quarta-feira, 18 de junho de 2014

Carta a amigos de esquerda

(A laranja, texto adicionado posteriormente ou emendado)

1. Não estando filiado em nenhum partido nem costumando participar em iniciativas partidárias dirigidas a independentes, é como cidadão de esquerda consequente que me dirijo aos dirigentes e militantes dos partidos de esquerda, das variedades formas de associação política, organização cívica ou movimentação social, bem como a todos os independentes de esquerda, como eu. Para não abrir polémicas divisionistas, em relação ao poderoso inimigo comum, não discuto agora o uso do termo esquerda, tomado como abrangendo o PS, os partidos à sua esquerda e todas as forças não partidárias com actuações convergentes com as lutas políticas nesse campo.
2. Vivemos a maior ofensiva da direita, desde o 25 de Novembro de 1975, contra os avanços democráticos e populares conquistados no período revolucionário anterior. Pela primeira vez, a direita, personificada neste governo, pode mostrar sem equívocos o seu fanatismo ideológico e a sua cumplicidade com o poder económico, ao mesmo tempo que domina a comunicação social e beneficia do apoio de todo o aparelho político do “consenso de Bruxelas”, consolidado pela força políticas de conservadores e neoliberais nos governos europeus.
3. Com isto, a política de austeridade empobreceu os portugueses, obrigou muitos e muitos milhares a emigrarem, colocou as famílias já antes mais desfavorecidas à beira do limiar da pobreza, aumentou para mais do dobro o desemprego, conduziu à falência milhares de pequenas e médias empresas, agravou as ofensas à soberania. E isto sem sequer atingir os seus proclamados objectivos, como o combate à dívida, que aumentou para o dobro e que se transformou no principal problema económico e financeiro de Portugal.
4. Por tudo isto, é urgente substituir este governo. É, obviamente, o primeiro objectivo e a primeira acção que nos congrega. Também parece realista considerar-se que há consenso à esquerda em relação a bases, infelizmente apenas muito gerais, para uma política alternativa: reposição de benefícios sociais, refinanciamento adequado do Estado Social – principalmente saúde, segurança social e escola pública –, combate ao desemprego e, fundamentalmente, criação de emprego jovem, política de investimento, de aumento da procura, de substituição de importações por incorporação de produtos nacionais, etc.
5. Também parece realista pensar-se que, nos próximos anos, no plano eleitoral, nenhuma aliança para um governo de esquerda ou, seja de que forma for, apoiado pela esquerda, pode ser constituída sem o PS, numa situação em que a esquerda à esquerda do PS contará, no máximo, com 20% dos votos. Mas, por outro lado, o PS parece longe da maioria absoluta e tem de definir o seu lado de apoio, se a esquerda se o bloco de centro-direita.
6. Não me estou a dirigir aos partidos, o que seria pretensioso. Dirijo-me principalmente a muitos independentes de esquerda, como eu, que, individualmente ou por intermédio de toda uma variedade de formas de intervenção – movimentos, grupos temáticos, organizações políticas não partidários, podem contribuir para desbloquear as relações partidárias, num processo a dois tempos: primeiro, por mais vocacionada, uma aliança estratégica entre os partidos não sociais-democratas (na prática, os que estão à esquerda do PS e não encaram nenhuma aliança acrítica com o PS) e os seus movimentos sociais de apoio; depois, obtida uma convergência nessa área, tentando negociar um programa comum de governo com o PS.
7. Não querendo ser injusto, penso que muitas vezes a atitude desses amigos independentes acaba por ser inconsequente. São independentes mas cada um tem o seu pequeno ódio contra um ou outro dos partidos de esquerda. Clamam pela convergência, mas limitam-se a dizer que não há outra alternativa contra este governo, omitindo dizerem como se consegue a convergência sobre bases tão conflituais, mas hoje cruciais e determinantes da acção governativa, como a posição em relação ao Tratado orçamental e à reestruturação da dívida. Vêem fracassar sucessivas iniciativas de pequenos grupos (eles também num transparente ambiente de ódios na esquerda), resultantes apenas em alguns milhares de assinaturas numa petição na net, coisa fácil nestes tempos mediáticos e de mediatismo de candidatos a líderes políticos.
8. A ênfase que dou (como tantas vezes antes neste blogue) a um processo em dois passos tem a ver com a identidade estratégica de cada partido. O PCP e, até certo ponto, o BE só existem estritamente em função da organização e defesa da classe de que se tomam como vanguarda e a que atribuem o papel de agente revolucionário, para o socialismo. O PCP fundamentalmente a classe operária, o BE todos os sectores sociais, com destaque para os jovens e intelectuais, que estão em vias de proletarização e de crescente exploração e desemprego. O Livre ainda não parece ter definido um sector social alvo preferencial, se é que o pretende. Até agora ignora as relações sociais, ficando-se por um catálogo de ideias atraente para intelectuais das novas gerações, pelo que constitui principalmente é um possível rival do BE.
9. Esta é uma importante discussão teórica, em desenvolvimento desde há décadas. O agente único revolucionário continua a ser só o operariado? Ou vastas camadas pelo menos vulneráveis (um dia economicamente bem, mal no dia seguinte, de crise) tais como os artesãos, os empregados de nível mais baixo, os reformados, os jovens intelectuais desempregados, não são hoje, embora com alguma incoerência, agentes potenciais da transformação social? Muitas vezes ainda eivados dos efeitos da propaganda anti-esquerda, são pasto para a demagogia do pântano ou, pior ainda, para o populismo, até quando, como se vê com Marinho Pinto, a maioria de inquiridos o considera como de esquerda.
10. A divisão dessa massa popular entre os seus dois principais partidos (sem esquecer que muitos votam PS e até à direita) resolve-se, a meu ver, pela adjunção, com diferença substancial, de um “partido alternativo”. Já aqui o defendi repetidamente mas, não estando na agenda imediata, fico por aqui.
11. O PS é diferente, sendo um partido eleitoralista e orientado exclusivamente para o poder institucional. Recorrendo a fórmulas vagas, à imagem dos líderes e a técnicas de campanha, procura caçar transversalmente, sem se dirigir a nenhuma classe ou camada social, em particular. De facto, não é bem assim. A sua prática, os seus compromissos, nacionais e internacionais, o seu aproveitamento da “porta giratória” entre política e negócios, a ideologia de muitos dos seus dirigentes, colocam-no, na perspectiva de classe, como um partido de apoio à burguesia.
12. Portanto, temos de ver toda a questão de alianças em dois planos, o estratégico e o de curto prazo, neste ciclo eleitoral. O estratégico é, forçosamente, mais exigente, devendo conjugar a abertura ao debate, a democracia e a fraternidade de relações entre grupos e a flexibilidade de referências com um programa comum coerente. A meu ver, isto será tanto mais fácil quanto maior for o envolvimento de organizações sociais e comunitárias, grupos de cidadãos e movimentos não partidários, a constituir, com os partidos, um movimento popular e patriótico
13. A unidade partidária é sempre difícil, mesmo sem integração, como aconteceu em 1974 com o desmembramento e partidarização ilógica do MDP, a favor do PCP e do PS, quando em período de consolidação do 25 de Abril mais necessária era a unidade. Está a ser feita em França, com a Frente de Esquerda. Foi um processo interessante em Espanha, com a Izquierda Unida (reconheço que com problemas) mas que, a meu ver, não justifica receios partidários de descaracterização (cada caso é cada caso, PCE e PCP), nem de dissolução, no caso do BE. Mas não comecem já os meus amigos mais rigorosos do PCP a desfazer na minha proposta com purismos ideológicos, porque me desmancham o esforço de mão estendida a toda a gente de esquerda (para já, à esquerda do PS).
14. Não sei se essa cordialidade de relações interpartidárias, esse respeito mútuo, será possível. Mas se não, é então a altura para dizermos “entendam-se”, o que é diferente de dizer o mesmo, agora e utopicamente, a todo o arco à esquerda do governo.
15. Como disse, entendo, como qualquer pessoa de bom senso, que não está aberto já o caminho para a grande transformação social, para uma sociedade fraterna, solidária e sem exploração. Claro que não há um bloco social e histórico hegemónico de esquerda, nem sequer uma noção cientificamente indiscutível dos contornos do conjunto de classes e camadas sociais que configuram um novo bloco popular. Não está à vista a revolução mas, contra a hegemonia do capitalismo (apenas numa crise provavelmente passageira, sob a forma de neoliberalismo), a aliança que tenho estado a discutir não é suficiente, embora seja a base permanente e sólida de uma actuação frentista. No entanto, é a que tem sentido estratégico, nesta fase, na via para o socialismo.
16. Diferentemente, a curto prazo, o objectivo táctico prioritário é a derrota do governo. Claro que aceito que isto só se consegue com uma plataforma de centro-esquerda e esquerda, mas não tenho ilusões. Considero que ela só tem alguma probabilidade se: 1. a posição negocial pelo lado da esquerda à esquerda do PS for comum, pelo movimento popular e patriótico que apoio. 2. com muita antecedência, esse movimento, ou os partidos da EePS, anunciarem a sua disponibilidade para entendimento com o PS, tirando-lhe o álibi para o habitual “eles é que fazem do PS o inimigo principal”. 3. isso seja acompanhado por uma proposta muito divulgada de bases para entendimento, que pareçam coerentes aos eleitores ou então que exponham o PS, com muita clareza ao juízo público de coisas como a sua aprovação do Tratado orçamental. 4. tudo isto de forma coloquial, de amigo para amigo, porque as pessoas estão fartos de discursos de políticos profissionais, de comentadores ou de – como eu– teóricos aborrecidos.
17. Tendo dado tanta importância às organizações e movimentos sociais, não sou suficientemente conhecedor da situação. Do lado dos partidos, e principalmente depois das eleições europeias, vejo com desagrado algum triunfalismo no PCP. É verdade que aumentou a votação, em número, percentagem e deputados. Mas 12,7% ficam muito longe de permitir ao PCP qualquer papel, em futuro próximo, de congregação de um vasto movimento popular (claro que nem estou a pensar em termos revolucionários). Quanto à expectativa, por muitos sinceramente desejada, de uma solução unitária para o derrube do governo, não encontro nenhuma análise política feita pelo PCP.
18. O BE está em refluxo e – a meu ver injustificadamente – à defensiva. Perde votos e deputados, vê alguma desagregação interna, mas, se recuperar da imagem de partido provocatório em que gastou munições prematuras, pode recuperar a sua posição. Tem sido visto como uma possível muleta do PS, papel que agora é claramente assumido pelo Livre, com alívio do BE. Como se colam hoje as etiquetas dos sound bites, não sei se a direcção bicéfala e paritária o prejudica. Se sim, parece-me que João Semedo, com a sua serenidade e boa imagem de quase-avô é uma demais-valia.
19. Em 6 de Junho (muito atrasado!) João Semedo e Catarina Martins escreveram uma carta serena dirigida às esquerdas. Manifestam uma posição de abertura, para além do simples entendimento partidário: “Ao apreciar os resultados eleitorais na sua Mesa Nacional, o Bloco sublinhou a necessidade de um diálogo aberto entre partidos e forças que lutam contra a austeridade, que saiba juntar energias e envolver cidadãos independentes, ativistas e movimentos sociais, indispensáveis ao esforço para a construção de uma alternativa alargada. Essa convergência é possível, como ficou à vista nas mobilizações de rua dos últimos três anos, na ação parlamentar comum dos partidos de esquerda, noutras iniciativas várias como os fóruns e ações promovidos pelo movimento sindical. Convergência, também, nas propostas de rejeição do memorando e do Tratado Orçamental e pela reestruturação da dívida, desde o Congresso Democrático das Alternativas até ao Manifesto dos 74 pela reestruturação da dívida.”
20. Mas não ficam dúvidas sobre as balizas, que também pressinto serem as do PCP: “No caminho para as eleições de 2015, uma esquerda que pretenda protagonizar um caminho efetivamente alternativo para Portugal tem, na nossa opinião, duas obrigações irrecusáveis perante o país: primeira, não dar qualquer apoio a um governo, mesmo que dirigido pelo PS, que prossiga políticas de austeridade como as impostas pelo Tratado Orçamental; e, segunda, construir um amplo campo de recusa das imposições da União Europeia e de concretização de um programa de transformação social fundado no primado dos direitos constitucionais e na universalidade dos serviços públicos. Sobre essa base, é possível uma oposição convergente e reforçada, capaz de afirmar-se como alternativa e de triunfar sobre a alternância estéril.”
21. De facto, sem estas condições para que serve a mirífica convergência, a não ser para ir à mão de um PS a jogar à direita? E isto não é processo de intenção. Basta andar pelo Facebook para se notar que, entre aqueles que se afirmam de esquerda e que exigem a convergência, há muito menos críticos do PS que do PCP. Haverá muitos que, sendo críticos rigorosos e exigentes do PCP, não sejam  anticomunistas com forte subjectividade? E que fazer com os muitos outros? A bem da esquerda consequente, acho que devia ser grande preocupação do PCP.
22. Quanto aos movimentos de rua (12 de Março, Indignados, Que se lixe a Troika) dá-me a impressão que soçobraram ou estão latentes. Em compensação, há muitos e variados grupos activos de intervenção cidadã, comunitária, pela solidariedade, que estão activos, muitas vezes num esforço hercúleo. A sua participação num novo movimento popular dar-lhes-á ânimo.
23. As duas organizações mais estruturadas, o Congresso Democrático das Alternativas (CDA) e a Iniciativa para uma Auditoria Cidadã à Dívida (IAC) merecem maior reflexão. Congregaram centenas de pessoas, no seu lançamento, e têm tido iniciativas muito interessantes, embora com alguma descontinuidade. O CDA tinha uma declaração política inicial, muito mais elaborada do que os documentos iniciais da IAC. No entanto, a principal proposta do CDA, a rejeição do memorando troikiano, perdeu tempestividade.
24. Qualquer dos movimentos, de preferência em conjunto, tem credibilidade para promover uma grande acção de cidadania para a construção, com os partidos, do Movimento Popular e Patriótico. Só tenho a reserva da sua obscuridade, que ficou manifesta quando do lançamento do manifesto do 3D, que ninguém sabia até que ponto era um aproveitamento do CDA, contraditoriamente com o facto de, pra quem esteve na Aula Magna, o CDA parecer em muito controlado pelo BE. Por estas dúvidas, é necessário que, para essa nova fase da sua actuação política, convoquem reuniões de base, apresentem os seus actuais dirigentes (quem são?) e, com um debate progressivo, se afirmem mais em intervenção, recrutem aderentes e elejam novas direcções.
25. Em síntese, proponho que
a) Se trabalhe, entre os partidos, sindicatos, movimentos sociais, organizações políticas não partidárias, etc., para a criação de um Movimento Popular e Patriótico, centrado em pilares consensuais de valores e objectivos de esquerda: 
– defesa do estado social; promoção do crescimento económico e do investimento; reposição dos prejuízos causados pela política de austeridade ao povo português; afirmação da soberania; rejeição do Tratado orçamental; admissão de que a dívida é insustentável; promoção da qualidade de vida e rejeição da sociedade unidimensional, com combate à alienação;
– tendência para a inversão da distribuição do rendimento nacional entre o trabalho e o capital;
– preocupação preferencial com o bem estar das camadas populares, bem como os sectores mais frágeis da população, nomeadamente reformados, precários, domésticas dependentes, imigrantes, desempregados, entre os quais jovens qualificados sem emprego;

– estímulo à cidadania efectiva, para construção de uma democracia participativa.
b) Que este movimento encontre formas organizativas e funcionais que permitam relações fraternas e leais entre as organizações, sem prejuízo da sua liberdade de afirmação pública das suas posições específicas, e que permita enquadrar os independentes que o queiram integrar individualmente.
c) Que se estude a mais eficaz utilização dos instrumentos da net para este objectivo, constituindo uma rede de intervenção concertada dos seus apoiantes.
d) Que o diálogo com o PS para uma possível plataforma de entendimento nas legislativas de 2015 seja estabelecido pelo Movimento e não pelos partidos isoladamente, e depois da elaboração de uma posição política de base do Movimento.

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