quarta-feira, 27 de maio de 2015

A conquista da hegemonia ideológica, condição para a revolução democrática

(Comunicação ao “Congresso da Cidadania. Ruptura e Utopia para a Próxima Revolução Democrática”, Associação 25 de Abril, 2015)
O título deste congresso contém uma expressão pouco habitual: Revolução democrática. A expressão é ambígua. Pode ser, por exemplo, para Piketty, algo de indefinido, idealista, vagamente inspirado na mera vitória do Syriza. Por mim, tomo-a como rotura qualitativa com a situação vigente e não obrigatoriamente de acordo com as normas vigentes. 
Entenda-se que, como sempre que se fala em revolução, não é obrigatório que se esteja a referir uma forma violenta de revolução. O que significa é uma mudança radical da filosofia, organização e funcionamento do sistema democrático.
Não é que não seja positiva uma reclamação mais simples de mais democracia, mas o necessário é uma alteração radical do contexto político, social e económico em que ela actua. 
Embora a democracia não se esgote no Estado, ele é a sua expressão essencial. Em relação à reforma do Estado inserida na revolução democrática, certamente que haverá muitas propostas concretas no outro painel. Agora, preocupa-me mais o poder: quais as constrições a essa revolução, que ideias para as superar, que forças para lutar.
O capitalismo, nesta sua fase de afirmação hegemónica sob a forma de neoliberalismo, apropriou-se da democracia, reduzindo-a um jogo de espelhos em que a cidadania não tem significado real.
A questão central ainda é a do homem unidimensional, ainda mais do que quando trabalhada por Marcuse. Com esquematismo, aceite-se o emburguesamento das classes trabalhadoras tradicionais. A par disto, vem o consumismo, o gadgetismo, a massificação, a publicidade, a aquisição de símbolos de status, a inculturação, a estupidificarão dos lazeres. E imagine-se se Marcuse pudesse adivinhar em 1964 crianças agarradas a jogos electrónicos horas e horas.
A outra ressocialização egoísta é a degradação da democracia. É numa perspectiva gramsciana – admito que curta – que ligo a revolução democrática ao combate à hegemonia ideológica e cultural do neocapitalismo. Digo assim por simplicidade de exposição porque é claro que isto não se isola da dominação política e económica.
Todos sabemos a importância do conceito gramsciano de hegemonia. Segundo ele, o poder das classes dominantes sobre as classes dominadas não reside simplesmente no controlo dos aparelhos repressivos do Estado. Este poder é garantido fundamentalmente pela "hegemonia" cultural que as classes dominantes conseguem exercer, através do controle do sistema educativo, de algumas instituições religiosas e, principalmente, dos meios de comunicação. 
Destaque-se, no sistema educativo, o papel de formatação pelas escolas tecnocráticas da área social (economia, gestão, sociologia, etc.), prolongada pela cultura generalizada das empresas.
A regeneração revolucionária da democracia, no processo histórico para objectivos mais distantes, é também um factor de humanização, um aspecto da desalienação pela Grande Recusa que nos propõe Marcuse.
É a luta por uma democracia real, para os nossos tempos.
Uma democracia em que as pessoas são cidadãos com efectivo exercício de poder, em condições realísticas. 
Que garante, harmoniosamente, a separação dos sectores privado e público da vida pessoal. 
Uma democracia que reconcilie as pessoas com a política, com combate duro contra a corrupção e a promiscuidade política com os negócios. 
Que promove a libertação da ditadura das verdades feitas.
Questão central é de saber se uma revolução democrática é possível sem a alteração do sistema económico. O 25 de Abril é um bom exemplo. Num jogo de forças pouco definido, com divisões até no próprio MFA, a fase até ao 11 de Março não cria a base de poder necessária e suficiente para uma democracia avançada.
No entanto, parece-me que a discussão sobre revolução estrutural e revolução socialista pode ser minimamente separável, deslocando a questão do poder mas sempre sem a omitir. 
A ordem democrática, como toda a ordem política, faz parte do sistema estrutural que serve o poder económico. Como não se vislumbra no tempo de uma geração a derrota do capitalismo, a revolução democrática exige o poder mas, ao mesmo tempo, confronta-se com a dificuldade de esse poder ser obrigatoriamente limitado. As classes economicamente dominantes não ficarão indiferentes. Veja-se, por exemplo, as campanhas ferozes na América latina contra os governos progressistas e os partidos que os suportam.
O bloco histórico constituído em torno da oligarquia neocapitalista ainda hoje domina a intelectualidade orgânica do bloco democrático. Esta, sem desprimor para muitos casos, remete-se muito para a propaganda tradicional ou o “esclarecimento” de há décadas. 
Não entusiasma, não mostra novidade e, assim, ainda não ganhou para o “novo” bloco histórico as largas camadas objectivamente anticapitalistas (trabalhadores, reformados, desempregados, jovens que nunca acederam ao mercado de trabalho, minorias, etc). 
Muito menos lhes facultou meios de informação e reflexão sobre uma revolução democrática. Entretanto, a vida política reduz o eleitor a um papel pendular, votando sobre questões conjunturais ou, pior ainda, por questões de marketing ou clubismo partidário.
O capitalismo neoliberal não oferecerá uma nova democracia. Pelo contrário, cada vez mais reduzirá a que temos, como instrumento autoritário para sujeição das classes trabalhadoras à chamada desvalorização interna. 
O outro lado da questão é a luta. Temos de a perseguir, mas ainda com muita coisa em aberto: que forças sociais se podem mobilizar? quais as tensões dialécticas que se porão em jogo? qual o papel de partidos ou de outros agentes políticos?
A luta política tradicional com objectivos quantitativos é indiscutivelmente importante, mas não concentra o foco no essencial: o combate ideológico à hegemonia do capitalismo neoliberal, ao “pensamento único” e à alienação dos cidadãos pela “ordem natural das coisas”; e a reconstrução da democracia, como expressão efectiva da cidadania nos nossos tempos, de pessoas com recursos tecnológicos, comunicacionais e informativos até há pouco inimagináveis. 
Hoje, com posições ideológicas, políticas e económicas extremadas, principalmente na Europa, as forças mais conservadoras conseguiram que uma larga maioria dos cidadãos aceitasse como senso comum, acriticamente, a sua “ordem natural das coisas”. É um facto que não devemos esconder.
Um projecto revolucionário de transformação do sistema democrático defronta-se com grande resistência e exige uma ampla frente democrática, forte e principalmente estável. Mais uma vez, a revolução do 25 de Abril nos serve de lição, com o seu refluxo contra-revolucionário em grande parte às divisões que se instalaram entre os militares de Abril após o 11 de Março.
É manifesto o desejo dos eleitores de unidade política de esquerda. Para fugir à ambiguidade da categoria esquerda, hoje, aproveito o título deste tema, unidade para a revolução democrática. Não me parece que seja abusivo, porque não creio que uma nova democracia, nascida revolucionariamente, não venha acompanhada por um conteúdo de verdadeira esquerda, no plano económico, social e cultural.
Na prática, e para além de idiossincrasias partidárias, a unidade tem estado muito condicionada por factores conjunturais que não dizem directamente respeito à revolução democrática: a posição em relação à União Europeia, a questão da dívida, a defesa do estado social de bem-estar. 
No entanto, tenho para mim que as novas atitudes dos eleitorados europeus, a congregar quase espontaneamente vontades unitárias, não se justificam tanto por essas matérias. Antes por um sentimento de desgosto do eleitorado, alimentado pelos vícios da democracia representativa, pela partidocracia, pelo carreirismo político, pela promiscuidade de relações entre a política e os negócios.
A situação é paradoxal e de difícil resolução. 
Primeiro: os problemas de política concreta que referi seriam de mais fácil resolução num novo sistema democrático, com um poder externamente forte e com grande legitimidade interna. 
Por isso, segundo: parte da chamada esquerda em sentido lato poderia ser pressionada pelos eleitores a um esforço unitário com base no seu desejo de reaproximação à democracia, a uma nova democracia, em vez de políticas concretas que eles não percebem. 
Mas, terceiro: a rendição do centro-esquerda à ideologia e prática neo-liberal, desloca-o para uma área de pântano que está bem instalada na democracia que temos, e a aproveitá-la bem.
Para terminar, e pela importância da comunicação social como instrumento ideológico, deixo algumas questões concretas, como provocação ao debate sobre o controlo democrático da comunicação social.
1. Com o jornalismo em papel ou “online” ainda inacessível a muita gente, destaca-se o papel da televisão (creio que menos o da rádio, a não ser para os condutores de automóvel…). A forma mais frequente de intervenção política televisiva entre nós é o “comentarismo” (nem sequer é análise, como se dizia). Premeia-se o amadorismo e a pouca seriedade de figuras populares sem qualificação política. Com tudo a defraudar o cidadão, alienando-o numa atitude de espectador de política espectáculo.
2. Como se garante um canal público não generalista com programas de grande qualidade e com análises rigorosas e aprofundadas?
3. A entidade reguladora cumpre a função de defesa dos cidadãos, de garantia do rigor e da isenção? A sua composição e modo de designação são adequadas?
4. Deve poder ser atribuído a sectores político-partidários ou sociais um canal público de sinal aberto? Com que garantias de equidade, responsabilidade e isenção em relação aos poderes, em particular o governo e os executivos regionais e autárquicos?
5. Da mesma forma, pode haver um jornal público “online”, garantindo-se o que se acabou de dizer?
Em conclusão
Em muitos aspectos, e observando-se mudanças sociais muito aceleradas, não há ainda resposta precisa para essa tarefa. É um processo de reconstrução que se vai fazendo, necessariamente com desdogmatização do que nos tem sido imposto como pensamento único. 
O que deixo são apenas algumas posições de princípio, mas tendo em conta que
  1. num terreno ainda pouco desbravado e dominado por esquematismos, exige-se a articulação eficaz entre reflexão e debate teórico, e a validação pela acção política. 
  2. as ações de defesa dos interesses materiais e sociais dos trabalhadores, reformados e desempregados são inseparáveis da consciencialização e da acção para a revolução democrática.

domingo, 24 de maio de 2015

Ensaio sobre o Syriza – II. A dinâmica e e as contradições

O que explica que, numa época de domínio político e ideológico da direita neoliberal, um partido de esquerda radical como o Syria – assim se auto-define – passe de 4,6 para 16,8% de votos em 3 anos, para 26,9% em um mês e depois para 36,3% nos 3 anos seguintes? E o que explica, para além do cerco imperial europeu, que tal apoio popular não faça sair o Syriza e o governo grego da armadilha em que estão presos?
Em primeiro lugar, a força ilusória que lhe vem da sua fraqueza, com um programa ambíguo que atrai transversalmente muitos eleitores descontentes com as alternativas (ou alternâncias). Mais dia menos dia, passar-se-há o mesmo em Portugal, devido àquilo a que tenho chamado a pasokização do PS. Sobre os programas, escrevi em artigo anterior.
Neste, abordo a dinâmica da acção do Syriza, o seu discurso, o seu enquadramento na esquerda grega e europeia, os desafios ao pensamento moderno da esquerda.
1. A origem e natureza do Syriza
Anote-se alguns factores determinantes do percurso  do Syriza: a existência de um partido forte “à esquerda do Syriza, isto é, o KKE; uma atitude menos radical do Syriza em relação à questão europeia e à divida e mesmo não radical de todo em relação ao euro; a relativa novidade do Syriza; a maior capacidade do Syriza para levar à política gente dos movimentos populares, em parte, como diremos, pela ação da sua “linha da solidariedade”.
Comecemos também por lembrar a história e composição do Syriza, a partir da coligação Synaspismos. Esta foi constituída no fim da década de 80, numa época em que o movimento comunista grego ainda sofria da cisão pós-crise checa, entre KKE-exterior, pró-soviético, e partido do interior, eurocomunista. O Synaspismos integrou, por tempo curto, o KKE-exterior, a Esquerda grega – o grupo mais forte da cisão eurocomunista do interior – e uma dissidência social-democrata de esquerda, o Partido da Social Democracia.
Pouco depois, com o colapso do mundo soviético, o KKE expulsou a sua corrente não radical e abandonou o Synaspismos, que, em contrapartida, absorveu um partido ecologista de esquerda, AKOA, e, nas eleições de 2004, outros pequenos grupos de esquerda radical ou social-democrata de ala esquerda, como o Movimento da esquerda unida na acção (KEDA), a Esquerda internacionalista dos trabalhadores, trostsquista (DEA) e outros.
Actualmente, o Syriza é um partido unificado, mas com correntes reconhecidas: Unidade de esquerda, socialistas democráticos, apoiantes de Tsipras (N. A. – Varoufakis não é membro do Syriza, o que deve ser uma surpresa para muitos portugueses), com 51% de votos no congresso de 2013; Corrente de esquerda, eurocomunistas e eurocéticos, de que se destacam Kouvelakis, Lapavitsas, Lafazanis, com 30% de votos; Ala renovadora, com 17%, também eurocomunista mas apoiando as posições de Tsipras e companheiros.
Por sua vez, a Corrente de esquerda também inclui uma apreciável diversidade de grupos e opiniões: eurocomunistas, dissidentes do KKE expulsos em 1991 e que se mantiveram no Synaspismos; três grupos trotskistas, Kokkino, DEA e APO; um grupo de esquerda dissidente do PSOK, DIKKI; e uma organização sindical, KEDA, em rotura com o KKE. Esta corrente tinha tido grande influência na relativa radicalização do Syriza, sob a direção de Alékos Alavános, entre 2004 e o congresso fundador do partido, em 2013, no qual, ironia, é Alavános quem propões Tsipras para líder do novo partido unificado.
A seguir voltaremos à questão da pluralidade ou unicidade. 
2. Uma situação comparável?
É importante um exercício de análise comparativa. Muitos são, em Portugal, os entusiásticos apoiantes do Syriza que não conseguem explicar o sucesso eleitoral do Syriza e a estagnação do KKE. Ao mesmo tempo, e por causa disso, não conseguem perceber o que faz falta, em modos de Syriza, ao PCP e ao BE. Muito menos explicam que o PS se mantenha imune à Pasokização, não sendo completamente justificativo que o PS não esteja no governo – porque, no essencial, mesmo com as últimas propostas, está a léguas de ser uma alternativa antiausteritária.
É interessante comparar o percurso e sucesso do Syriza com partidos próximos, nomeadamente a IU espanhola. Muito os aproxima, em história, programa, conceções organizavas e prática política, exceto no sucesso eleitoral. Como já escrevi aqui são dois partidos irmãos. O mesmo se passa com o BE mas não, obviamente, com o PCP, afim do KKE.
Não vou entrar por discursos subjectivistas sobre o espírito português ou grego, sobre a brandura dos nossos costumes, sobre o orgulho dos filhos dos pais da democracia. Importante é estudar a dinâmica política que, para além dos programas que analisamos há dias, ou em articulação com eles, gerou uma fortíssima sintonia de vontade popular e de acção política partidária e governamental.
Um factor de situação política geral é a relação (inversa em relação a nós) entre os dois componentes da esquerda não social-democrata. Na Grécia, como vimos, o KKE e o Syriza actual começaram por juntarem forças, o que nunca aconteceu, eleitoralmente, com o PCP e o BE. Depois, o KKE não ganha força à conta do Pasok, o que acontece com o Syriza, por razões que analisaremos. Em Portugal, não se desenvolveram essas razões e manteve-se invertida a relação de força eleitoral entre os dois partidos de esquerda radical, PCP e BE.
A analogia Syriza-BE também é possível noutro aspecto, salvaguardadas as diferenças de escala: forte componente de membros jovens de camadas pequeno-burguesas intelectuais e técnicas e fraca implantação sindical, com pouca ligação ao mundo do trabalho. Mas, em contrapartida e diferentemente do par PCP-KKE, maior abertura aos movimentos populares e às causas transversais, mesmo que com algum “folclore politico”.
Uma diferença considerável entre o Syriza (ou o BE em Portugal) é a sua opção por configuração de partido, ao contrário da Esquerda unida (IU), que se mantém como coligação (por exemplo, a IU tem como coordenador Cayo Lara, comunista, mas o secretário-geral do PCE, membro da IU, é outro comunista, José Luis Centella.
A esquerda moderna não comunista parecia vir a privilegiar a natureza de movimento, difuso e organicamente flexível. Não foi a via escolhida pelo Syriza, ao passar de coligação a partido. Que importância terá tido isto, numa situação geral em que, como no caso da IU, parece adquirida a ideia de que a segmentação é um problema insolúvel, e em que até o Podemos, iniciando-se na águas movimentalistas do 15 de maio, pratica hoje um forte centralismo em torno de Iglesias e o seu grupo de amigos universitários?
Esse balanço no Syriza entre pluralidade e unicidade é único e ajuda a compreender a capacidade de resistência que o Syriza está a revelar. Mesmo que haja vozes no interior a clamar contra manobras conformistas da corrente maioritária, não é concebível que tal diversidade garanta uma vida partidária que não seja fundamentada numa cultura de pluralismo de ideias e de diálogo politico, de que não temos exemplo em Portugal, a não ser, reduzidamente, no BE. Há em Espanha, na IU, mas outro factor, que agora não podemos abordar, a emergência de algum populismo e do Podemos, faz com que a IU não tenha tido o percurso de sucesso do seu partido-irmão Syriza.
3. Dinâmicas e contradições
A principal contradição no Syriza, que já abordamos, está na radicalidade do seu programa político geral, a corresponder à grave “crise humanitária”, e no recuo progressivo do seu programa económico-financeiro, em particular no que respeita ao quadro europeu. Até que ponto a vitória do Syria se deve à passagem da radicalidade para o realismo?
A “crise humanitária” domina a situação política grega e não tem comparação com o que passamos. Maior desemprego, muito mais gente abaixo do limiar da pobreza, cortes acentuados nos salários (com destaque para a função pública) e reformas, despejos, cortes de energia, falta de assistência de saúde (os desempregados não têm direito a SNS), etc.
O programa de Salónica, com que o Syriza concorreu às eleições de 2015, dá prioridade ao combate à crise humanitária: 1. Eletricidade gratuita para os 2/3 das famílias mais pobres. 2. Programa de abrigos para os sem.teto. 3. Pensão mínima de 700 € (N. A. – mais do que o nosso salário mínimo). 4. SNS universal. 5. Cartão de subsídio (vale) aos transportes. 6. Eliminação da taxa sobre os combustíveis para aquecimento. 
O segundo pilar de medidas visa o relançamento da economia: cobrança das receitas fiscais em atraso, apoio às pequenas e médias empresas, eliminação das penhoras ilegais e suspensão das que incidem sobre pessoas sem rendimentos, criação de um banco de desenvolvimento público e de um "banco mau" para limpeza da banca parasitária e do crédito vicioso.
O terceiro pilar é o da criação de emprego. Apoio ao mundo do trabalho, fortalecimento da sua capacidade negocial, reposição do quadro legal suprimido pelo memorando, salário mínimo de € 751 para todos, restabelecimento de contratos colectivos, proibição de “layoffs” maciços projecto de criação de 300.000 empregos nos setores público, privado e social da economia.
No essencial, é a quadratura do círculo: política antiausteritária mas manutenção da rede de dependências financeiras e do quadro europeu. Mesmo assim, tem a oposição total da Alemanha e das outras instâncias europeias, para que basta um pequeno gesto de firmeza para dar o murro na mesa. 
Será esse desejo de quadratura do círculo cinismo e oportunismo? Dê-se o benefício da dúvida. A corrente moderada ou "realista", encabeçada por Tsipras, parece honestamente querer simultaneamente o fim da austeridade e a manutenção no euro. É o tal círculo quadrado, mas aparentemente o que o povo grego (e português) quer, embora mais atenuadamente – 72% antes das eleições, 52% em sondagem do princípio deste mês.
Imagine-se como a idêntica contradição entre o recém-proposto programa do PS e a falta de bases do programa económico-financeiro ainda é mais irresolúvel, quando a posição ideológica do PS é de alinhamento fervoroso com a ordem europeia.
4. Como se situa o Syriza em referência à esquerda?
Apesar desse possível desvio do Syriza, não há reflexos na linguagem, a começar pela invocação de esquerda. Entre nós, as camadas mais politizadas continuam a usar orgulhosamente o termo, mas há muitos que receiem que o eleitorado, após a derrota da esquerda radical no 25 de novembro, rejeite o que julga poder o termo significar. É verdade que esquerda tem na Grécia uma conotação fortíssima com a resistência e a guerra civil, que ultrapassa a sabotagem ideológica a que, desde há muito, estão sujeitos os portugueses.
De qualquer forma, e como em toda a parte, há sempre grande ambiguidade nas palavras. Ainda há três décadas, o mundo de esquerda era comunista ou social-democrata, embora, a partir da Checoslováquia de 1968 e, antes, de escolas marxistas ocidentais (Frankfurt, New Left ou de inspiração gramsciana), germinassem novas ideias naquela fenda.
Apesar desse possível desvio, não há reflexos na linguagem, a começar pela invocação de esquerda. Entre nós, as camadas mais politizadas continuam a usar orgulhosamente o termo, mas há muitos que receiem que o eleitorado, após a derrota da esquerda radical no 25 de novembro, rejeite o que julga poder o termo significar. É verdade que esquerda tem na Grécia uma conotação fortíssima com a resistência e a guerra civil, que ultrapassa a sabotagem ideológica a que, desde há muito, estão sujeitos os portugueses.
O que é esquerda? É esquerda, para mais não dizer, todo um vasto campo político e ideológico que faz suas as lutas sociais e de progresso e que se interroga. Sobre a estrutura de classes, hoje, e a luta de classes como motor histórico. Sobre a radicalidade destruidora da luta anticapitalista e sobre o oportunismo da visão do socialismo como gestão “avançada” do capitalismo. Sobre os limites da esquerda radical, num quadro político essencialmente dominado pelo eleitoralismo. Sobre as novas causas transversais e planetárias, como a paz, o ambiente, a luta contra a globalização, a qualidade de vida, os direitos das mulheres e minorias, os direitos democráticos e o socialismo, a concepção de partido como espelho perante a sociedade dos valores culturais e éticos que diz defender, etc.
Esse questionamento definidor da esquerda foi facilitado, como na Grécia ou na Espanha, pela pluralidade no movimento comunista. Nem sempre deu bom resultado, como se vê em Itália, lamentavelmente num país de tão rica tradição teórica marxista. 
Em Portugal, não foi possível, porque a cisão no PCP foi tardia enquanto organizada (só depois do golpe de Moscovo de 1991) e pouco expressiva, só depois se tendo formado um novo partido, pouco expressivo, o BE (os quase 10% de votos e 16 deputados de 2009 foram conjuntura efémera). Muito desse percurso português se deve à resistência e qualidade política inegáveis de Cunhal e seus companheiros próximos, mas não só. Quando hoje se fala no enquistamento defensivo do PCP mas, ao mesmo tempo, na sua capacidade de enquadramento de lutas, principalmente sindicais, seria bom estudar comparativamente o percurso do Syriza, mesmo descontando que o PCP, como o KKE, não aceita o exemplo de um partido “social-democrata”. 
É o Syriza (euro)comunista ou o renascimento da genuína social-democracia destruída pelo Pasok? Não sei mas, pela definição que adotei, não tenho dúvidas de que é de esquerda.
5. Realismo e radicalismo
A componente assistencial e humanitária do programa do Syriza acentuou-se até Salónica. Em contrapartida, como vimos, esbateram-se as posições de política económica e financeira. À medida que se vislumbrava um sucesso eleitoral, a direcção do Syriza passou a adoptar uma postura mais moderada. Ficou apertado entre os críticos de direita que continuaram a considerá-lo como um partido de esquerda radical e inaceitável para os padrões europeus, e os críticos de esquerda (mesmo no interior – Kouvelakis, Lapavitsas, Lafazanis, Stathakis), que acusam a direcção de preocupação excessiva com a imagem de “partido respeitável” (Nota – ler Stathis Kouvelakis, 2013). 
Mais recentemente, tomou peso o protesto de um grande grupo de deputados contra o primeiro acordo com “as instituições”, em que se destaca o até então apoiante de Tsipras, economista-chefe do partido e autor do programa de Salónica, John Milios, agora co-autor de um texto devastador de crítica ao acordo. Felizmente, o Syriza é muito longe de ser só Tsipras e longe de ser monolítico.
Às posições programáticas associaram-se as atuações práticas do Syriza, com apoios aos desalojados, postos de assistência médica e outras ações de voluntariado. De partido de protesto (“linha da resistência”), passa em boa parte a intervencionista em ações assistenciais, ao mesmo que se demarca de todas as ações violentas de rua ou que lhe pudessem alienar apoios de classes médias ordeiras e conservadoras (“linha da solidariedade”)
Esta linha, adotada logo a seguir às eleições de 2012 – granjeou grande prestígio ao partido. Um dos exemplos notáveis foi o dos bancos de medicamentos organizados pelo componente Synaspismos do Syriza. Com isto, também se ocupou militantemente grande parte dos novos aderentes, cerca de 35.000, preenchendo uma lacuna de falta de militarismo do Syriza em comparação com o KKE (e BE com o PCP, em Portugal).
Vai-se também adaptando o discurso, que alguns acusam de ambíguo. Um discurso centrado no líder, “de cima para baixo”, dirigido a uma audiência nacional, transversal, mas modulado consoante os públicos: mais radical e lírico quando dirigido ao seu eleitorado tradicional e ativistas, mais sóbrio e pragmático quando dirigido aos seus novos eleitores ou potenciais apoiantes. Transforma-se progressivamente em partido “catch-all”, no sentido Kirchheimer.
Como analisa Federico Sternberg, do Real Instituto Elcano, Syriza, tal como Podemos, “cresceram exponencialmente durante a crise porque souberam canalizar o descontentamento dos cidadões (ups!…) com os partidos tradicionais. Suavizaram o seu discurso, porque “querem governar e sabem que não se ganham eleições a partir da radicalidade (N. A. – não é bem verdade; lembre-se a ascensão eleitoral do nazismo), neste caso de esquerda. Moderaram-se para captar votos de todo o espetro esquerda-direita. (…) Estão competindo para ser o partido social-democrata de referência”. 
Mesmo no interior do partido, dizem analistas da sua corrente esquerda – que criticam a imagem do Syriza como “partido respeitável de governo” –, o sucesso eleitoral de 2012 causou uma dinâmica contraditória. Assistiu-se a uma grande vaga de inscrições, incluindo de operários até antes mais influenciados pelo KKE ou pela central sindical pasokiana, mas isto reflectiu-se numa atitude de passividade em relação à direcção carismática e à dinâmica de correntes, por muita nova gente abalada com a crise e desanimada durante anos com o sistema partidocrático dual. 
Não custa a imaginar tal evolução num PS que tivesse tido uma vitória eleitoral com conquista no centrão e com reforço da sua ala social-democrata, em vez de singrar por uma via pasokizante. tanto mais que o PS já é de há muito um partido “catch-all”.
Mas colocar a solidariedade antes da conflitualidade resulta, para a esquerda radical tradicional, numa imagem de “partido remédio da crise” que, fora isso e o desvio troikiano do Pasok, não distinguiria o Syriza do velho Pasok social-democrata. Já agora, de muita coisa do PS português no recente catálogo programático em contradição com o documento económico-financeiro dos 12.
Tal como um pouco por toda a Europa, procura-se atingir a maioria parlamentar por apelo a uma amálgama de opiniões e aspirações de diferenciadas camadas da pequena burguesia ou das classes médias que reflecte hoje a hegemonia ideológica do capitalismo: pessoas relativamente conservadoras, de idade média considerável, com meios imobiliários embora a crédito, com atração pelo consumismo, sujeitos a grande alienação pela comunicação social. Muito importante, pessoas que, tendo sofrido fortemente com a crise, são firmemente opostos à saída do euro (cerca de 70% na eleições de 2015, mas, notavelmente, pouco mais de 50% há dias, depois do longo e vergonhoso conflito com as “instituições europeias”).
Mesmo atendidas todas estas reservas, era vital para a Grécia ter um novo governo que a libertasse do garrote do memorando e da troika, bem como capaz de proceder às verdadeiras reformas estruturais (luta contra a corrupção, contra a fuga ao fisco, pela modernização e eficácia da administração pública). Neste sentido, bem precisaríamos nós de também ter um “partido remédio para a crise”.
O resultado essencial da dinâmica criada pelo Syriza desde 2012 foi ter colocado entre a esquerda europeia, em termos concretos, a questão da tomada de um poder de estado alternativo. Teria sido possível na via exclusiva da radicalidade de esquerda ou foram necessários compromissos com receios e valores de sectores sociais mais recuados? Teria sido possível a conquista do poder por outra via? Ou, pelo contrário, para voltar a velha questão, o Syriza, conquistando o governo, terá conquistado o poder? No que se refere ao seu grande contendor nessa luta pelo poder, Alemanha e demais Europa/BCE/FMI, é cedo para se dizer.
Citei analistas que criticaram o centralismo circum-Tsipras que se gerou depois de 2012 e que foi bem visível na sua campanha para presidente da Comissão europeia, em 2014. Se pensamos em Iglesias e até Garzón, em Espanha, talvez seja isto indispensável em política (ganha quem comunica melhor). Mas é verdade que, mesmo assim, o Syriza chegou unido às eleições de 2015, constituiu governo representativo das suas correntes e tem mostrado grande solidariedade interna. Lembre-se o bloco de medidas iniciais constantes do plano humanitário do programa de Salónica, aprovadas com grande irritação dos “parceiros” europeus, bem como a firmeza com que todo o governo traçou linhas vermelhas respeitantes aos salários e às reformas.
6. O europeísmo utópico
Também vai ser instrutivo estudar outra questão, a do internacionalismo, agora em termos diferentes dos da época da 1ª Guerra e, na URSS, no conflito entre Estaline e Trotsky. No quadro europeu de hoje, com o euro a aprisionar os países em relações imperialistas que deixaram descaradamente a luz as promessas de solidariedade e de convergência, é viável a luta do governo grego fora de uma política geral europeia ou exigirá a convergência de políticas europeias dos vários países, específicas? E pode-se esperar por isso?
Por outro lado, mesmo a contemporização europeíza do Syriza não o afasta da atitude de luta, como se tem visto desde que formou governo. Está longe da submissão da social-democracia, inclusive a portuguesa. Se o discurso se tem vindo a suavizar, não deixa de ser muito firme no contraponto antiausteritário e, principalmente quanto à Europa, na denúncia do défice democrático, dos poderes oligárquicos, da exclusão social e da crise humanitária. Segundo Tsipras, que coloca o acento na mobilização e participação populares, “uma alternativa se oferece à Europa: ou persiste no impasse neoliberal ou faz a escolha da democracia”. 
É certo, mas é pouco, Com todo o respeito e solidariedade com a luta heróica que o governo grego e o Syriza estão a travar, preferia ouvir ir-se mais longe no caminho da destruição desta ordem europeia muito mais do que naquilo que os europeístas criticam: ir-se também para o derrube da sua ordem político-económica.
Mesmo tendo em conta todas as dificuldades disso, o Syriza não apresenta claramente nenhum projeto de ultrapassagem do capitalismo, sobretudo no espartilho orçamental e institucional da zona euro.
7. Para reflexão teórica atenta à evolução do Syriza e do drama grego
A terminar este artigo, a que se seguirão outros, uma questão importante de prática política a que não é alheia uma visão teórica, dialética. Na actual correlação de forças, é viável a conquista de poder, num passo revolucionário (o que não quer dizer obrigatoriamente violento) pela esquerda radical, ou isto pode verificar-se por uma sucessão de conquistas (entenda-se também: não necessariamente reformistas) a abrir brechas na hegemonia do capitalismo, hoje neoliberal? É uma pergunta no cerne de velhas discussões do movimento operário e dos trabalhadores.
Não é que só se possa defender a oposição absoluta de via parlamentar e de via insurrecional, que podem compatibilizar-se por escalonamento de ambições políticas, desde que tendo sempre em mira, à distância, o derrube do capitalismo. O contrário seria fazer o jogo do inimigo. Não havendo condições objetivas e subjetivas para o seu derrube, o “purismo” revolucionário é uma atitude de expetativa passiva ou de simples resistência que pode deixar tudo na mesma.
Seja qual for a resposta, a política, programa e ação do Syriza e do governo grego aquecem, mesmo com contradições e limitações, as expetativas de muita gente dos povos europeus. No que nos diz respeito, Portugal não é cópia da Grécia nem de qualquer outro país, mas precisamos de ser solidários, aprendermos em conjunto, contra o poder unificado e hegemónico da central europeia.
Mas exemplifica o Syriza uma perspectiva dialeticamente fecunda de articulação entre a luta de classes, tradicional, personificada como seu agente num partido de esquerda radical, por um lado, e, por outro, o compromisso com a luta eleitoral, com a sua especificidade e cedências? Ou trata-se de oportunismo, o que parece estar a ser desmentido pela firmeza e coerência do confronto com os seus “parceiros”?
Não me parece que haja ainda respostas mas, mesmo em termos teóricos, mais especificamente de reflexão ideológica sob o ponto de vista marxista, são tempos fascinantes.
Um dos principais pontos em aberto é o teste prático ao europeísmo que é forte no Syriza mas que também contamina outros partidos da esquerda europeia; em Portugal, moderadamente, o BE e, extremamente, o novo LIVRE. Aonde leva a crença religiosa nas instituições europeias, nos seus fundamentos democráticos, no projecto de solidariedade dos povos em vez da solidariedade dos interesses capitalistas e imperialistas, com uma grande fronteira que já divide as duas Europas? Veremos, mas desde já o povo grego parece estar a abrir os olhos. É tema para próximo artigo.
Para já, termine-se com uma nota positiva, colhida de uma entrevista a Panagiotis Lafazanis, ministro da Reconstrução da produção, do Ambiente e da Energia, e presidente da Corrente de esquerda do Syriza: “Syriza não será um capataz do capitalismo grego neoliberal. A sua alma é a sociedade e a necessidade de uma reconstrução progressiva do país com um horizonte socialista”.

sábado, 16 de maio de 2015

De novo o AO90

Combinei falar hoje das consoantes mudas, Começo por reproduzir a respe(c)tiva base do AO90.
BASE IV: DAS SEQUÊNCIAS CONSONÂNTICAS
1. O c, com valor de oclusiva velar, das sequências interiores cc (segundo c com valor de sibilante), cç e ct, e o p das sequências interiores pc (c com valor de sibilante), pç e pt, ora se conservam, ora se eliminam. Assim:
a) Conservam-se nos casos em que são invariavelmente proferidos nas pronúncias cultas da língua: compacto, convicção, convicto, ficção, friccionar, pacto, pictural; adepto, apto, díptico, erupção, eucalipto, inepto, núpcias, rapto;
b) Eliminam-se nos casos em que são invariavelmente mudos nas pronúncias cultas da língua: ação, acionar, afetivo, aflição, aflito, ato, coleção, coletivo, direção, diretor, exato, objeção; adoção, adotar, batizar, Egito, ótimo;
c) Conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: aspecto e aspeto, cacto e cato, caracteres e carateres, dicção e dição; facto e fato, sector e setor, ceptro e cetro, concepção e conceção, corrupto e corruto, recepção e receção;
d) Quando, nas sequências interiores mpc, mpç e mpt se eliminar o p de acordo com o determinado nos parágrafos precedentes, o m passa a n, escrevendo-se, respetivamente, nc, nç e nt: assumpcionista e assuncionista; assumpção e assunção; assumptível e assuntível; peremptório e perentório, sumptuoso e suntuoso, sumptuosidade e suntuosidade.
2. Conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, quando se proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente, ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: o b da sequência bd, em súbdito; o b da sequência bt, em subtil e seus derivados; o g da sequência gd, em amígdala, amigdalácea, amigdalar, amigdalato, amigdalite, amigdalóide, amigdalopatia, amigdalotomia; o m da sequência mn, em amnistia, amnistiar, indemne, indemnidade, indemnizar, omnímodo, omnipotente, omnisciente, etc.; o t da sequência tm, em aritmética e aritmético.
Não me parece nenhum atentado à língua, aproxima a grafia da fonética e dá igual valor legal a diversas normas ortográficas quando a elas correspondem diferentes usos fonéticos cultos. Além de que hoje teclar consome tempo.
As minhas dúvidas provêm da facultatividade e da possibilidade de introdução de ambiguidades, Como se vê pela brejeirice do arquitectas/arquitetas, há certamente muitas palavras nas condições das alíneas do parágrafo 2 do que as enumeradas no acordo. Sei que vai haver vocabulários oficiais, mas, entretanto, interrogo-me.
O meu principal problema vem com a facultatividade e com a alínea c). O que quer isto dizer? Que ambas as grafias são aceites oficialmente, tanto no Brasil como em Portugal? Seria o caso inglês, mas, tanto quanto me apercebo, as grafias facultativas referem-se a casos limitados (…ise/…ize, …our/…or, center/centre) e o uso corresponde a duas grandes áreas, de influência britânica e americana. Olhando para as palavras da alínea c) presumo que se vai passar o mesmo e que o uso facultativo se definirá pela dominante em cada país.
Ou podem ser facultativas num mesmo país? Tenho muitas dúvidas sobre a razoabilidade disto. Eu pronuncio com consoante sonora todas as palavras da alínea a): compacto, convicção, convicto, ficção, friccionar, pacto, pictural; adepto, apto, díptico, erupção, eucalipto, inepto, núpcias, rapto. Como mudas todas as da alínea b): ação, acionar, afetivo, aflição, aflito, ato, coleção, coletivo, direção, diretor, exato, objeção; adoção, adotar, batizar, Egito, ótimo.
Assim, poderia facilmente extrapolar para a regra geral de só manter as consoantes que pronuncio. Mas fico com dificuldades quanto à alínea c), que me vai obrigar durante algum tempo a recurso ao vocabulário. Das exemplificadas no AO90, pronuncio como sonoras as consoantes c e p de caracteres, dicção, sumptuoso e facto, como mudas as restantes.
Esta variabilidade de pronúncia entre pessoas cultas vai criar confusão quanto à ado(p)ção do critério fonético. E se sim, quem decide? Na escola, o professor, ou mesmo cada aluno, por via da sua pronúncia ou simplesmente porque prefere? Se eu tiver dois filhos um em cada escola, será que vou ler trabalhos em que um escreve facto e outro fato (acontecimento). Não é para mim problema intransponível, mas parece-me uma falha que poderia ter sido resolvida à inglesa, com a facultatividade referida a áreas linguísticas. Curiosamente, ou estou em erro ou ainda não vi discutir o problema que agora abordo.
Agora é tarde e não adianta pretender que se pode voltar atrás.
Por mim vou ser prático e, em relação às facultativas, usar o meu próprio critério fonético.

P. S. – Disse que falaria sobre o hífen e as palavras compostas. Tive de fazer uma experiência: verificar textos meus segundo a norma de 45 em relação a este assunto. Para minha vergonha, dei por muitos erros meus. Vou ter de estudar e, já agora, que seja com o AO90. Afinal, o de 1945 é muito mais confuso e propenso a erros.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

O acordo ortográfico visto por um leigo

Declaração de interesses – Não sou linguista e, em relação à discussão sobre o AO90, só posso invocar três coisas: sou racional e uso de rigor intelectual; tenho bom senso; gosto da minha língua e gabo-me de a falar e escrever bem.
Há coisas surpreendentes na rede social. Por vezes escrevo ou leio coisas de fôlego, a despertar poucos comentários ou a ver-se que não aparecem porque a minha rede próxima tem muita afinidade em relação a matérias fundamentais. Outras vezes, questões menores subitamente causam torrentes de comentários, de réplicas e tréplicas, surpreendentemente por parte dos que, inicialmente, diziam não pagar para aquela paróquia. Felizmente que ainda não se perdeu o gosto pela discussão amigável.
Vejo que, em regra, os meus amigos são muito racionais. Mesmo quando discordam, não se deixam levar emotivamente e praticam o bom-senso. Um bom exemplo de tudo isto foi um “post” meu sobre o acordo ortográfico (AO90). Fico a pensar que a amostra dos meus leitores difere muito de duas outras. Primeiro, obviamente, de muitos especialistas, linguistas, gramáticos, que se têm pronunciado com comedimento académico. Depois de um grupo considerável de leigos que, não estando habilitados a usar argumentos científicos, dão bengaladas muitas vezes à traição.
Comecemos pelo mais exemplar. a) O célebre caso do cágado/cagado é fraudulento. Em parte alguma do AO90 se altera a grafia de palavras esdrúxulas, excepto na diferença brasileira do acento circunflexo em relação ao acento agudo. b) Vão-se criar homógrafos confusos, como “para” (tempo verbal) e “para” (preposição)? Não estou a ver casos em que o simples contexto não diferencie os termos. c) A argumentação de gente séria (?) em relação à supressão de consoantes mudas é confrangedora e embusteira, como os célebres casos do pacto/pato e do facto/fato. É questão de se perguntar se essas pessoas, algumas das quais com títulos, leram o acordo. Mais, como confesso em relação a mim, se não é verdade que faço erros quando julgo escrever segundo 1945 e já estou a escrever, por preguiça, à AO90. Por exemplo, lembrei-me de que escrevo enjoo e não enjôo.
Porque é que muitos leigos estão contra o AO90, nomeadamente como se vê na cadeia de comentários do meu “post”? Respeito muitas razões, mas considero-as teóricas e pouco realistas. Em oposição, há o fa(c)to indesmentível de o AO90 ser lei, estar a servir para o ensino do português e já ser impossível voltar atrás, mesmo que entendamos que haveria fortes razões para isso. As coisas são como são.
Sabe-se que houve factores políticos e económicos que talvez tenham causado danos ao rigor línguístico da discussão. Mas as coisas não voltam atrás.
Diz-se que o Brasil ficou beneficiado. Não é bem verdade, porque se está a esquecer que muitas grafias duplas até agora passam a grafia facultativa, na norma única. Também os brasileiros perdem o uso do trema num grande número de palavras. E as coisas não voltam atrás.
Isto da facultatividade leva muita gente a falar em muita confusão. Não é caso único. Abra-se um bom dicionário inglês ou americano e veja-se a quantidade de grafias duplas, facultativas mas consideradas como valendo para efeitos oficiais.
Diz-se que o processo do AO90 foi burocrático e decidido como se se tratasse de uma lei banal. É verdade que a língua é património identitário, reserva da nação, mas a língua é mais do que a convenção ortográfica. E as coisas não podem voltar atrás, além de que não se contesta a legitimidade soberana.
Não parece razoável distinguir, em relação ao AO90, pais e avós e, por outro lado, crianças e jovens. Os primeiros são co-responsáveis, com a escola, pela educação dos segundos e devem estar em condições de a facilitarem. Estes já estão a estudar pelo AO90 e as coisas não podem voltar atrás.
Diz-se que o AO90 vai causar grande confusão e propiciar (mais vale erros de ditado do que aqui escrever proporcionar…) maior frequência de erros. Duvido. Deve estar esquecida a experiência de 1911, com a eliminação de toda a tralha de ph, th, y, mn, consoantes dobradas, etc. Com excepção de Pessoa, não ficou memória de nenhum oponente.
Pelo contrário, em alguns casos, a ortografia pada a ser mais simples. Por exemplo, para quê até agora os acentos circunflexos nas palavras terminadas em <êem> ou <ôo(s)>, que agora são eliminados?
Claro que o tema que mais tem dado que falar é o das consoantes mudas. Voltarei a ele, resumidamente. Como leigo, mas sem patetices desonestas, como falar em espetadores ou em arquitetas.
Tenho muito mais dúvidas sobre o uso do hífen. Vou estudar e depois falaremos.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Ensaio sobre o Syriza – I. Os programas

Creio que ninguém nega que o governo grego e o Syriza estão enredados numa profunda contradição. Por um lado, defendem firmemente (quando comparado com a “esquerda” europeia no poder ou candidata) uma política popular e patriótica. Por outro, e invocando o mesmo princípio do mandato eleitoral, respeitam em absoluto o quadro europeu e não concebem, para já, a saída do euro.
De certa forma, é também a posição do BE, um pouco ambígua em relação à reestruturação da dívida e ao euro. Mais ainda quando a clara mudança de opinião de Louçã, já não dirigente mas muito influente, talvez cause perplexidade no Bloco.
Esta corrente de esquerda radical, simbolizada pelo Partido da Esquerda Europeia, fica presa pela ideologia que acompanha o neoliberalismo, isto é, o europeísmo. Segundo Kouvelakis, da ala esquerda do Syriza, um papel central [na difusão de posições pro-Euro] é desempenhado pelo Die Linke e o Instituto Rosa Luxemburgo. Eles cumprem o papel de difundir uma série de temas em torno de uma agenda por reformas internas na União Europeia, uma compreensão comum à crise e de que a forma para superá-la seria essencialmente ligada ao tema da redistribuição.
Por detrás disto existe a ideia que temos que mudar a correlação de forças diretamente no nível da União Europeia, evitando medidas unilaterais em escala nacional. Eles também empregam a estratégia de afirmar que o retorno ao Drachma seria uma regressão, pois expressaria nostalgia pelo velho Estado-nação e este tipo de coisa.”
Esta tal esquerda quer persuadir-se e persuadir-nos de que é possível uma solução europeia,sobre um sonho de Europa federação dos povos, promotora do Estado social e da solidariedade. Não se atende a que a União Europeia e muito mais o euro são construções assimétricas, imperialistas no interior da Europa. ao serviço da afirmação do ordoliberalismo alemão e do pensamento hegemónico neoliberal, tendo de passagem conduzido à destruição de todos os socialismos, das diversas correntes.
O PCP constitui excepção, mas não deixa de mostrar alguma incerteza, tendo passado, aparentemente, de uma prioridade à reestruturação da dívida à prioridade da saída do euro, considerando, tal como também tem defendido João Ferreira do Amaral, que a reestruturação, absolutamente necessária, só é possível sem nos constrangimentos do quadro político e ideológico europeu.Mesmo assim, basta ver opiniões bastante divergentes de economistas comunistas, como Octávio Teixeira e Eugénio Rosa, para se perceber que a procissão ainda vai no adro. Bom é que seja fundamentada em estudos económicos sólidos sobre o peso relativo das vantagens e dos contras de uma saída do sistema do euro. Digo fundamentada e não determinada, porque determinada será sempre politicamente, a nível interno eleitoral, na capacidade de luta do governo e nas forças estrangeiras hostis.
Tendo lido muito de Varoufakis, inclusive a sua Proposta Modesta (Modest Proposal, paráfrase de Jonathan Swift), tive dúvidas sobre se ele cumpria esses requisitos. Consciente das constrições estava, quando escreveu na Proposta que a Europa está aprisionada por falsas escolhas: estabilidade e crescimento, austeridade e estímulo, resgate de bancos insolventes por governos insolventes e união bancária, princípio (nos tratados) da independência das dívidas e necessidade de ajuda dos excedentários, soberania nacional e federalismo. Daí quatro constrições principais: 1. o BCE não terá autorização dos países ricos para monetizar dívida; 2. o OMT (“outright monetary transactions”) só será autorizado sem compra de títulos. 3. os excedentários não aceitam qualquer mutualização da dívida. 4. a situação económica e financeira não permite esperar-se por soluções federalistas.
Ora, contra isto, a Proposta modesta é mesmo muito modesta e limitada ao plano europeu, sem propostas internas para os países mais afectados, que é o que interessa agora à Grécia e mais tarde a nós.
Assenta em quatro políticas, em resumo: 1. programação bancária caso-a-caso, com recapitalização e nomeação de administradores pelo Mecanismo de Estabilidade Europeia (ESM, actual participante nos resgates, com o BCE e o FMI) e evitando ao máximo o “haircut” de depósitos. 2. conversão limitada da dívida nacional até ao limite de Maastricht, 60% do PIB, sem possibilidade de utilização como colaterais, e implementação do OMT. 3. plano de investimento e crescimento financiado por títulos conjuntos do BEI e do FEI, que não devem contar para o cálculo da dívida pública nacional. 4. plano de solidariedade social de emergência, orientado para idosos, jovens, desempregados, emigrantes forçados, sem abrigo, carenciados de electricidade e aquecimento, e financiado pelos TARGET2 (movimentos de capitais entre os bancos centrais).
É um plano bem intencionado, mas totalmente dependente de um consenso europeu, que joga contra, e que não resolve, a curto prazo, os problemas de falta de liquidez e de insustentabilidade da dívida dos países devedores.
Por outro lado, desde 2012 (data do segundo resgate), a posição de Varoufakis é extrema, em relação à Grécia: falência no quadro do euro, aceitando, com recurso a outras fontes, o congelamento dos mercados financeiros. Só não percebo como a eurozona aceitará isto, quando a menos radical reestruturação da divida já leva a “nein”s intransponíveis. Anote-se que, na entrevista em que defende esta posição, Varoufakis afirma ser a Proposta modesta o seu plano B. Parece difícil entender, um plano B que está nas mãos do adversário, para quando ele mostrou a força de impedir o plano A.
Os programas do Syriza
As posições programáticas do Syriza têm oscilado nas últimas legislaturas. O programa de 2012 era muito influenciado pela herança eurocomunista do Synaspismos e dava ênfase a: nacionalização da banca; nacionalização de todos os serviços públicos estratégicos (água, energia, etc.); moratória sobre o serviço da dívida; negociações para o seu cancelamento, com recurso a fundos de pensões e pequenos aforradores; auditoria da dívida. Para não haver dúvidas, diz-se “A dívida nacional é primeiro, e antes de tudo, um produto das relações de classe, que são desumanas em sua própria essência. É produto da evasão fiscal dos ricos, do saque aos fundos públicos e gastos exorbitante em armas e equipamentos militares.” Não há menção directa ao euro, podendo-se presumir que fosse matéria incluída nas renegociações com a troika, a viabilizar “por todos os meios possíveis”.
Defendia-se também “o desligamento da OTAN e fim das bases militares estrangeiras em solo grego”. Junto a ela se soma a “abolição de toda cooperação militar com Israel” e uma política de paz voltada à Turquia, inimiga histórica da Grécia
Desde então, a questão do euro é a mais problemática no Syriza. No congresso de transformação da coligação em partido, em 2013, de novo a questão do euro não é abordada explicitamente e mesmo a expressão “por todos os meios possíveis” foi eliminada do documento de fundação do partido, e a ambiguidade mantém-se: “Assim como foi expresso no nosso antigo slogan “nenhum sacrifício pelo euro”, a prioridade absoluta do Syriza é impedir o desastre humanitário e cumprir demandas sociais, e não nos submeter às obrigações assumidas por outros que hipotecaram o país. Comprometemos-nos a derrubar qualquer ameaça ou chantagem dos credores por todos os meios que conseguirmos mobilizar, estando inteiramente preparados para lidar com qualquer futuro acontecimento, tendo clareza que em tal caso contaremos com o apoio do povo grego.” 
Ao mesmo tempo, algumas propostas vincadamente anti-capitalistas foram flexibilizadas pela ala majoritária do partido (60%); por exemplo, a defesa da “dissolução” da NATO em vez da saída unilateral. Também a nacionalização do sistema financeiro foi substituída pelo melhor “controle social”, o “cancelamento” da dívida externa por “renegociação”, sendo também apresentada a ideia de uma divisão da dívida entre uma parte legitima e outra ilegítima.
Daí para cá, Tsipras enredou-se em declarações no sentido realista da “recentragem” e da “respeitabilidade”, que não favoreceram a imagem de coerência do partido. Por exemplo, as famosas tiradas nos EUA sobre o New Deal e tendo então afirmado que nunca abandonaria o euro. Desde então, ficou refém da UE. Resta saber é se teria sido eleito se tivesse proposto aos eleitores a saída do euro ou a reestruturação da dívida. Da mesma forma, como veremos em próximo texto, dá-se mais ênfase à política de solidariedade do que à política económica.
Em contrapartida, a ala esquerda, “Plataforma de Esquerda”, propôs ao congresso uma séria de posições programáticas, rejeitadas pela maioria de cerca de 60%, mas sem que daí – e bem – tenha resultado qualquer cisão: 1. denúncia do memorando e, se necessário, suspensão do serviço da dívida; 2. preparação séria da eventual saída do euro; 3. nacionalização de todo o sector bancário; 4. cancelamento das privatizações em curso; 4. nacionalização sob controlo popular dos sectors estratégicos da economia (telecomunicações, energia, infraestruturas rodoviárias e aeroportuárias); 5. estratégia de alianças com a restante esquerda, excluindo a direita nacionalista do ANEL. Como se vê, estas posições reafirmam o programa de 2012, contra o arrepio decidido pelo congresso fundador de 2013.
A contestação ao congresso, principalmente pela Plataforma de Esquerda, não foi apenas programática. A questão central, contra a qual se bateu o veterano da resistência Manolis Glezos, foi a inflexão orgânica para um partido presidencialista, com supressão paulatina das tendências e com esvaziamento dos órgãos políticos, afastados da eleição do presidente pelo congresso. Segundo o respeitado dirigente Stathis Kouvelakis, o congresso ficou marcado pela falta de intervenção de activistas no terreno, pela precipitação da realização de reuniões preparatórias, pelo número inflacionado de delegados e pela teia de redes personalizadas, com vasto recurso à internet, a opção por listas fechadas exclusivas, por tendência.
O programa de Salónica, de fins de 2014 e com o qual o Syriza se apresentou às eleições de 2015, aponta principalmente para medidas sociais cuja quantificação parece dar a ideia de que seriam possíveis sem recurso a novos financiamentos da troika nem a diminuição do serviço da dívida. A lista de propostas é longa, dividida em quatro temas: enfrentar a crise humanitária; retomar a economia e promover um sistema de impostos justos; retomar os empregos; transformar o sistema político para aprofundar a democracia.
Novamente, é excluída a hipótese de saída do euro e, agora, já não se fala de “todos os meios” para garantir a renegociação da dívida,antes de um contexto europeu cuja garantia não está na capacidade do governo grego: “uma Conferência da Dívida Europeia, como ocorreu na Alemanha em 1953. Pode também ocorrer no sul da Europa e na Grécia; uma “cláusula de crescimento” na reposição da parte remanescente da dívida, para que ela seja baseada em crescimento e não no orçamento; um período significativo de suspensão (moratorium) no serviço da dívida para salvar recursos para o crescimento; excluir investimentos públicos das restrições no pacto para estabilidade e crescimento; um “New Deal Europeu” de investimento público financiado pelo banco de investimento europeu; flexibilização quantitativa pelo banco central europeu com compra direta de títulos soberanos. 
Sendo Varoufakis o ministro das Finanças (mas não membro do Syriza e, ao que se diz, com pouco peso político no partido), não se fala da sua posição de 2012, insolvência no seio do euro. Não se está muito longe da Proposta modesta e, se Varoufakis falhou, não foi portanto por dogmatismo ou falta de confiança na fada europeia, mas por ingenuidade e falta de um plano B do governo grego. Lá iremos, em texto seguinte.
(NOTA repare-se na semelhança de propostas com os novos pequenos partidos de esquerda em Portugal, mas aqui como forma de não ser tão evidente o seu namoro ao PS).