segunda-feira, 14 de julho de 2014

A insustentável leveza de uma certa esquerda

13.7.2014
Creio que não terei sido o único a ficar surpreendido com as notícias de ontem sobre o Bloco de Esquerda (BE), apesar de serem conhecidas algumas tensões internas. Suscitam reflexão, quer no que se relaciona com as forças e debilidades do BE e suas implicações como exemplo da situação daquela área política quer quanto às previsíveis alternativas políticas a percorrer pelos agentes desta cisão.
O espaço geográfico ocupado pelo BE é relativamente indefinido e acidental, em muito decorrendo apenas da crispação das relações entre o PS e o PCP. Várias tentativas de o aproveitar acabaram em fracasso, como a FSP, o MDP, o PRD. Repare-se que nem sequer há coerência entre essas tentativas, com um PRD quase de centro-direita e um MDP partido alternativo mas que, por incompreensão do conceito, acabava por se definir, com dificuldade de entendimento pelo homem comum, como “nem marxista-leninsta nem social-democrata”.
Muito mais ambígua foi a apresentação de uma identidade definidora do BE. O que seria a aliança de um partido trotsquista, de um partido esquerdista ex-maoísta e reduzido ao referencial albanês e de um movimento (depois partido por OPA de outro) dissidente do PCP na sequência do frustrado golpe de Moscovo de Agosto de 1991?
Parece indiscutível que, não obstante aparecer como coisa simpática e arejada, perante a referida crispação da situação à esquerda, o seu sucesso deveu-se a factores pouco sólidos, desde logo muita empolação pela comunicação social e muita encenação política, como ainda se continua a ver, por exemplo, no Syriza e no Podemos. Também a sua base de apoio tinha alguma fragilidade ideológica, com recrutamento preferencial entre jovens pequeno-burgueses e intelectuais, com atracção também por bandeiras libertárias. Daí o sucesso das “causas fracturantes”, tidas como exemplo de modernidade (ou mais correctamente, de pós-modernidade) mas rapidamente usurpadas por outros, nomeadamente pelo governo Sócrates. Também a democracia participativa, que podia ter sido uma imagem de marca, nunca se traduziu em iniciativas visíveis, a não ser casos raros de proposta de orçamentos participativos.
É em tudo isto, e muito mais, que, a bem de toda a verdadeira esquerda, o BE deve reflectir. No entanto, não sendo eu militante do BE, seria abusivo adiantar aqui mais alguma coisa sobre isso.
E o que querem os secessionistas? Aqui já entramos no domínio público da política e qualquer um pode opinar. A sua posição parece-me muito pouco transparente e, em muitos aspectos, pouco inteligente (o que não são) ou então, consequentemente, pouco vertical.
Vem logo à ideia a questão do relacionamento com o PS. Afinal, sempre houve uma sobreposição social entre o BE e sectores do eleitorado do PS mais à esquerda. Repare-se nas oscilações eleitorais, sempre mais visíveis entre o PS e o BE do que, por exemplo, entre o BE e o PCP.
A agitação no BE, simbolizada pela demissão de dirigente de Ana Drago, tem a ver com a recusa de aliança do BE com o mini-movimento (cerca de 5000 apoiantes e apenas online) do manifesto 3D. Melhor, mais do que aliança: dissolução do BE, com cedência da “chapa” partidária, numa organização que também envolveria o Livre e que, a meu ver, era gato escondido com rabo de fora: excluindo conversações iniciais com PS e PCP, tudo indicava que privilegiariam posteriormente um trabalho de “ancoragem à esquerda” (!?) do PS.
Honestamente, a comissão coordenadora do 3D veio depois assumir a inviabilidade do seu projecto e declarar que terminava todos os contactos políticos. No entanto, por exemplo, Daniel Oliveira, em crónica no Expresso, afirmava que isso não o inibia de prosseguir essa acção, a título individual. Conhecida a sua história política pessoal e as suas ligações com esta corrente dissidente do BE, mesmo tendo já deixado o BE há bastante tempo, parece-me legítimo pensar-se que podem tudo ser nós da mesma rede.
A corrente dissidente “Fórum Manifesto” que agora abandona o BE é identificada nos jornais como o movimento político que, sob a direcção de Miguel Portas, tomou o MDP, mudando o nome para Política XXI. Não sei se é bem assim. Ao que julgo saber, muitos desses ex-comunistas, incluindo dirigentes como o próprio João Semedo, José Gusmão, José Manuel Pureza ou Marisa Matias, também pertencem à tendência unitária Socialismo, com a corrente louçanista e não parece que acompanhem os secessionistas. Já a corrente UDP, agora transformada (só em parte) em tendência Esquerda Alternativa, de Luís Fazenda, mantém-se aparentemente silenciosa neste debate. Que confusão organizativa!
A corrente Fórum Manifesto, fundadora do BE, considera que a evolução do BE não concretizou os princípios e valores que constituíram o partido, pelo que deixou de se rever nele. Seria então indiscutível o direito, e até a coerência, de uma desvinculação, mas o que é estranho é que seja uma decisão colectiva, o que, habitualmente, significa a vontade de continuação de uma acção política conjunta.
Considera também que era "compromisso matricial do BE a construção de pontes e o fomento do diálogo entre as esquerdas. A memória é curta. Quem se lembra da arrogância frequente do BE e de muitas atitudes suas de sectarismo dificilmente acredita em tão piedosas intenções.
Diz também o Fórum Manifesto que quer “contribuir para a formação de convergências fortes e credíveis à esquerda do PS, com claros objectivos de influenciar a governação do país”. Não percebo de todo. Com quem se pode fazer essas convergências à esquerda do PS? Com o PCP? Não passa pela cabeça de ninguém que esta corrente o queira fazer. Com movimentos sociais, sem implantação eleitoral e de militância reduzida a momentos ocasionais? Ou com o Livre, acrescentando aos seus 2% algumas décimas que a corrente secessionista trará do BE?
Ou, de facto, o que está em causa é mais uma oferta, por ora encapotada por vergonha, de uma muleta para o PS, talvez na onda costista? A pretensão do Fórum de que a sua futura acção tenha “claros objetivos de influenciar a governação do país neste momento de urgência nacional” parece legitimar a ideia de que a sua intenção seja colocar-se num campo “respeitável” de partido de governo, obviamente que com o PS. Claro que não tem nada de mal, mas é preciso saber-se em que termos e com que condições. 
Para já, o que ficamos a saber é pela negativa: que a tendência Fórum Manifesto critica a “imagem de um partido cada vez mais virado sobre si próprio, indisponível para o diálogo e para a convergência com outras forças políticas à esquerda; centrado no protesto, e por isso indisponível para estabelecer compromissos efectivos de governação”. Que compromissos, a que preço, com que objectivos? Aguardo resposta, com curiosidade…
Anote-se também que, não se apresentando nada de radicalmente novo e diferente como ideia e forma de acção política, apenas simples movimentações tribais, porventura contaminadas por protagonismos pueris, politicamente, contribui-se perigosamente para a confusão e descrença do eleitorado.
Relembro que, na origem, os agora secessionistas representaram um dos dois grupos que saíram do PCP em 1991. É sina das dissidências comunistas darem em namoro ao PS? Foram os pinamouristas, Vital Moreira, recentemente a Renovação. Agora os acompanhantes de Miguel Portas em 1991?
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14.7.2014
O texto que antecede estava para ser publicado hoje de manhã, não fosse ter lido hoje uma notícia, “Ana Drago e Daniel Oliveira admitem aproximar-se do Livre e do PS” que confirma o que escrevi atrás, como hipótese fundamentada. Muito se mexe Daniel Oliveira! 
Vamos então ter uma grande novidade política, com a junção de Ana Drago e mais companheiros do Fórum Manifesto (30, 300? 1000?), de Daniel Oliveira e os que, do manifesto 3D, honestamente extinto, ficaram com ele como irredutíveis gauleses da convergência a todo o preço e mais o Livre, outro paladino da convergência.
As coisas ficam mais claras. O que separa estes componentes? Aparentemente nada. Justiça se lhes faça, as suas posições encaixam-se com coerência, não obstante Daniel Oliveira, no Expresso, ter criticado forte e feio a criação do Livre, assim como ter considerado então que o Livre ou um novo partido não conseguiria “ancorar” o PS a uma aliança de esquerda, obrigá-lo a adoptar uma política antiausteritária e forçar o PCP e o BE a uma postura de governo, tudo coisas que agora vêm justificar esta nova movimentação política.
Algumas declarações de Drago/Oliveira são inadmissíveis, porque não podem ser assacadas a falta de capacidade mental. “Os partidos servem para oferecer escolhas políticas às pessoas que tenham uma consequência na sua vida. Tem de haver uma consequência e não pode ser uma afirmação de princípios que não tenha depois uma disponibilidade para levar avante (com todos os constrangimentos que conhecemos) uma via diferente deste empobrecimento perpétuo (…) Uma posição exclusivamente de princípio à esquerda, mas sem consequência alguma, tem pouca utilidade”. Quer isto dizer que necessário é dar esperanças de sucesso eleitoral, oferecer “consequências” (sic, ?) seja a que preço for, mesmo abdicando dos tais “princípios à esquerda”? Não posso crer em tal descarado oportunismo.
Depois, Ana Drago, criticando a direcção do BE, “recusou hoje a exclusão automática do PS na construção de uma alternativa política (…). Excluir à partida o PS de uma alternativa política que permita resguardar o país, o Estado social e permita oferecer um futuro diferente; excluir à partida o PS quando ainda está a fazer um debate interno e ainda não se sabe exatamente o que vai apresentar aos portugueses, isso é desistir da luta, é desistir de ter um Governo com uma parte da esquerda em Portugal.”
Isto não é honesto. A posição do BE foi bem diferente: “não dar qualquer apoio a um governo, mesmo que dirigido pelo PS, que prossiga políticas de austeridade como as impostas pelo Tratado Orçamental”. Escamotear a diferença entre "por ser do PS" e "apesar de ser do PS" é intelectualmente escandaloso.
E lá vem o actual “debate” interno no PS, que certamente vai mostrar grandes diferenças quanto à austeridade, ao tratado orçamental, à reestruturação da dívida (nem é oportuno falar disso, segundo Costa)... Muito excitados com essa cega-rega do PS andam muitos independentes quase-PS.
Finalmente, e o mais importante, a tese Drago/Oliveira/Tavares de que “o problema da esquerda à esquerda do PS em Portugal, durante muitos anos, foi uma incapacidade de puxar o PS para a esquerda”. (…) Uma esquerda que sabe o que é fundamental tem de obviamente desafiar o PS para a construção de um eixo programático - um eixo que salvaguarde o que é fundamental e permita a construção de um futuro diferente. Esse é o desafio”.
Podem explicar-me como é que o PS vai sentir-se obrigado a corresponder a esse desafio, se entender que prefere uma aliança à direita ou até um jogo de “chantagem” de um governo minoritário com alianças pontuais à esquerda e à direita?
“Objectivo principal das movimentações no perímetro do Bloco é impedir que os socialistas cedam à tentação de fazer alianças à direita”. Podem explicar-me como é que se amarra o PS à esquerda e se impede uma sua aliança com a direita ou parte dela?
Podem convencer-me, e a muita gente, de que a vossa posição não é mais uma oferta submissa e oportunista de serviço ao PS (a troco de quê?)?
Se não podem, não estaremos perante um gritante embuste político?

3 comentários:

  1. Lúcido, sério e Impecável este post mas não está na moda... o que está na moda e a dar nos media é o quase grau zero de verdadeiro pensamento, cultura histórica e experiência.

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    1. Em outros tempos, parece que aprendíamos mais em capacidade de acção política reflectida, num dia, do que muita gente agora num ano.

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  2. Mais um ciclo de marés mansas
    Um dia falaremos de coisas sérias

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