terça-feira, 19 de agosto de 2014

Convite a uma autocrítica do PCP

Tenho defendido uma aliança da esquerda à esquerda do PS, como elemento de coesão antes de qualquer entendimento com o PS. Com isto, creio que não posso ser acusado de “anticomunista primário”, mas isto não quer dizer que não tenha muitas críticas a fazer ao PCP.
Quando eu tenho dúvidas sobre posições do PCP, o meu prezado Vítor Dias faz sempre o mesmo, remeter-me para documentos oficiais do partido. Devo admitir que, em regra e assim conduzido, encontro resposta, bem articulada, com a coerência e a solidez ideológica que habitualmente se reconhecem no “partido”. Mas não é isto que está em causa. Se eu preciso de ir ler coisas escondidas sobre a Coreia do Norte, a China, o colapso da URSS, eu que me julgo interessado e intelectualmente activo, o que se dirá do cidadão comum?
Vivemos numa época de descrédito dos partidos. Vendo bem, pode-se distinguir nela duas fases sucessivas. A actual corresponde a uma imagem de corrupção, carreirismo, clientelismo, falta de ética (particularmente a chamada ética republicana), promiscuidade entre a política e os negócios. Os partidos mais afectados são os do círculo do poder, do rotativismo, os que, como “casta”, mais estão em foco na emergência, com muitas ameaças, mas compreensivamente, dos movimentos populistas.
Os partidos de esquerda são partidos com muito idealismo, fora do sistema de benesses do sistema político e, em regra, escapam a acusações de beneficiários da degradação da democracia. Mas, particularmente no caso do PCP, estão queimados por imagens quase indestrutíveis, daquilo a que chamei a primeira fase do antipartidarismo. Quanto ao BE, fora coisas inconsistentes, como a acusação de esquerda caviar, não percebo bem a linha de ataque da comunicação social.
A atitude em relação ao PCP é de análise difícil e de solução ainda mais difícil, tanto quanto uma pessoa de fora a vê, como eu, por ir ao fundo da identidade partidária e da “defesa do forte”. Pior porque muitos críticos, dissidentes, cristalizaram uma atitude anticomunista, retribuída, que não facilita uma discussão amigável. Mais ainda, porque as dissidências reforçaram, nos que ficaram, posições ainda mais sectárias, para além de questões que nem se punham nas dissidências. É o caso, por exemplo, do neoestalinismo que, ao que sei, nunca dividiu do PCP os que saíram, porque não era posição do partido.
Para a generalidade das pessoas, o PCP é um partido de gente honesta, ainda de muitos vivos que sofreram atrocidades. É um partido de luta. Mas, pelo que toda a gente ouve, é um partido que não quer governar, que só protesta, que não quer alianças, que não considera que o PS é de esquerda. As pessoas, presas à TV, ouvem isto da manhã à noite.
Queira-se ou não, isto significa que o PCP está queimado, numa época em que o que conta não são os programas mas sim a imagem feita pelo aparelho da hegemonia ideológica e informativa.
O PCP é um partido que esteve ao serviço de Moscovo, diz-se. Que apoiou a descolonização com “esbulho” dos retornados, diz-se. Que apoiou “o louco do Vasco Gonçalves” que metia medo ao discursar, diz-se. Que saneou milhares de pessoas (só eu saneei dúzias!), diz-se. Que não quis dialogar com sectores moderados, diz-se. 
Nada disto para mim é verdade, mas há muitas outras, importantes, que são. Ainda antes do 25 de Abril, a Checoslováquia, em 1968. Desculpem a personalização. Quando entrávamos no PCP, com idealismo e sentido do risco, defrontávamo-nos com a batalha da propaganda. A nossa informação oficial, o Avante e mais esporadicamente o Militante, eram insuficientes. Algumas coisas circulavam de boca em boca, por exemplo, em 1964, quando aderi, a total adesão do partido à crítica do estalinismo (por isto, tanto escrevo a manifestar a minha estranheza com o neoestalinismo que por aí vai). Mas, sensíveis a críticas que líamos a muita degradação burocrática do socialismo, muitos seguiram sofregamente o “socialismo de rosto humano” de Dubcek.
Apesar de o PCP, depois de um período ambíguo, ter apoiado a intervenção das forças do Pacto de Varsóvia, as posições gerais do PCP, quanto à sua proposta de revolução democrática e nacional, mereciam apoio e não configuravam um modelo soviético.
Mas muitos problemas houve depois do 25 de Abril.
Houve incompreensão, em vários momentos, das contradições do MFA, alguma obsessão em apresentar como ajustado o processo revolucionário inesperado à proposta de revolução democrática e nacional do PCP e ao levantamento nacional armado.
Houve voluntarismo e sobranceria – assim se vê a força do PC! – com recrutamento descontrolado de militantes, alguns dos quais inqualificáveis oportunistas (compreensivelmente, a saírem do PCP na sequência do 25 de Novembro).
Houve sectarismo, principalmente em relação ao PS. Houve pressões políticas irrealistas, como a unicidade sindical. Mas também muita gente se esquece de muita calúnia contra o PCP, como no caso República.
Houve pouco trabalho de reflexão social e ideológica, o que se compreende bem no calor da luta, mas que era importante.
Houve irrealismo em relação ao movimento popular, como se fosse natural que as dezenas de milhares que antes aplaudiam Caetano no Jamor de repente saíssem honestamente à rua no primeiro de Maio.
Cultivou-se, como imagem de marca do funcionamento partidário, o hierarquismo com relevo burocrático do funcionário político, muitas vezes tão atarefado que desligado de uma vida social normal, o tarefismo de dedicação quase total ao partido (cheguei a ter reuniões todas as noites, sem quase ver os meus filhos), o administrativismo, com reuniões infindáveis a discutir em colectivo coisas de minudência (quantos metros quadrados de pavilhão da Festa do Avante cabiam a cada célula do meu sector).
Mesmo a seguir ao 25 de Novembro, em que era absolutamente necessária uma profunda discussão política, a atitude foi apologética, tanto mais grave para quem, e não eram poucos, sabiam o que havia, e bem, de tentativas do PCP para se evitar o drama do 25 de Novembro e que estavam entalados entre a apreciação de uma situação política condenada, como a do V governo e da corrente de esquerda do MFA, nas vésperas de Tancos, e, por outro lado, o apoio popular não controlado pelo PCP ao estertor do gonçalvismo, como no comício de Almada. Pior quando depois tiveram de ter encontros frequentes com militares.
A certa altura, para muita gente que tinha tido uma experiência ou visão diferente do PCP, e na falta de uma autocrítica sobre comportamentos negativos do partido, ou pelo menos não controlados, pôs-se a questão do abandono, como atitude de coerência política e ideológica.
Tenho para mim, e por mim, que a questão se punha em termos simples: o PCP defendia, realmente, a sociedade democrática, aberta, progressista que se lia nos seus documentos, ou, se fosse governo, imporia uma sociedade fechada, burocratizada, regulada por um espírito estreitamente colectivista, afinal a dos países do mundo soviético, que a maioria das pessoas julga que ainda são o referencial do PCP? Isto não era imaginação, era o que víamos na Soeiro.
As propostas do PCP no domínio económico, da defesa dos trabalhadores, na luta contra a política troikiana, são claras e, a meu ver, merecem todo o apoio. Mas, quanto ao modelo de sociedade, à democracia participativa no concreto, ao exercício da cidadania, à humildade ética da vida política, ao rigor intelectual, há muito a esclarecer e a fazer ganhar apoio eleitoral.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A aliança à esquerda do PS (III)

Na entrada anterior, depois de discutida a enorme mudança social e económica das últimas décadas e a forma como determinam a necessidade de uma nova política de combate pelos interesses populares e da maioria da população, ficaram prometidas algumas propostas para o futuro próximo, para a programação de uma União de Esquerda. 
Não se trata de um programa com os objectivos próprios de cada partido, nomeadamente, no caso de partidos de esquerda socialista, objectivos finais como o derrube do capitalismo e a substituição da sociedade burguesa. Uma união de esquerda só pode aspirar a posições comuns mais limitadas no alcance temporal, localizadas nesta fase do sistema económico, e, por outro lado, aceites por uma fracção tendencialmente majoritária do eleitorado.
Seguem-se algumas propostas genéricas, sem pretensões de exaustão e um pouco em lista desorganizada.
A. Enquadramento
Portugal é um país com uma situação intermédia ou mista na tendência de evolução das sociedades que se discutiu na última entrada. Vastas zonas do País e consideráveis camadas da população, mesmo das zonas mais desenvolvidas vivem em atraso económico e cultural tal que os novos problemas sociais ainda não exigem uma revisão radical das linhas tradicionais de acção da Esquerda.
Mas ao mesmo tempo, e de forma mais evidente no eixo litoral, enxertou-se sobre este atraso uma formação social fortemente terciarizada, com acentuadas alterações de composição social, valores e aspirações. Também no domínio económico e no reflexo no emprego se manifesta esse carácter intermédio. Não temos nenhum dos pólos extremos, que resultam em vantagem competitiva (custo/hora do investimento tecnológico, que equivale hoje ao custo/hora do trabalho em países de salários baixos, como a China).
Um programa de unidade de uma nova frente popular e patriótica tem forçosamente de dar uma resposta actualizada a esta nova situação – também importante em outras partes do mundo – de sociedades intermédias.
Como discutido anteontem, uma nova política deve responder a esta situação objectiva mas também aos factores subjectivos de insatisfação que analisámos. Deseja-se maior flexibilidade e variabilidade na vida pessoal, nos gostos e prazeres, compreendem-se melhor os efeitos da massificação, nomeadamente a manipulação pela comunicação social. Valoriza-se mais o contacto com a natureza, o ambiente saudável, as actividades criativas, os costumes tradicionais e o artesanato. Aspira-se a maior “sentido da vida”, com harmonia das relações entre o trabalho, a família, o lazer, a actividade cívica e política. Numa síntese entre o individual e o colectivo, pode-se começar a visionar uma nova sociedade não unidimensional.
Da mesma forma, as acções políticas de âmbito nacional não se podem desligar da percepção das grandes questões planetárias transversais aos sistemas económico-sociais, como a insegurança, as guerras e o armamento, os atentados contra a natureza, a gestão perdulária de recursos naturais esgotáveis, a desertificação e fome em largas faixas do globo, as novas pandemias, a droga e outros flagelos sociais, os problemas éticos postos pelos avanços técnicos. No que diz respeito às relações económicas internacionais, chega-se a contradições extremas, com países que se declaram socialistas, como a China, e como tal vista pelo PCP, a adquirir empresas portuguesas estratégicas, privatizadas pelo actual governo.
Um programa para uma aliança de esquerda moderna deve ter tudo isto em conta, não se podendo ficar pelos aspectos sócio-económicos tradicionais. Entre muito mais, uma nova força política unitária, sem prejuízo das posições próprias de cada constituinte, deve marcar diferença, na visão geral da sociedade, como:
  • uma união política que não sobrevalorize as reivindicações estritamente materiais em relação aos aspetos qualitativos de aspirações sociais, comunitárias e individuais, de bem estar, de qualidade de vida, incluindo os ambientais e a gestão racional dos recursos.
  • a combinação do respeito pelos valores e ideais tradicionais da esquerda com uma compreensão, traduzida na ação, dessas grandes mudanças sociais das cinco últimas décadas, da estrutura social, do trabalho, das aspirações individuais.
  • a abertura aos problemas colocados pelas mutações sociais desta última metade de século, o questionamento do sistema, a atenção aos grandes problemas transversais (a paz, o ambiente, a fome em grande parte do mundo, etc), a defesa dos valores comunitários, o conceito de desenvolvimento sustentado e a recusa do crescimento económico “sem maneiras”;
  • a valorização dos interesses e aspirações individuais, em harmonia com o desenvolvimento social.
B. Os princípios e o exemplo da vida política
Os partidos da esquerda à esquerda do PS, mesmo quando criticados por outros motivos, beneficiam de uma imagem geralmente favorável quanto à sua honestidade. Já os do sistema de poder destas últimas décadas, o PS e a direita, são vistos como aparelhísticos, carreiristas, clientelistas, quando não corruptos. Como se passa noutros países, e é ameaça real entre nós, isso pode derivar em aventuras populistas de consequências imprevisíveis. 
Uma aliança de esquerda afirma-se em termos de apoio eleitoral se as pessoas virem que as suas propostas são demonstradas também pela sua prática, se virem que os partidos dela integrantes funcionam internamente com as regras e princípios éticos, democráticos e de respeito mútuo que as pessoas querem ter como garantidos se esses partidos governarem.
A nova aliança popular deve:
  • ganhar uma imagem de credibilidade junto de eleitorado que até pode não se rever na esquerda partidária atual mas que é sensível à pedagogia política séria, à honestidade intelectual, ao rigor das análises e à informação correcta.
  • dar aos eleitores a segurança de que a mudança e a luta não são incompatíveis com o realismo e bom senso.
  • não merecer dúvidas de ser um movimento de gente séria, sem mancha, que nunca possa ser acusado de aproveitamentos por parte de seus dirigentes.
  • denunciar com vigor o "polvo da corrupção", a promiscuidade entre a política e os negócios, o nepotismo, mas sem com isto facilitar os aproveitamentos populistas.
  • articular de forma potencializadora a atividade a nível de Estado com a atividade junto dos corpos intermédios.
  • nortear-se transparentemente pela coerência entre as ideias e a acção, pela actuação local, pela a participação não instrumentalizadora nos movimentos sociais, pela descentralização organizativa, pela recusa do carreirista e da burocracia partidária.
  • respeitar a democracia e a liberdade como valores absolutos.
  • defender abrangentemente os Direitos do Homem, com defesa efectiva do direito à diferença, dos direitos das mulheres, das minorias étnicas, religiosas, filosóficas e sexuais.
  • lutar pela valorização da cidadania plena e da democracia participada, que não se esgotam nos mecanismos da democracia formal e representativa.
  • promover o conteúdo ético e cultural da vida social e política.
C. Política económica e social
  • defesa da igualdade de oportunidades no plano social e económico e da solidariedade, bem como da independência do poder político em relação ao poder económico.
  • coexistência de sectores de propriedade estatal e cooperativa e de propriedade privada, mantendo-se a primeira no grau necessário à viabilização das escolhas estratégicas assumidas livre e participadamente pela sociedade; e sendo a propriedade privada, na actual sociedade ainda de natureza capitalista, garantida aos pequenos e médios empresários e subordinada socialmente no caso da grande propriedade.
  • no quadro da actual fase do sistema económico, aceitação do mercado, socialmente controlado, como mecanismo regulador e como factor de satisfação das necessidades de consumo.
  • respeito pela propriedade e estímulo da iniciativa, no quadro de um planeamento democrático das das grandes linhas de estratégia económica e social, deixando ao mercado a regulação da oferta e dos preços no que transcenda esses limites estratégicos.
  • defesa dos trabalhadores, num quadro alargado de solidariedade e cooperação de forças sociais, correspondente à actual diversidade e complexidade do mundo laboral. 
  • defesa do Estado social de bem-estar, nomeadamente da segurança social, do serviço nacional de saúde e da escola pública.
  • prioridade das políticas de criação de emprego, de promoção da qualificação e de criação de condições para os emigrantes forçados a abandonar o país nestes últimos anos de crise.
  • prioridade à inovação e modernização tecnológica, à formação em novas tecnologias, nomeadamente na robotização e, em geral, combate à info-iliteracia e promoção do acesso à rede e à ciberadministração da generalidade dos cidadãos.
  • política fiscal justa em termos de redução considerável do desequilíbrio das fracções do rendimento nacional distribuídas pelo trabalho e pelo capital.
  • controlo dos movimentos de capitais, nomeadamente para paraísos fiscais.
  • reposição dos esbulhos praticados contra os mais desfavorecidos, com cortes de salários, pensões e outros benefícios sociais.
  • recusa da política austeritária determinada pelo “pensamento único europeu”, de raiz neoliberal.
  • reestruturação da dívida pública e rejeição do Tratado orçamental.
  • recuperação das empresas privatizadas, se possível, ou pelo menos o seu controlo pelo Estado.
  • controlo estatal do sector financeiro e separação da banca de investimentos e da banca comercial.
  • defesa de um projeto progressista de união europeia mas sem se ficar refém desse projeto como quadro principal das lutas nacionais, muito menos de solução em prazo útil da crise do euro.
D. Um modelo alternativo de desenvolvimento
Tudo o que fica dito se baseia num conceito de desenvolvimento que ultrapassa a visão economicista do desenvolvimento, centrada no crescimento económico, na industrialização e na urbanização intensiva. O verdadeiro desenvolvimento é um desenvolvimento sócio-económico e cultural integrado, visando um bem-estar individual e social avaliado tanto em termos de riqueza material como de qualidade de vida. É um desenvolvimento que preserva o equilíbrio ecológico, que não acentua, antes diminui, as clivagens sociais, que aproxima a cidade e o campo, que valoriza os recursos endógenos.
A afirmação de um novo modelo de desenvolvimento é coincidente com a luta pela valorização do espírito comunitário, pela solidariedade, pela intervenção cívica efectiva, pela cidadania plena. É em torno destes objectivos e de uma visão humanista renovada da vida social e do desenvolvimento que cada vez mais convergem sectores diferenciados de Esquerda com pontos de partida diferentes.
Também por isto, e concluindo, há a noção desencantada de que o actual modelo de desenvolvimento está esgotado, bem como as formas e os mecanismos institucionais que, desde há século e meio, estão ligados a esse sistema económico e a essa perspectiva de crescimento e desenvolvimento. Além disso, os mecanismos institucionais revelam uma dificuldade crescente de serem veículos e centros de acolhimento das aspirações sociais, acentuando a sua opacidade, e sem que se vejam alternativas claras.
Ganha força a convicção de que os movimentos sociais, as lutas temáticas ou transversais, as manifestações inorgânicas e várias formas de associativismo político serão terreno de geração de novas perspectivas concretas de dinâmica social.
O sistema institucional, e desde logo a aliança partidária de esquerda que se tem estado a discutir aqui, não deve obstruir essa “ascensão do social ao político”. Os novos caminhos de aprofundamento da democracia serão experimentais, vindos do auto-laboratório social e não são pré-definíveis no ordenamento constitucional e político. Para uma unidade de esquerda em moldes novos e mobilizadora, é necessária muna articulação fecunda entre partidos e movimentos sociais, com respeito mútuo, com a noção das especificidades e, determinantemente, capacidade de recepção, por parte dos partidos, a novas formas organizativas de reflexão e acção política.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

A aliança à esquerda do PS (II)

Numa entrada anterior, em que se discutia um processo de construção de uma aliança de esquerda, de um centro “núcleo duro” para um orbital de “forças fracas”, concluíu-se que, para muitos milhares de desiludidos, isto não bastaria sem ser acompanhado por novas perspectivas de prática política, de ética republicana-democrática, de perspectiva de um socialismo moderno, humanístico.
Não basta a junção das vontades e dos votos dos que se situam na verdadeira esquerda. São só 20% do eleitorado. Da zona esquerda do PS pouco virá. Há que contar mais com desiludidos, votantes em branco e principalmente abstencionistas ou cada vez mais cativados pelos populismos. Mas o que pode motivar uma inflexão para a esquerda desses desiludidos? E quem são eles?
É banal termos de considerar que a estrutura social (de classes) se complexizou. Nos tempos de Marx, a enorme massa de proletários tinha na sua margem apenas uma fracção de camponeses seus potenciais aliados e uma pequena fracção de pequeno-burgueses (comerciantes e empresários pior conta própria, artesãos, funcionários). Hoje, o operariado, incluindo o agrícola, está em retracção, aumenta enormemente o pessoal dos serviços e há grande osmose social, com influência e partilha de características ideológicas entre camadas sociais diferentes.
Isto significa que: 1. as bandeiras socialistas tradicionais e revolucionárias têm menor impacto. 2. a luta deve ser apelativa a largas camadas sociais não proletárias. 3. mas deve ser conduzida com o objectivo final revolucionário do anticapitalismo e do socialismo, sem o que deriva facilmente para conciliações com o capitalismo hoje em ofensiva, sob a forma de neoliberalismo.
Isto coloca grandes desafios à definição de uma política de unidade, a começar pelas crispações muitas vezes defensivas, por partidos e outras organizações não conseguirem alargamento do seu espaço, faltando-lhes novas propostas de sociedade.
Mantém-se o problema central, de definição da linha separadora entre a coerência e o oportunismo. Para simplificar, e indo logo ao objectivo histórico e estratégico, o critério para uma aliança estratégica (mas não necessariamente para uma aliança táctica) é, sem muita discussão, o da recusa de conciliação com o capitalismo, de terceiras vias, de edificação de uma sociedade socialista. Mas mesmo aqui já entramos em discussão, entre os que defendem uma via revolucionária em duas etapas ou os que querem queimar a etapa intermédia.
Mas entre a coerência contra o oportunismo, por um lado, e o sectarismo e a rigidez ideológica a margem é muitas vezes estreita. Já aqui escrevi sobre o sectarismo à esquerda e sobre o fanatismo de muitos militantes mais papistas do que o papa. É tristemente impressionante que no PCP, por exemplo, se esteja a afirmar uma corrente revisionista da condenação do estalinismo, no XX Congresso do PCUS. É pena que desconheçam o que foi o reconhecimento pelo PCP da justeza do relatório Khruschov, agora até chamado, pasme-se, de agente da CIA.
É legítimo que o PCP invoque a sua fundamentação marxista-leninista, que outros se revejam em Trotsky, outros na teologia da libertação, outros considerem a obra de Marx como guia ainda adequado para enquadramento geral de ideias e de método de análise e síntese, mas sem ser um sistema fechado e acabado. Simplesmente, o mundo, a economia, a sociedade mudaram muito e todos devem ter a humildade de reconhecer que, sozinhos, não têm a solução única e milagrosa.
Mais aguda, em termos de princípios condicionadores , é a questão nova da necessidade de uma “alternatividade” (o que é mais do que uma alternativa, porque é uma visão e não só um programa de acção) correspondendo às mudanças sociais que já vêm do pós-guerra.
Quando a esquerda à esquerda do PS avança com oscilações e em pequenos passos, menos até do que 2%, não só é miragem a sua conquista eleitoral do poder como é necessário analisar o que há de conjuntural, em cada momento, nos avanços eleitorais, em vez de progressiva conquista de eleitorado convencido.
Pelo menos dois factores parecem relevantes para a compreensão desta dificuldade da esquerda radical em se aproximar do poder e disso dar perspectivas motivadoras a parte do eleitorado agora perplexa e desanimada. O primeiro é que a valorização de um partido, mais do que por programas ou propostas que não são lidas, se faz muito pela ideia de que a sociedade que ele enformará no governo pode ser vista antecipadamente pelo seu funcionamento interno, o seu estilo (muitas vezes filtrado pelos media), as suas referências estrangeiras. O segundo factor é a falta de resposta a novas características sociais, a questões transversais, a novas formas de pensar e de estar, em virtude da massificação e da osmose social.
Por muito que o PCP seja respeitado pelo seu passado, pela sua firmeza de luta e pela dedicação dos seus militantes, não consegue libertar-se, muitas vezes por culpa própria, da imagem – ou da memória até já muitas vezes indirecta da imagem – de um partido sectário, monolítico, arrogante, coisas que as pessoas não querem ver nos seus governantes.
O BE não conseguiu abrir caminho por essa falha na geologia do PCP. No entanto, convém ter em conta outras experiências, como as do Partido Comunista Grego (KKE) ou do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que pagam algum dogmatismo com o aproveitamento eleitoral de outros partidos, mais moderados ou eventualmente em deriva social-democrata, respectivamente o Syriza e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Passando para o segundo factor, o da alteração social, é imperioso dar-lhe resposta adequada, saindo dos arquétipos das propostas políticas tradicionais. Comece-se por notar uma coisa: onde se vê, à esquerda, discutir-se, sem chavões, coisas elementares como: porque cresce a abstenção? quem são socialmente os abstencionistas? porque saem à rua meio milhão de pessoas (muitos dos quais jovens) em 15 de Setembro e depois desmobilizam? porque tem relativo sucesso uma partido como o Livre, simpático mas que de inovador só teve uma proposta à moda de método eleitoral interno? como se pode evitar que o descrédito dos partidos instalados conduza a soluções populistas? etc.
A agudização do conflito capital-trabalho, nesta fase de neoliberalismo e, reconheça-se objectivamente, de alguma retracção do poder operário, nomeadamente dos sindicatos, não invalida muitos ensinamentos do passado. Mas aparece numa situação social, económica, cultural e tecnológica (com especial destaque para as tecnologias da informação e a internet) radicalmente diferente.
Como dito antes,
“As profundas mutações sofridas pelas sociedades industriais desenvolvidas, com importantes reflexos nas sociedades intermédias e sub-desenvolvidas, acumularam novos factores de crise. Criou-se riqueza, possibilitou-se um alto padrão de consumo, subiu o nível médio de educação e mundializou-se a comunicação e a informação. Mas diluiu-se a cidadania, enfraqueceu a privacidade, intensificaram-se em abstracto as interdependências sociais com perda das relações gregárias tradicionais (inclusivamente dos laços familiares).A vida individual é mais autista, decorrendo entre o trabalho muitas vezes desinteressante e pouco criativo, a habitação em ambiente residencial descaracterizado e os lazeres massificados. A menor disponibilidade de tempo e atenção psicológica para a família isolam e vulnerabilizam os jovens. Os ritmos de vida acelerados e a competitividade agressiva geram crescente “stress” individual e social, com reflexos na expansão da criminalidade e na evasão alienante por via das drogas, do alcoolismo ou da adesão a múltiplos irracionalismos e seitas. O egoísmo, a competição e a insegurança conduzem, com outros factores, ao preocupante crescimento do racismo e da xenofobia, com “Estado fortaleza”.(…) Cresce o desemprego jovem e, quando há emprego, é frequentemente subqualificado em relação às habilitações. A visão ultraliberal incentiva os governos de direita a destruir pilares do Estado social, como a segurança social, o ensino público e o serviço nacional de saúde. O sector primário foi devastado.A satisfação crescente das necessidades materiais não é acompanhada por um sentimento paralelo de felicidade humana e de alegria de vida, e essa “tristeza” de uma sociedade sem fraternidade e sem idealismo reflecte-se politicamente naquilo a que já se chamou de “melancolia da democracia”, com instituições democráticas desacreditadas ainda não ultrapassadas por uma democracia participativa.A rigidez ideológica de quase um século era tranquilizadora, na medida em que gerava um sistema de tensão estável com fácil identificação e arrumação esquemática de ideias e propostas políticas. Todas as questões se colocavam em função de antinomias estabelecidas: a dicotomia capital-trabalho a nível nacional, a dicotomia leste-oeste a nível mundial. A guerra fria, com o seu espectro de cataclismo nuclear, consolidava todas as visões bipolares e desculpabilizava as atitudes redutoras. Esta construção ruíu definitivamente. Estamos agora num momento de reexame de todas as ideias, numa época de análise que precede forçosamente uma futura época de novas sínteses. Nestas condições, a seriedade de qualquer proposta política só se pode medir pela flexibilidade com que procurar ajustar-se a este quadro de mudança e reavaliação, não por certezas falsamente tranquilizantes que são hoje um logro histórico e conduzem a becos teóricos sem saída.”
Continua amanhã, com algumas propostas para o futuro próximo, para a programação de uma União de Esquerda.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Estrangeirados? O rei vai nu

No fortíssimo e uníssono coro de protesto contra a recente avaliação das unidades de investigação pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), tem destoado, como defensor, António Coutinho. É um investigador com reputação internacional, mas um dos que, chegando a uma fase de competição internacional difícil, regressou a Portugal, como sempre muito mais aureolado do que os que por cá, dificilmente, foram fazendo as bases da nossa actual ciência. Outros, mesmo assim, fizeram o seu caminho cá com respeito pelos que cá estavam. Coutinho comprou ao desbarato um instituto, o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), com despedimento colectivo do seu pessoal. É feio, entre colegas.
Com a sua experiência internacional, não percebo como é que António Coutinho pode escrever coisas como o artigo no Expresso deste sábado (9.8.2014). “Dever” do seu cargo de presidente do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia? Amizade com o presidente da FCT, Miguel Seabra, que ele trouxe para o IGC?
Deixo de lado, por agora, o simplismo do argumento de António Coutinho: “Fazer investigação com dinheiro público não é um direito natural. Sendo manifestamente incomportável financiar todas as UI que livremente se constituem (particularmente quando o país abriu falência), só há duas alternativas: ou se distribui um pouco por todas em prejuízo das que mais e melhor trabalham e do país, que certamente perderia os seus melhores investigadores; ou se permite a sobrevivência das melhores UI, deixando de fora as menos competitivas”.
Há um mundo de questões mais subtis por detrás deste simplismo, questões bem conhecidas de quem sabe um pouco de política científica. Mais e melhor trabalhar avalia-se pelo mérito científico propriamente dito, pelo impacto directo na economia ou pelo resultado na formação de novos cientistas? Podem as UI de alto méritos progredir sem o alimento de base de outras menos salientes? Tudo é branco ou preto ou a rede científica é complexa, cheia de interacções e “feedbacks”? Etc.
Mais surpreendente é outra afirmação de António Coutinho, a desvalorizar a importância desta questão, nas universidades. “O ensino superior em países dos mais competitivos é maioritariamente feito em instituições e por professores que não fazem investigação. Ser docente-investigador mediano ou medíocre não é melhor do que ser “apenas” um excelente docente”.
Isto é rotundamente falso. Não querendo imputar a António Coutinho desonestidade intelectual, tenho de pensar em ignorância. Ou então nessa coisa bem portuguesa, uma forma de esquizofrenia em que o cérebro funciona muito bem na profissão mas completamente desparafusado na análise do que nos rodeia.
Desde o nascimento da ciência moderna, mas mais marcadamente depois da reforma das universidades alemãs por Humboldt, é paradigma da ideia de universidade a de instituição que providencia educação superior de alta qualidade partindo do princípio de que ela só é possível quando os professores também são investigadores, quando o meio universitário está indissociavelmente imbuído da ciência, quando os alunos estudam em ambiente de investigação e quando há um equilíbrio forte entre ensino de graduação e ensino de pós-graduação.
A par desta noção dominante de universidades de investigação (“research universities”), apareceram na segunda metade do século XX as chamadas universidades de ensino (“teaching universities”), algumas das quais bem conhecidas, como a Universidade do Estado da Califórnioa, a Dartmouth ou a Notre Dame. Mas, 1. são a minoria; 2. os seus professores são investigadores; 3. não conferem graus de pós-graduação.
1. São a minoria. Basta ver os principais “rankings” de universidades para se verificar que a grande maioria das universidades tem investigação própria, “intramuros” e que ela valorizada em alto grau.
2. Não tendo essas universidades os seus próprios centros de investigação, têm contratos com centros exteriores, pera apoio à investigação dos seus docentes e à disponibilidade de um ambiente de investigação ao ensino dos seus alunos. Em Portugal, a alteração da lei dos graus, pelo DL 115/2013, permitiu que a avaliação dos cursos tivesse em conta a qualidade científica dos docentes aferida também pela sua actividade científica extra-muros. Foi um enorme presente às universidades privadas, feito por um ministro que, enganosamente, sempre tentou transmitir a imagem de rigor.
3. Não tendo investigação própria, as universidades de ensino formam apenas licenciados (BSc), não podendo pretender atribuir graus, como o mestrado e o doutoramento, que pressupõem uma boa formação científica, em exercício. Não é o que se passa cá. A lei exige que uma universidade faculte, pelo menos, seis mestrados e três doutoramentos, cada um deles com um corpo docente qualificado. Mas, como a qualificação pode ser no exterior, as universidades privadas podem conferir doutoramentos e não ter qualquer investigação, sendo apenas liceus de nível superior.
Sei do que falo. Quando fui contratado para desenvolver a investigação na universidade, fiz propostas que me foram sempre recusadas, até porque o herdeiro do patrão não abdicava desse pelouro. Que estupidez a minha, pensar que, pelo apoio que tinha de muitos colegas que viam em mim alguma força de mudança, não ter percebido no que estava metido.
NOTA – Isto faz-me lembrar o que me disse há dias um velho amigo, sobre a firma em que trabalha: “gosto do velho, que já está fora disto tudo. Foi um homem que veio de baixo, teve um sonho, foi sempre honesto e sabia o que era a vida dura. Os filhos, criados como meninos do papá e que hoje governam isto é que são execráveis”.