sábado, 1 de fevereiro de 2014

Novamente a convergência

O Livre e o 3D, cada um à sua maneira, definem-se essencialmente pelo objectivo de promoverem, facilitarem, auxiliarem, etc., a convergência da esquerda. Obviamente, esquerda em sentido lato, representada a nível partidário por PS, PCP e BE. Não vou discutir a fantasia um pouco petulante de umas dezenas de personalidades respeitáveis ou de um protagonista com mais um grupo desconhecido de amigos se arvorarem em capazes de fazerem entender-se partidos com implantação no terreno institucional, social e eleitoral.

Outra característica comum a essas iniciativas é a sua vacuidade programática, que quase se esgota no mito messiânico dessa convergência e da constituição de um governo comum. Para governar como? Com que políticas? Com que soluções imediatas para a recusa da austeridade e para a reposição de regalias sociais que a direita expropriou às camadas populares? Com que recursos financeiros para essa política alternativa, necessariamente contrária à actual “impossibilidade” (para os troianos externos e internos) de nos libertarmos do peso da dívida e do seu serviço?

Dizem os profetas da convergência que tudo se conseguirá com um programa mínimo e credível “naturalmente” emergente dessa convergência. Quanto ao credível, leiam um pouco mais abaixo. Quanto ao mínimo, pergunto o que é isso em termos de eficácia, de coesão governativa, de confiança dos eleitores. Além disso, e em termos históricos, nunca ouvi falar de uma aliança que não tivesse à partida – e não depois do seu anúncio – a discussão de bases programáticas comuns (o que não é o mesmo que mínimas).

E não seria de esperar que, para além da agitação da bandeira sempre simpática da convergência, os novos partidos/manifestos contribuíssem para os pontos programáticos que dêem corpo ao tal programa mínimo? A declaração do Livre é uma mão cheia de nada, como critiquei, aqui e em entradas anteriores. O manifesto 3D nem chega a ser mais do que um panfleto, que, em 461 palavras, consegue o feito d e nunca empregar os termos “esquerda”, “socialismo”, “euro”, “reestruturação”.

Nas últimas eleições, o PCP (CDU) teve 552.690 votos e o BE teve 120.982. Com os 1.812.029 do PS, a esquerda consequente e a esquerda liberal têm, em conjunto, 2.485.701 votos. Ao que dizem os jornais, o Livre conseguiu 8500 assinaturas (consideremos como de simpatizantes ou pelo menos interessados na sua criação) mas só tem cerca de 250 militantes activos. O 3D parece que recolheu cerca de 5000 manifestações de apoio. Para o Livre e o 3D, são números simpáticos, mas não são nada, por enquanto, em termos eleitorais – e eleições são desde já, e até para Maio, em se colocam prioritariamente.

Um erro politicamente perigoso, com reflexo na forma como o eleitorado vê essa discussão sobre divisão ou convergência da esquerda, é considerar que ela é, para esse eleitorado, uma questão essencial e determinante das suas escolhas eleitorais. É esquecer que, para além de oscilações não muito significativas dos resultados do PCP (CDU) e do BE, bem como da abstenção, o essencial joga-se sempre ao centro, na deslocação de votos, de uma vez para a outra, entre o PS e o PSD.

Assim, que influência terão o Livre e o 3D na alteração desta situação eleitoral ou na mudança de atitude dos partidos condicionada por esses resultados? Não falo da abstenção porque ninguém sabe ao certo o que significa a tal tantas vezes referida abstenção de esquerda, a ser combatível por essas novas forças. De facto, estou convencido de que o mito da convergência não tem qualquer tradução eleitoral

O eleitor da rua, tanto quanto os que conheço, acha isso tudo bizarria de gente especialmente motivada pelo jogo político, quando não com contas a ajustar e com desejos de protagonismo ou de cura de orfandade partidária. Quem é que quer saber se Rui Tavares quer ser eleito por primárias directas, essa panaceia para a doença mortal da democracia? Não é perante os eleitores que se deve testar a tal credibilidade político-pessoal e programática? Ou é só coisa de clubes e de comunicação social?

Dito tudo isto, aceito que me acusem de incongruência, dado que tantas vezes aqui defendi a necessidade de um novo partido, como nesta entrada e anteriores. A incongruência é aparente. Usando a analogia geográfica de entradas anteriores, não defendo um partido no mesmo plano dois actuais, situando-se no meio, à esquerda, à direita ou seja lá onde for. Defendo um partido noutro plano, um partido radicalmente diferente, um “partido outro”, que conjugue o sentido de classe com o sentido de alternatividade que proponho desde há muitos anos e que justificam a publicação de velhos textos do MDP/CDE que tenho vindo a fazer. 

Preocupa-me pouco a visão táctica que está a prevalecer em relação à convergência – visão que julgo perigosa – quase como entendamo-nos já para governarmos, depois se verá como e com que propostas. Preocupa-me mais o que deve ser um novo partido que mostre ao povo eleitor o que pode ser uma verdadeira e nova política popular e patriótica, uma política alternativa de esquerda.

Cada mais vejo na net comentários de amigos políticos que manifestam, no essencial, as dúvidas e preocupações que aqui deixo. Não vejo é que estejamos a contribuir eficazmente, pela positiva, para a elaboração de um corpo de ideias e propostas que vão construindo uma alternativa real, não oportunista (uso o termo na acepção clássica, não pejorativamente). Vamos a isso?

NOTA 1 – Não gosto do termo convergência, preferindo aliança ou entendimento. São termos que preservam a noção de pluralidade e diversidade. Convergência significa um movimento de polos opostos para um ponto central, isto é, de certa forma simbólica, um esbatimento da diferença.

NOTA 2 – Falei acima, explícita ou implicitamente, de escolha estratégica ou táctica, de rotura ou de conciliação, de correcção ou de oportunismo. Por isto, transcrevo uma passagem da entrada de hoje de José Manuel Correia Pinto, no Politeia: “Somente através de uma ruptura – que em algum lado se há-de dar – se poderá sair disto. Sair no sentido de iniciar uma longa e dura luta, onde certamente vai haver, como em todas as lutas de longo alcance, avanços e recuos.”

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