quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A aliança à esquerda do PS (III)

Na entrada anterior, depois de discutida a enorme mudança social e económica das últimas décadas e a forma como determinam a necessidade de uma nova política de combate pelos interesses populares e da maioria da população, ficaram prometidas algumas propostas para o futuro próximo, para a programação de uma União de Esquerda. 
Não se trata de um programa com os objectivos próprios de cada partido, nomeadamente, no caso de partidos de esquerda socialista, objectivos finais como o derrube do capitalismo e a substituição da sociedade burguesa. Uma união de esquerda só pode aspirar a posições comuns mais limitadas no alcance temporal, localizadas nesta fase do sistema económico, e, por outro lado, aceites por uma fracção tendencialmente majoritária do eleitorado.
Seguem-se algumas propostas genéricas, sem pretensões de exaustão e um pouco em lista desorganizada.
A. Enquadramento
Portugal é um país com uma situação intermédia ou mista na tendência de evolução das sociedades que se discutiu na última entrada. Vastas zonas do País e consideráveis camadas da população, mesmo das zonas mais desenvolvidas vivem em atraso económico e cultural tal que os novos problemas sociais ainda não exigem uma revisão radical das linhas tradicionais de acção da Esquerda.
Mas ao mesmo tempo, e de forma mais evidente no eixo litoral, enxertou-se sobre este atraso uma formação social fortemente terciarizada, com acentuadas alterações de composição social, valores e aspirações. Também no domínio económico e no reflexo no emprego se manifesta esse carácter intermédio. Não temos nenhum dos pólos extremos, que resultam em vantagem competitiva (custo/hora do investimento tecnológico, que equivale hoje ao custo/hora do trabalho em países de salários baixos, como a China).
Um programa de unidade de uma nova frente popular e patriótica tem forçosamente de dar uma resposta actualizada a esta nova situação – também importante em outras partes do mundo – de sociedades intermédias.
Como discutido anteontem, uma nova política deve responder a esta situação objectiva mas também aos factores subjectivos de insatisfação que analisámos. Deseja-se maior flexibilidade e variabilidade na vida pessoal, nos gostos e prazeres, compreendem-se melhor os efeitos da massificação, nomeadamente a manipulação pela comunicação social. Valoriza-se mais o contacto com a natureza, o ambiente saudável, as actividades criativas, os costumes tradicionais e o artesanato. Aspira-se a maior “sentido da vida”, com harmonia das relações entre o trabalho, a família, o lazer, a actividade cívica e política. Numa síntese entre o individual e o colectivo, pode-se começar a visionar uma nova sociedade não unidimensional.
Da mesma forma, as acções políticas de âmbito nacional não se podem desligar da percepção das grandes questões planetárias transversais aos sistemas económico-sociais, como a insegurança, as guerras e o armamento, os atentados contra a natureza, a gestão perdulária de recursos naturais esgotáveis, a desertificação e fome em largas faixas do globo, as novas pandemias, a droga e outros flagelos sociais, os problemas éticos postos pelos avanços técnicos. No que diz respeito às relações económicas internacionais, chega-se a contradições extremas, com países que se declaram socialistas, como a China, e como tal vista pelo PCP, a adquirir empresas portuguesas estratégicas, privatizadas pelo actual governo.
Um programa para uma aliança de esquerda moderna deve ter tudo isto em conta, não se podendo ficar pelos aspectos sócio-económicos tradicionais. Entre muito mais, uma nova força política unitária, sem prejuízo das posições próprias de cada constituinte, deve marcar diferença, na visão geral da sociedade, como:
  • uma união política que não sobrevalorize as reivindicações estritamente materiais em relação aos aspetos qualitativos de aspirações sociais, comunitárias e individuais, de bem estar, de qualidade de vida, incluindo os ambientais e a gestão racional dos recursos.
  • a combinação do respeito pelos valores e ideais tradicionais da esquerda com uma compreensão, traduzida na ação, dessas grandes mudanças sociais das cinco últimas décadas, da estrutura social, do trabalho, das aspirações individuais.
  • a abertura aos problemas colocados pelas mutações sociais desta última metade de século, o questionamento do sistema, a atenção aos grandes problemas transversais (a paz, o ambiente, a fome em grande parte do mundo, etc), a defesa dos valores comunitários, o conceito de desenvolvimento sustentado e a recusa do crescimento económico “sem maneiras”;
  • a valorização dos interesses e aspirações individuais, em harmonia com o desenvolvimento social.
B. Os princípios e o exemplo da vida política
Os partidos da esquerda à esquerda do PS, mesmo quando criticados por outros motivos, beneficiam de uma imagem geralmente favorável quanto à sua honestidade. Já os do sistema de poder destas últimas décadas, o PS e a direita, são vistos como aparelhísticos, carreiristas, clientelistas, quando não corruptos. Como se passa noutros países, e é ameaça real entre nós, isso pode derivar em aventuras populistas de consequências imprevisíveis. 
Uma aliança de esquerda afirma-se em termos de apoio eleitoral se as pessoas virem que as suas propostas são demonstradas também pela sua prática, se virem que os partidos dela integrantes funcionam internamente com as regras e princípios éticos, democráticos e de respeito mútuo que as pessoas querem ter como garantidos se esses partidos governarem.
A nova aliança popular deve:
  • ganhar uma imagem de credibilidade junto de eleitorado que até pode não se rever na esquerda partidária atual mas que é sensível à pedagogia política séria, à honestidade intelectual, ao rigor das análises e à informação correcta.
  • dar aos eleitores a segurança de que a mudança e a luta não são incompatíveis com o realismo e bom senso.
  • não merecer dúvidas de ser um movimento de gente séria, sem mancha, que nunca possa ser acusado de aproveitamentos por parte de seus dirigentes.
  • denunciar com vigor o "polvo da corrupção", a promiscuidade entre a política e os negócios, o nepotismo, mas sem com isto facilitar os aproveitamentos populistas.
  • articular de forma potencializadora a atividade a nível de Estado com a atividade junto dos corpos intermédios.
  • nortear-se transparentemente pela coerência entre as ideias e a acção, pela actuação local, pela a participação não instrumentalizadora nos movimentos sociais, pela descentralização organizativa, pela recusa do carreirista e da burocracia partidária.
  • respeitar a democracia e a liberdade como valores absolutos.
  • defender abrangentemente os Direitos do Homem, com defesa efectiva do direito à diferença, dos direitos das mulheres, das minorias étnicas, religiosas, filosóficas e sexuais.
  • lutar pela valorização da cidadania plena e da democracia participada, que não se esgotam nos mecanismos da democracia formal e representativa.
  • promover o conteúdo ético e cultural da vida social e política.
C. Política económica e social
  • defesa da igualdade de oportunidades no plano social e económico e da solidariedade, bem como da independência do poder político em relação ao poder económico.
  • coexistência de sectores de propriedade estatal e cooperativa e de propriedade privada, mantendo-se a primeira no grau necessário à viabilização das escolhas estratégicas assumidas livre e participadamente pela sociedade; e sendo a propriedade privada, na actual sociedade ainda de natureza capitalista, garantida aos pequenos e médios empresários e subordinada socialmente no caso da grande propriedade.
  • no quadro da actual fase do sistema económico, aceitação do mercado, socialmente controlado, como mecanismo regulador e como factor de satisfação das necessidades de consumo.
  • respeito pela propriedade e estímulo da iniciativa, no quadro de um planeamento democrático das das grandes linhas de estratégia económica e social, deixando ao mercado a regulação da oferta e dos preços no que transcenda esses limites estratégicos.
  • defesa dos trabalhadores, num quadro alargado de solidariedade e cooperação de forças sociais, correspondente à actual diversidade e complexidade do mundo laboral. 
  • defesa do Estado social de bem-estar, nomeadamente da segurança social, do serviço nacional de saúde e da escola pública.
  • prioridade das políticas de criação de emprego, de promoção da qualificação e de criação de condições para os emigrantes forçados a abandonar o país nestes últimos anos de crise.
  • prioridade à inovação e modernização tecnológica, à formação em novas tecnologias, nomeadamente na robotização e, em geral, combate à info-iliteracia e promoção do acesso à rede e à ciberadministração da generalidade dos cidadãos.
  • política fiscal justa em termos de redução considerável do desequilíbrio das fracções do rendimento nacional distribuídas pelo trabalho e pelo capital.
  • controlo dos movimentos de capitais, nomeadamente para paraísos fiscais.
  • reposição dos esbulhos praticados contra os mais desfavorecidos, com cortes de salários, pensões e outros benefícios sociais.
  • recusa da política austeritária determinada pelo “pensamento único europeu”, de raiz neoliberal.
  • reestruturação da dívida pública e rejeição do Tratado orçamental.
  • recuperação das empresas privatizadas, se possível, ou pelo menos o seu controlo pelo Estado.
  • controlo estatal do sector financeiro e separação da banca de investimentos e da banca comercial.
  • defesa de um projeto progressista de união europeia mas sem se ficar refém desse projeto como quadro principal das lutas nacionais, muito menos de solução em prazo útil da crise do euro.
D. Um modelo alternativo de desenvolvimento
Tudo o que fica dito se baseia num conceito de desenvolvimento que ultrapassa a visão economicista do desenvolvimento, centrada no crescimento económico, na industrialização e na urbanização intensiva. O verdadeiro desenvolvimento é um desenvolvimento sócio-económico e cultural integrado, visando um bem-estar individual e social avaliado tanto em termos de riqueza material como de qualidade de vida. É um desenvolvimento que preserva o equilíbrio ecológico, que não acentua, antes diminui, as clivagens sociais, que aproxima a cidade e o campo, que valoriza os recursos endógenos.
A afirmação de um novo modelo de desenvolvimento é coincidente com a luta pela valorização do espírito comunitário, pela solidariedade, pela intervenção cívica efectiva, pela cidadania plena. É em torno destes objectivos e de uma visão humanista renovada da vida social e do desenvolvimento que cada vez mais convergem sectores diferenciados de Esquerda com pontos de partida diferentes.
Também por isto, e concluindo, há a noção desencantada de que o actual modelo de desenvolvimento está esgotado, bem como as formas e os mecanismos institucionais que, desde há século e meio, estão ligados a esse sistema económico e a essa perspectiva de crescimento e desenvolvimento. Além disso, os mecanismos institucionais revelam uma dificuldade crescente de serem veículos e centros de acolhimento das aspirações sociais, acentuando a sua opacidade, e sem que se vejam alternativas claras.
Ganha força a convicção de que os movimentos sociais, as lutas temáticas ou transversais, as manifestações inorgânicas e várias formas de associativismo político serão terreno de geração de novas perspectivas concretas de dinâmica social.
O sistema institucional, e desde logo a aliança partidária de esquerda que se tem estado a discutir aqui, não deve obstruir essa “ascensão do social ao político”. Os novos caminhos de aprofundamento da democracia serão experimentais, vindos do auto-laboratório social e não são pré-definíveis no ordenamento constitucional e político. Para uma unidade de esquerda em moldes novos e mobilizadora, é necessária muna articulação fecunda entre partidos e movimentos sociais, com respeito mútuo, com a noção das especificidades e, determinantemente, capacidade de recepção, por parte dos partidos, a novas formas organizativas de reflexão e acção política.

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