sistema bancário nem previa nacionalizações. Muito menos previa a saída do euro que, segundo sondagens era rejeitada por larga maioria do eleitorado. Este programa corresponde ao perfll típico de escolha política de um eleitorado social-democrata e, de facto, o enorme aumento de votos do Syriza em 2012 e depois em 2015 não é por transferência da ND nem do KKE mas sim do Pasok.
O nó górdio sempre foi exatamente a questão do euro (e mesmo a da reestruturação da dívida, a que o Syriza só deu importância recentemente), a esbarrar na euforia romântica e obstinada de Tsipras, como se viu na sua campanha para presidente da Comissão europeia. Como se sabe hoje, recusou mesmo o plano de Varoufakis para um sistema bancário paralelo, que nem significava obrigatoriamente a denominação em dracmas das novas contas.
Prometer lutar contra a austeridade mas por conversão dos poderes europeus, sem afrontar a eurolândia, foi estratégia ganhadora para as eleições mas depois perdedora na prática da governação e no confronto com os poderes neoliberais.
O programa e a governação do Syriza assentaram numa série de equívocos. Era seguro que as medidas antiausteritárias e o serviço da dívida exigiam recursos impossíveis no quadro do resgate e, porventura, da permanência no euro. Era a célebre questão do mandato, sim contra a austeridade, não à saída do euro. Simplesmente, como cá, tem muito de quadratura do círculo.
O primeiro erro de Tsipras foi ter considerado que a sua relação com a UE era económica. De facto, o que e UE não admitiu, por princípio, não foi uma ou outra nova medida económica ou qualquer adiamento ou revisão do resgate. Foi a própria existência de um governo de esquerda no sacro império. Por isto falharam as esperanças ingénuas de Tsipras na França e na Itália, alinhadas com o poder hegemónico alemão.
Também a esperança na Rússia foi vã. A Rússia não tem recursos e, no conflito ucraniano, não lhe convém outra frente de tensão com a UE.
Finalmente, o maior equívoco foi inegavelmente o do referendo e do significado poliico e social do campo do não. Discutiu-se muito o acerto da convocação do referendo. Se fosse seguro que Tsipras e o seu círculo (em boa parte de ex-Pasok) desejassem sinceramente o não, tudo fazia sentido: o referendo era, com o resultado que teve, a rejeição firme da política troiana, tendo como fundo, por grande propaganda da UE, a eventualidade de, em consequência, haver o grexit.
Mas não é seguro que Tsipras tenha considerado esse significado dos 62% de nãos. Não faz sentido que, logo na semana seguinte, tenha apresentado a Bruxelas um plano mais gravoso do que o que tinha sido apresentado pela Troika e que Tsipras tinha sujeito a referendo. Muito menos a capitulação do fim de semana seguinte. É novamente a questão já referida da quadratura do círculo. Quando Tsipras afirma que não gosta do plano de resgate e que ele é inaplicável, mas que não há alternativa para salvar a Grécia, está a dizer que não alternativa na sua cabeça e na sua vontade.
A desilusão
Tudo isto conduziu a uma grande desilusão, com reflexos eleitorais. Não se veem sinais de um retorno significativo de votos à origem, o Pasok, nem a ND está a aumentar. Também a Unidade Popular, cisão do Syriza, não parece romper. A grande perda do Syriza de Tsipras parece ser para os indecisos (20%). Como o voto é obrigatório (embora sem efetiva concretização da obrigatoriedade), é possível que muitos acabem por regressar ao Syriza, do mal o menos.
A mesma desilusão e perplexidade no mundo da esquerda. Por um lado, mantém-se a solidariedade com um povo em luta e com o seu governo que, durante meses, afrontou o que de mais reacionário tem hoje a Europa. Por outro lado, a tristeza com a perda de uma referência, mesmo o fator político negativo a nível nacional, como quando se vê, entre nós, a direita a tentar esgrimir Tsipras contra o BE. 
No grupo parlamentar europeu a que pertence o Syriza, a Izquierda Unida e os Die Linke não se pronunciaram; o secretário geral do PCF desculpou e compreendeu Tsipras mas logo a seguir o seu grupo parlamentar votou em bloco contra o plano de resgate na Assembleia Nacional Francesa. Também em França, Jean Luc Mélenchon criticou-o desabridamente. Em Portugal, o BE teve o pretexto da nossa campanha para não participar na grega, mas Catarina Martins acabou por declarar explicitamente que não concordava com Tsipras. Só Iglesias, com a sua ambiguidade e oportunismo, é que continua a dar o abraço ao líder grego.
Com tudo isto, chegamos à demissão de Tsipras e à convocação de eleições antecipadas. Foi coisa muito criticada pelos analistas e pelos eleitores, mas foi uma boa jogada política, do ponto de vista de Tsipras. Viu-se livre dos deputados contestatário da Plataforma de Esquerda e obrigou-os a formar o novo partido (Unidade Popular, UP) que, eventualmente, não ultrapassará a barreira dos 3% para entrar no parlamento. Por falta de alternativa, reforça  sua posição numa coligação possivelmente liderada pelo Syriza. Finalmente, antecipando as eleições, escapa à penalização pelos efeitos do resgate, que só se vão fazer sentir daqui a meses. É legítimo pensar-se que, com as eleições, Tsipras pretendeu legitimar a sua capitulação e retirar significado ao referendo, por esquecimento.
Que cenários? 
A última sondagem à hora em que escrevo (Metron para a Antena News), quando os indecisos já baixaram para 9,7%, dão um empate técnico entre o Syriza (24,5%) e a Nova Democracia, ND (24%), os fascistas da Aurora Dourada 5,4% e o KKE, o Pasok e o Potami cada um entre 4,5 e 5%. Os atuais aliados do Syriza não entrariam (menos de 3%), bem como a UP, apesar de esta já ter estado nuns confortáveis 4%.
Com estes números, e tendo já Tsipras e Meimarakis declarado que o Syriza e a ND não fariam coligação, resta ao Syriza, se primeiro partido e beneficiando do bónus de 50 deputados, procurar maioria com um pequeno partido à sua direita, seja o Pasok seja o Potami, ambos partidos que o apoiarão na gestão do programa de resgate. Não é cenário muito entusiasmante para quem se queira de esquerda. A alternativa, uma coligação com a UP (se esta entrar no parlamento) seria absurda, tão pouco tempo depois da rotura.
O segundo programa de Salónica
Finalmente, algumas notas sobre o programa do Syriza, o novo programa de Salónica. Estranho que esteja a ser tão pouco discutido, podendo interpretar-se isto como desejo de “não bater no ceguinho”. Tendo em conta o que se chamou atrás o labirinto em que se perdeu o Syriza, com as suas contradições, também o programa é contraditório e, principalmente, apologético. Continua a afirmar-se que não havia alternativa à capitulação e, em relação ao centro das negociações com os credores, passa-se a acentuar como limitações de uma política orçamental a dívida e a exclusão do mercado de capitais. No entanto, nada se diz sobre a resolução destes problemas a não ser no âmbito do resgate e, quanto à dívida, apenas com base na posição vaga dos credores registada no anexo.
O programa é de uma no cravo e outra na ferradura. Começo por acentuar, por exemplo, que se propõe um programa governamental ambicioso, de medidas sociais e humanitárias, quando, obviamente, o único programa possível será a aplicação e gestão do 3º resgate. Fico em dúvida fundamentada sobre se o Syriza do Tsipras fraco e eurofilicamente submisso pode “por em prática um programa de libertação do neoliberalismo e da austeridade, iniciar uma radical transformação democrática do Estado, enquanto encontra soluções para mitigar as consequências do acordo”.
Apesar de uma atitude aparentemente humilde, o programa insiste em que não havia solução alternativa para o dilema, quando os bancos estavam sob controlo de capitais, a assistência de emergência (ELA) do BCE suspensa e havia a ameaça de não aceitação de títulos de dívida grega como colaterais. Assim, continua a dizer o Syriza, o dilema não era memorando ou dracma mas sim memorando (quer com euro quer com dracma, segundo Schäuble) ou insolvência desordenada.
Confrontado com questões essenciais – é o pior memorando de todos? acelera um programa de “ajustamentos estruturais” que mantém a pobreza e a crise humanitária? – o programa considera que isto são exageros políticos, embora compreensíveis (o programa esforça-se sempre por ser simpaticamente compreensivo e humilde). Refugia-se na principal alegação de que se foi até ao limite da luta no âmbito da relação de forças na Eurozona. TINA, não há alternativa.
Dá-se também grande destaque a aspetos menores (a relativa vitória do governo grego em relação aos défices primários) ou em relação a questões formais, facilmente ultrapassáveis pelos credores se assim o quiserem: que os credores deixam de exercer poderes coloniais (?), que as condições legais são mais favoráveis.
Surpreendentemente, escreve-se que “sendo um programa duro, há benefícios, embora limitados, para a maioria social e que (…) emerge um grande campo aberto a configurações políticas e lutas sociais em defesa dos salários, dos trabalhadores por conta própria e da propriedade pública, com lutas paralelas pelo sistema de pensões, pelas relações de trabalho, pelo sistema fiscal e pela utilização da propriedade pública”. O Syriza que capitulou é o Syriza que vai enquadrar e conduzir essas lutas?
Em algumas passagens, o programa parece invocar alguns princípios do marxismo e da teoria revolucionária, mas de forma primária. “O caminho para a emancipação social, particularmente em condições de crise, não é fácil e não será curto. Pode ser necessário acelerar ou travar, tem curvas, inversões, becos sem saída, não é linear. Temos de pavimentar o caminho com as experiências dos movimentos sociais e laborais dos séculos anteriores e também com as nossas próprias experiências”. Retórica, porque nenhuma lição se tira no programa do crise de julho.
Da mesma forma, o Syriza desculpa-se referindo que “num certo momento, com um dado balanço das forças políticas, há que fazer um compromisso tático e temporário para se estar em posição de continuar a luta, preservando a possibilidade e oportunidade de vitória”. É incorreto aplicar à Grécia de Tsipras esta formulação leninista, relativa a Brest-Litovski. Então, tratou-se só de ganhar tempo e de garantir forças para uma contra-ofensiva, como se passou. No caso da capitulação de julho, estamos muito mais próximos da conferência de Munique.
Reconheça-se que, no seu capítulo 6, o programa faz uma boa caracterização das dificuldades políticas na Europa real. No entanto, como diz o título “por um rearranjo da balança de poder”, continua a vingar a crença na fada europeia e na possibilidade de resolução dos vícios da Europa a partir do centro e das instituições, para mais dominadas pelo pensamento e pelos valores antidemocráticos do neoliberalismo.
Concluindo,
Depois da vitória de Corbyn, estas eleições gregas parece-me que não trarão nada de bom à esquerda europeia. Serão a consagração da derrota de julho e a escolha de quem vai gerir o programa der resgate. De certa foram, como escreve o Time, “Tsipras e Meiramakis [líder da ND] podem ser perdoados por pensarem que esta é uma boa eleição para se perder”.
NOTA 1 – Escreverei sobre a UP, mas falta agora tempo. Será depois das eleições. Infelizmente, em termos das minhas simpatias, o resultado da UP não será determinante, ou porque não entra no parlamento ou porque, obviamente, ficará em oposição. No entanto, vale a pena uma próxima nota sobre a história e programa da UP.
NOTA 2 – Escrevo “o Syriza” porque assim se vulgarizou em Portugal. Mas, de facto e confirmado por uma amiga grega, Syriza, acrónimo cujo primeiro termo é coligação, é em grego do género feminino. É como se escreve, por exemplo, em Espanha.