quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Situacionismo

Vou falar de situacionistas, a propósito da homenagem a Eanes que se prepara e que é, a nível superior e de personalidades, uma expressão do centrão, do pântano, do tradicional “marais” à francesa, como quiserem. Deixo de fora os militares. A comissão promotora faz lembrar os anos do fascismo em que a unidade obrigava à maior abrangência. Só como exemplos, no campo de centro pantanoso (condescendo com centro-esquerda), Artur Santos Silva (BPI e Fundação Gulbenkian), António Rendas (presidente do Conselho de reitores), João Proença (UGT), Pinto Monteiro (ex-PGR). Mas também Adriano Moreira, Belmiro de Azevedo, Henrique Monteiro (ala direita do Expresso). E, sem que eu perceba bem o que querem, Manuel Alegre e António Nóvoa (estrela ascendente nas expectativas políticas de renovação).

Todos pessoas a que chamo de situacionistas, como explicarei. No entanto, tratando-se de uma homenagem a una personalidade com respeito granjeado em muitos sectores – eu próprio o considero um homem sério, só não aceitando bem que tenha sido mandatário ou coisa que o valha de Cavaco – admito bem a amplitude deste leque de promotores. O problema é que me palpita que isto ainda vai dar num movimento de “salvação nacional”, sidonista, a meter no mesmo caldeirão grupos distintos de pessoas politicamente convencionais, e que, embora politicamente bem intencionadas, podem reproduzir o que foram as confluências de republicanos descontentes, em 1926, à volta da ditadura militar.

Antes de discutir esse situacionismo, vou lembrar dois manifestos, porque estes notáveis, senadores e gente de elite, gosta muito de manifestos. Não dá muito trabalho e afirma-os politicamente, até para todas as veleidades de intervenção messiânica.

Em 2011, dois “senadores” – a mais viciosa e ridícula dessas formas de se ser situacionista – Soares e Sampaio, promoveram a divulgação de um manifesto, “Um Compromisso Nacional”, que era uma conciliação inequívoca com a política de austeridade, na altura configurada no PEC 4, antes do memorando com a troika. 

Devem ter havido muitas pressões para a assinatura, como me contou um amigo subscritor. A lista foi enorme, de todos os bem pensantes. Como na de agora, a elite: universitários, empresários (Alexandre Soares dos Santos e Belmiro de Azevedo), gente conotada com a esquerda independente (António Nóvoa, Boaventura Sousa Santos – que depois foi arengar aos acampados do Rossio! – Joaquim Canotilho, José Carlos Vasconcelos, Júlio Pomar, João Caraça, José Mattoso, Octávio Cunha, Rui Vieira Nery, etc.). Também membros conhecidos de partidos do “arco da governabilidade”, como diz Portas: António Vitorino, Maria João Rodrigues, Miguel Veiga, António Pires de Lima, Eurico Figueiredo. Ao lado, uma longa lista de gente que flutua na etérea superioridade da sua pessoal política “isenta”, indo a todas, como João Lobo Antunes, Freitas do Amaral, ou então de direita retinta, como António Barreto, Maria de Fátima Bonifácio ou, pasme-se, Miguel Poiares Maduro.

O charme discreto da burguesia!

Lembro ainda outro, mais pobrezinho em objectivos e conteúdos, “Manifesto pela democratização do regime”, promovido pelo infantilmente sempre agitado Rui Tavares. Reflecte duas das suas tontas obsessões políticas, a da obrigatoriedade de primárias abertas a todos os cidadãos, em que os simpatizantes do PSD interfeririam na eleição do líder do PS e vice-versa, e a da candidatura de listas de cidadãos a eleições legislativas. Recolheu uma lista de algumas dezenas de pessoas muito respeitáveis, mas misturadas com Veiga Simão!

Falei de situacionismo. Com risco de abuso, comparo com o que era “ser-se da situação” no salazarismo. Creio que não era obrigatoriamente ser-se fascista, saber-se da actuação da PIDE e concordar-se. Era, mais difusamente e como dizia um célebre decreto, estar inserido na ordem social e política vigente. 

Passa-se hoje o mesmo, em consequência da acção do aparelho de hegemonização ideológica. Oitenta por cento dos eleitores oscilam entre os partidos do centrão, mas partilham a noção de “ordem social, política e económica”, hoje traduzida, no essencial, na aceitação do programa das troikas, interna e externa. Na aceitação, como indiscutível, do capitalismo, da financeirização da economia, da globalização. Na aceitação da regra da sustentabilidade dom estado social. No respeito absoluto e acrítico pelas normas formais da democracia, sem percepção de como, na prática, ela aliena os cidadãos, mormente por meio da comunicação social, da publicidade e de todas as técnicas de marketing.

É a nova forma de se “estar na situação”. E, como antes, quem “está na oposição” é uma minoria, mas que julgo combativa e que não desiste – e eu fiz há dias 69 anos!

Na situação antiga, havia a elite da união nacional e a massa desdenhada. Hoje, há novamente outra elite, a pairar sobre a massa desdenhada. Mas não se iludam, não é a pseudo-elite dos agentes políticos, dos funcionários do sistema político. Enquanto que, ao nível da política institucional, do combate ideológico e das tensões sociais, as posições estão relativamente bem demarcadas, cria-se uma forma de superestrutura da superestrutura, relativamente indiferenciada e inorgânica, de uma elite bem-pensante, acima da “porcaria da baixa política”, com veleidades de transportar em si a missão salvadora de um interesse nacional abstracto.

Têm um discurso redondo, cheio de narizes de cera. Pior quando circulam no meio nacional e internacional, caricato e balofo, dos “homens de estado”, em que acabam por dar cabo – vide Sampaio – da sua história de jovens decididamente claros na acção política. Em muitos casos, proclamando a sua clarividência isenta, acabam muitas vezes por serem exemplos das mais óbvias contradições. Por exemplo, como é que se pode ser mandatário nacional de Sampaio e, nas eleições seguintes, de Cavaco?

Em alguns casos, até podem ter notável discurso de esquerda, como alguns gurus com um pé na rua e outro nos financiamentos do governo, mas depois alinhando nesse consenso de gente de elite, que se conhece, convive nos salões, não sabe o que significa aquilo que escreveu Graciliano Ramos, e que reproduzo figuradamente, no plano das ideias e dos valores sociais e políticos: “quem dormiu no chão deve lembrar-se disto, impor-se disciplina, sentar-se em cadeiras duras, escrever em tábuas estreitas”.

O homem comum faz hoje as suas ideias de forma muito enviesada, pela comunicação social. Antes, não havia mediatização dos "intelectuais". Politicamente, valiam os partidos, que só projectavam para círculos muito estreitos a imagem dos seus intelectuais. Para as massas, a imagem era indirecta. Pior exemplo, certamente muitos simpatizantes comunistas conheciam de nome Redol, Soeiro, Lopes Graça, Pomar, mas sem alguma vez terem visto ou ouvido uma sua obra. Eram símbolos.

Hoje, diferentemente, há centenas de opinadores, "autoridades", que as pessoas conhecem porque lhes entram casa dentro, mas sói com títulos e credenciais que não lhes dizem nada. São professores, ora toma. A maioria das pessoas ainda considera como sagradas as instituições académicas, desconhecendo que algumas – nas ciências sociais, no direito, na economia e gestão – são fábricas de doutrinação ideológica dos nossos jovens. Alguns, felizmente, e como conheço, libertam-se, mas com grande esforço e, por vezes, tendo de ir reaprender em grandes escolas onde a ciência e os seus valores intelectuais ainda valem.

É a esse tipo de pessoas formatadas no pensamento dominante que poderá haver tendência, na crise do sistema partidário, para se ir buscar a solução. Até agora, como nos casos Papademous e Monti, foi-se aos economistas, mas pode a coisa ir para os “ideólogos”. Tenho receio dos iluminados e dos intelectuais típicos (sendo eu intelectual). Não vai ser fácil vermos aparecerem intelectuais orgânicos de uma reconversão das forças de esquerda, mas é factor histórico crucial do processo que estamos a viver.

Mas que não se confundam esses necessários novos ideólogos com os oportunistas videirinhos que estão a aparecer.

NOTA – Entretanto, é de se estar atento a dois possíveis desenvolvimentos desta homenagem (merecida) a Eanes: 1. um novo PRD. 2. uma candidatura de Eanes a PR.

1 comentário:

  1. "Lembro ainda outro, mais pobrezinho em objectivos e conteúdos, “Manifesto pela democratização do regime”, promovido pelo infantilmente sempre agitado Rui Tavares. Reflecte duas das suas tontas obsessões políticas, a da obrigatoriedade de primárias abertas a todos os cidadãos, em que os simpatizantes do PSD interfeririam na eleição do líder do PS e vice-versa, e a da candidatura de listas de cidadãos a eleições legislativas."

    Concordo que a primeira ideia é tonta porque empiricamente já se provou que a existência de primárias abertas a todos os cidadãos não tem influência sobre a qualidade dos líderes dos partidos, candidatos a primeiro-ministro ou das políticas implementadas pelos governos (Veja-se o caso dos Estados Unidos da América.

    É uma medida suportada numa análise ferida de vários erros, para não dizer falácias:

    - Identifica a qualidade de um governo e das suas políticas exclusivamente numa pessoa
    Embora a qualidade do líder partidário, candidato a primeiro-ministro ou primeiro-ministro seja importante não considerar toda a estrutura humana que se organiza em torno de uma figura ou um projeto torna qualquer análise ou juízo muito frágeis, sobretudo porque ignora os interesses e relações de forças que se organizam à volta dessa figura, grupo ou projeto e que, por ventura, irão atuar através desse indivíduo. No fundo é o clássico problema de confundir a árvore com a floresta, para o mal e para o bem.
    Tem ainda o ónus de retomar o mito tão português do Dom Sebastião, do homem providencial, que nunca trouxe nada de bom ao país.

    - Cria a ilusão de uma real intervenção no processo de escolha de um candidato partidário.
    A verdadeira questão da qualidade dos candidatos prende-se com o processo e as instituições que dão origem ao aparecimento dessas figuras. Ora, nada nas primárias influencia essa situação (não são os cidadãos que escolhem o lote de candidatos, etc);

    - As primárias abertas a cidadãos não filiados violam o princípio da liberdade de associação
    A liberdade de associação pressupõe também o direito de não ingerência nos assuntos internos das organizações por terceiros, salvo aquelas que decorrem dos deveres que a elas assistem.
    Agora a segunda ideia, a candidatura de listas de cidadãos a eleições legislativas é bastante pertinente e desejável. Aliás é um dos passos para conseguir acabar com o monopólio da representação política por parte dos partidos.

    Isso não quer dizer que seja o santo graal que vai resolver tudo e que não sejam necessárias, como já o são, medidas para aumentar a transparência de todas as organizações sem fins lucrativos independentemente dos seus fins.

    Que objecções tem à constituição de listas cidadãos a legislativas? Elas também se estendem às eleições autárquicas?

    ResponderEliminar

Obrigado pelo seu comentário. Os comentários de leitores não identificáveis não serão publicados.