segunda-feira, 28 de julho de 2014

Retomando a entrada anterior - a aliança à esquerda do PS

O coro frequentemente acrítico que reclama a convergência à esquerda baseia-se na necessidade de impedir a aliança do PS com a direita e destacando-o de uma governação mais ou menos claramente comprometida com o neoliberalismo e a submissão aos ditames da União Europeia. Dizer isto é uma lapalissada e é preciso ir mais longe, mesmo sem colocar a questão que pode complicar o debate, se o PS é de esquerda. É possível essa movimentação do PS para um entendimento de esquerda e está o PS disponível? Admita-se que sim. 
Procurará o PS, sem maioria absoluta, um compromisso com outros, à direita ou à esquerda, ou prefere uma política de pêndulo, com alianças pontuais? Admita-se que vai em compromissos permanentes.
Depois, para que esse “arrastamento” do PS para a esquerda não seja um logro e uma acção sem consequências, a que compromissos podem chegar o PS, o PCP e o BE (para só falar de partidos) quando a defesa (dita como comum) do Estado social, do crescimento e do emprego exigem a sustentabilidade da dívida (com reestruturação) e a rejeição do Tratado orçamental? Mas admita-se que podem, para não nos desviarmos do objectivo central desta entrada.
Admita-se tudo isso, mas com consciência de que é altamente improvável e que há que tentar a convergência da forma mais eficaz possível. Uma constatação desde início é que a maioria dos “convergencistas” mostram tanta simpatia por hipóteses emergentes de novas organizações políticas, divisionistas, quanto hostilidade manifesta ao PCP (provavelmente por velhos traumatismos pessoais) e ao BE (por causas porventura menos compreensíveis). Assim, valorizam muito mais os novos grupos pela sua abertura ao PS do que os criticam pela sua ostensiva falta de diálogo com o PCP e o BE.
(NOTA – o que, no caso do BE, não é muito coerente com o 3D ter andado a desafiá-lo para dissolução numa nova entidade não pró-PCP e não pró-PS, mas visivelmente orientada para aliança com o PS.)
A questão principal que se põe a muitos “convergencistas” sinceros e bem-intencionados é: a pressão eficaz sobre o PS vem principalmente 1. do reforço dos partidos à sua esquerda, num amplo movimento unitário com organizações, movimentos e grupos informais de natureza social, cultural, comunitária ou de defesa de causas transversais; ou 2. de grupos minúsculos, com capacidade negocial reduzida por disponibilidade antecipada para a rendição e grupos que são campo de lutas inglórias entre personalidades?
(NOTA – É claro que a primeira hipótese também passa por idêntica pressão junto do PCP e do BE para debate sobre vícios que contribuem para o afastamento de eleitores ou sua fixação em velhos estereotipos.)
Dito isto, lembre-se que há muito se tem defendido neste blogue que o esforço de alianças à esquerda (em sentido lato, do PS e da esquerda à sua esquerda) deve ser empreendido com diferentes níveis de compromisso, de objectivos e de identidades estratégicas. Daí também diferentes processos e fases distintas. Primeiro uma aliança coerente entre a esquerda à esquerda do PS, com sentido estratégico; depois, um entendimento táctico entre essa aliança e o PS.
Tudo isto porque – até já devia haver vergonha de se escrever tal vulgaridade, mas parece ser preciso – a urgência sempre invocada não pode justificar uma acção com consequências mais danosas (a história é feita de urgências?).
Transcrevendo duas conclusões da última entrada,
A aliança entre a esquerda à esquerda do PS e este é importante e indispensável, por muitos anos, para derrotar a ofensiva do capitalismo em fase de neoliberalismo, mas passa, primeiro, pelo reforço de uma aliança mais coesa e consequente entre as forças políticas, sociais e comunitárias e os indivíduos sem partido da esquerda à esquerda do PS. 
É urgente promover-se a realização de uma grande iniciativa unitária marcadamente de esquerda, com "paridade funcional" do PCP e do BE, mais organizações, movimentos sociais, organismos comunitários formais ou informais e cidadãos que partam de pontos essenciais comuns para um programa de esquerda: combate à política de austeridade, reposição dos esbulhos dos últimos três anos, crescimento e emprego; rejeição do tratado orçamental; noção de que a dívida é insustentável e precisa de ser reestruturada, em moldes técnicos a estudar. 
Entretanto, o PCP e o BE tomaram a iniciativa de acções unitárias, mas separadas, não obstante uma reunião entre eles. O PCP, em 18 de Junho, anuncia que, “ao mesmo tempo que tem em curso uma acção de diálogo e debate com democratas e patriotas em reuniões e contactos diversos, (que) esta semana teve início com a realização em Lisboa e no Porto de reuniões com pessoas sem filiação partidária, o PCP toma agora a iniciativa de propor a realização de um conjunto de reuniões e encontros com forças, sectores sociais e políticos e outras entidades. 
Por sua vez, já em carta de 6 de Junho, os coordenadores do BE, Catarina Martins e João Semedo, declararam que “estamos empenhados nesse percurso de pensamento e articulação com vista a formas de convergência de oposição e de proposta em torno de bases programáticas claras que, gerando mobilização e entusiasmo, permitam ganhar força política, social e eleitoral. A dimensão dos problemas que o país enfrenta exige uma grande convergência das esquerdas.”, tendo-se declarado mais tarde “a necessidade de um diálogo aberto entre partidos e forças que lutam contra a austeridade, que saiba juntar energias e envolver cidadãos independentes, ativistas e movimentos sociais, indispensáveis ao esforço para a construção de uma alternativa alargada.”
Em reunião entre os dois partidos, conclui-se que há uma grande convergência, que há uma estrada comum a percorrer mas “em bicicletas separadas”. Pode causar alguma perplexidade que o esforço unitário esteja a ser desenvolvido em paralelo, com cada um dos dois partidos a convidar os seus dialogantes privilegiados. Não é mobilizador para muitos que, honestamente, se queixam de que a esquerda não se entende (embora talvez muitos desses estejam a falar da esquerda larga). 
É certo que, em política, não se deve ser voluntarista e cada coisa a seu tempo. No entanto, sem se negar a total autonomia dos partidos para desenvolverem estas iniciativas, pode-se chamar a atenção para o facto de os partidos terem uma imagem de certa forma desgastada e em parte em relação a aspectos estereotipados, de sectarismo e enquistamento. Este é um momento em que um processo unitário inovador, no conteúdo e na forma, contribuiria para desfazer clichês.
Acresce que se está a pouco mais de um ano de eleições legislativas e que ambos os partidos reconhecem ser objectivo comum “a convergência mais importante é, para o líder do PCP, o acordo em relação à necessidade de derrotar o governo e romper com a sua política.” E assumem ambos como eixos de luta “a renegociação da dívida, as condições necessárias para o desenvolvimento económico, a necessidade de uma reflexão sobre o Euro, a devolução do que foi roubado pelo governo aos trabalhadores e pensionistas, a defesa dos Serviços Públicos, entre outros” (PCP) ou “construir um amplo campo de recusa das imposições da União Europeia e de concretização de um programa de transformação social fundado no primado dos direitos constitucionais e na universalidade dos serviços públicos” (BE).
Se os dois partidos de esquerda consequente chegarem a uma plataforma comum, programática e de acção, com esta base, provavelmente não conseguirão o alinhamento com ela do PS, mas ficam em posição política mais forte e perante o eleitorado para evidenciar o colaboracionismo do PS. Mas o tempo urge (e principalmente o tempo eleitoral) para a elaboração dessa plataforma, tempo que não deve ser perdido com acções unilaterais pelas quais ficaria à espera, como acto final, a conjugação das duas correntes numa aliança comum. As pessoas estão desanimadas e descrentes, os partidos devem olhar para isso, para fora das suas sedes.
Também muitos provavelmente entenderão que uma aliança sólida não se pode circunscrever aos partidos. Eles próprios os dizem, referindo-se a outras organizações não partidárias, a movimentos e a cidadãos independentes, a quem se estão a dirigir. Ora, parece evidente que a congregação desse conjunto de organizações é muito mais fácil em torno de um bipolo partidário, evitando conotações, um aspecto sempre muito sensível para os independentes.
Sem a pretensão de ensinar o padre-nosso ao vigário, aqui ficam algumas notas sobre o que se considera essencial num processo de construção de numa aliança da esquerda à esquerda do PS (mas a dialogar depois com o PS).
1. Uma das preocupações centrais deve ser a de desfazer o mito largamente difundido (pelo PS e pela comunicação social) de que o PCP e o BE são negativistas, partidos de oposição pela oposição, partidos “sem vocação para governar” (coisa absurda, por natureza). Pessoas honestas aceitam esta noção antidemocrática de “arco da governação”, ao que se deve responder, com mais ênfase do que até agora, com a articulação entre a crítica e as propostas de acção política, nomeadamente as propostas concretizadas para acção de governo. E não bastam os programas eleitorais, que ninguém lê.
2. A declaração da nova plataforma unitária de esquerda e as suas propostas programáticas de governo devem ser logo transformadas em proposta ao PS de discussão de um entendimento de esquerda mais alargado. Não devem ficar só como desafio ao PS e devem ser vistas pelo eleitorado como uma prova de boa vontade a favor de um entendimento contra a política austeritária e neoliberal. O eleitorado julgará da honestidade de cada uma das partes.
3. A nova aliança deve fugir aos esquemas tradicionais de relação de forças entre as componentes, para que não seja um jogo de soma zero, em que alguém ganha à custa de alguém que perde. Deve ser e pode ser um jogo de potencializarão, em que todos ganham.
4. Os dois partidos devem reconhecer que, num quadro de desgaste generalizado da imagem dos partidos, e também para se diluírem crispações e velhos antagonismos pessoais de muitos ex-membros dos dois partidos, há que dar grande relevo às entidades não partidárias, formais ou informais. Pela sua actividade continuada e pelas suas posições muito próximas das dos dois partidos da esquerda consequente, parecem especialmente bem colocadas, à partida, a Iniciativa para a Auditoria Cidadã da Dívida e o Congresso Democrático das Alternativas (o que não é o mesmo que o manifesto 3D).
5. Uma das formas possívels de ultrapassagem das limitações apontadas seria a realização, no mais curto prazo possível, de um fórum para a unidade, com uma comissão promotora equitativa, com representantes do PCP, do BE, da CGTP, do CDA e da IAC, que cooptariam pessoas com actividade conhecida de reflexão e de intervenção política, mas sem serrem personalidades mediáticas. Seria essencial que esse fórum não se limitasse a ser uma realização única, antes o lançamento de uma acção persistente de debate, descentralizado e com recurso às novas tecnologias da informação e às redes sociais.
6. Para além de um programa de defesa do Estado social, de reparação dos esbulhos das classes populares e de reconquista da independência nacional no plano monetário e orçamental, é altura de propostas alternativas de acção política, nestes domínios, serem enquadradas por uma nova visão da sociedade, da cidadania e da democracia participativa, do papel do trabalho, da renovação da vida comunitária, da família e dos lazeres, da solidariedade, da interculturalidade étnica, dos valores da educação e da cultura, de uma comunicação social cultural e moralmente saudável, etc. 
Isto foram preocupações de alguns partidos ou movimentos europeus há vinte anos, altura em que os Verdes europeus e outros assumiam algumas dessas preocupações antes de base renderem aos cantos de sereia social-democrata. É hoje altura de uma esquerda a renovar-se conciliar com coerência e sem oportunismo modista o seu núcleo de valores e história com a reflexão sobre a mudança, sem deixar essas bandeiras caírem nas mãos de fenómenos político-mediáticos como o 5 estrelas, o Podemos e, até certo ponto, o Livre. Muito haverá para se discutir sobre isto. Fica para entrada seguinte.

P. S. (3.8.2014) – Congratulei-me pela disponibilidade manifestada pelo PCP e pelo BE para entabularem diligências com vista a essa aliança de esquerda consequente. Escrevi com base nas notícias de jornal. Só depois li o comunicado oficial do PCP.
Para “uma alternativa que, rompendo com a política de direita de mais de 37 anos de alternância entre PS, PSD e CDS-PP, assenta numa política patriótica e de esquerda”, (…) “o PCP toma agora a iniciativa de propor a realização de um conjunto de reuniões e encontros com forças, sectores sociais e políticos e outras entidades.” O mal é dizer-se que essa alternativa “tem como elementos decisivos o desenvolvimento e intensificação da luta dos trabalhadores e do povo, a convergência dos democratas e patriotas e o reforço do PCP e dos seus aliados na CDU.”
Parece-me óbvio que não é nada disto que eu apoio e que, nesses termos, o meu desejo de uma esquerda unida é “wishful thinking”.
Como exemplo do que ainda (sempre?) se mantém de sectarismo, quase fanatismo, de muitos comunistas, admito que mais papistas do que o papa, veja-se uma cadeia de discussão em que fui bem mimoseado: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=669561593121520&set=a.113367988740886.18583.100002030573081&type=1&comment_id=670587663018913&offset=0&total_comments=65>. Mais ainda, e muito preocupante, é vir-se nitidamente como muitos discursos marxistas-leninistas no PCP, e tristemente por parte de mais novos, são claramente neoestalinistas. É só ler alguns blogues e comentários no FaceBook.

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