sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Mais um a convergir

Esperei uns dias para escrever alguma coisa sobre o 3D porque estou confuso e sem saber bem o que dizer. Como não me parece que surja algum dado mais esclarecedor, aqui vão algumas notas, à laia de provocação ao debate – ou a dizerem-me que a minha confusão revela incapacidade de acompanhar tanta imaginação política.

Ao começar a ler o manifesto, a primeira sensação foi a de cheiro a mofo, mesmo que mofo venerável. Os três D são uma grande referência histórica, mas datada. Tão datada que um deles até já nem pode ser usado, a descolonização, e teve de ser substituído por um novo D, dignidade. Fico espantado, talvez por ter sido treinado politicamente em objectividade e sem retóricas. Dignidade é coisa que bem prezo, nas pessoas e na minha auto-exigência, mas como virtude pessoal. Um país digno, ou um governo digno, ou uma política digna é que não sei o que é. Será não sujeição a ditames estrangeiros? Então o termo é patriotismo (mas desmancha o 3D). Reconheça-se, todavia, que isto não é a questão essencial quanto a este manifesto.

Escreve-se que é possível uma alternativa política aos resgates e à austeridade. Muito bem, tenho deixado clara a minha posição de adesão pessoal a uma alternativa de rotura com os resgates e com a ideologia e a política neoliberais, com empobrecimento do povo – trabalhadores e classes médias – destruição do estado social e minagem da economia.

Mas diz-se logo a seguir no manifesto que “há, para isso, um programa político claro e com entendimentos abrangentes”. Espanto-me. Onde é que se vê esse programa e esse entendimento? Na reestruturação da dívida com eventual saída do euro, segundo o PCP e, em parte, o BE; ou na posição “nim" de renegociação apenas das condições do “ajustamento”, segundo o PS? 

O programa enunciado em linhas gerais é consensual e, por isto mesmo, forçosamente redondo: respeito pela Constituição, travão à austeridade, impedir novos resgates, actualizar o salário mínimo, moralizar o sistema fiscal, erradicar a pobreza, afirmar que o Estado Social não está à venda, preservar o carácter público da água, dos serviços postais e dos transportes colectivos. Muito bem, mas tão básico que certamente até será apoiado por gente séria de direita. Aliás, este programa é apresentado como um entendimento entre toda a "oposição democrática", expressão que não esperava ver usada em 2013.

E não é sério, a meu ver. É um programa de eras de economia saudável, de crescimento, de suficientes recursos públicos. Quando estamos presos na crise do euro, quando a austeridade destruiu parte considerável do nosso bem estar económico e social, quando temos de reduzir para metade a dívida pública, quando para isso temos de garantir um excedente primário considerável, quando só nos vamos financiar com juros relativamente altos e, para isso, provavelmente com condicionalidades de um programa cautelar (se não um novo resgate), quando estamos no limite do crescimento das exportações, tal programa só é possível com uma rotura com todas as constrições que nos afogam.

Os subscritores dizem que estas são bases programáticas de convergência e dizem também que o manifesto visa a acção conjunta no plano político e eleitoral. Conjugando ambas as coisas, e porque o eleitoral não deixa de fora o caso das legislativas, considero enganador para os eleitores dar-lhes a ideia de que um tal programa pode ser a base de um programa de governo. Ressalvada a legítima expectativa de que um governo de convergência ao menos não iria ao grau de brutalidade e de fanatismo ideológico deste governo, estou convicto de que, sem a rotura que referi, teria de continuar a sujeitar-se, no essencial, às condições que nos têm oprimido.

Reconheço que é melhor que seja um governo de esquerda e centro-esquerda a tentar minimizar isso, mas preocupa-me o que pode ser o desgaste da esquerda por causa dessa governação. Claro que não me preocupa em termos estritamente partidários, mas em termos gerais da importância da esquerda “radical” para o movimento popular, para a defesa dos interesses dos trabalhadores, reformados, desempregados e classes médias.

Finalmente, os projectos de acção. São o que me deixa mais confuso: 1. não se tem de esperar por entendimentos entre toda a oposição democrática. 2. sustentação de uma candidatura para as eleições europeias.

1. De facto, em entrevistas à comunicação social, os promotores afirmam que partem do princípio de que o PCP e o PS não deixarão de apresentar as suas próprias candidaturas e que, provavelmente, ambas terão um significativo aumento de expressão. Como o Livre ainda está no útero e nem se sabe se a gravidez chega ao termo, só fica a mais o BE, que é dito pelos promotores como estando em risco de diminuir de expressão eleitoral nas europeias.

2. O termo sustentação é ambíguo. Pode ser entendido como o movimento desencadeado pelo 3D apoiar uma lista partidária, neste caso obrigatoriamente do BE. Mas o BE já veio pôr reservas a esta hipótese, reservas que até se compreendem – um partido já consolidado vai a reboque de umas dezenas de pessoas? Pode ser também a constituição de uma lista não estritamente partidária, “que envolva partidos, associações políticas, movimentos e pessoas que têm manifestado inquietação, discutido alternativas e proposto acção”. Simplesmente, tudo isto se complica com coisa muito comezinha: a lei não prevê candidaturas que não sejam de partidos ou coligações.

Parece-me claro que o 3D vai tentar jogar numa alegada fraqueza do BE, que a imprensa tem propalado, pressionando-o em nome dos apoiantes do 3D a aceitar nas suas listas candidatos saídos dessa plataforma ou polo, como lhe chamam. Se o BE vai nisso ou não, veremos. Também é interessante seguir a evolução próxima de duas iniciativas concorrentes, esta e o Livre, multiplicando grupos e acções divergentes enquanto tanto se clama pela convergência. Afinal, é muito bom é que todos os outros convirjam para o nosso umbigo.

Ainda vamos ver Rui Tavares e Daniel Oliveira a fazer uma OPA ao BE e a concorrerem por uma lista deste partido? Já estou por tudo.

Só lamento é ver como tanta gente andará provavelmente ainda mais confusa do que eu. Quantos terão assinado ambas as coisas, o apoio ao Livre e o manifesto 3D? É sinal de desesperado anseio por qualquer coisa nova que vença o seu desânimo, mas a confusão não é boa conselheira em política, como em nada.

2 comentários:

  1. Muito bem, caro Vasconcelos Costa. E o seu último parágrafo corresponde a uma minha dolorosa interrogação e espanto.

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