terça-feira, 19 de novembro de 2013

Partido LIVRE (III) – O mito da convergência

Começam a aparecer as críticas aos críticos, como eu. No essencial, resumem-se a considerar que, para além de alguns “ataques soezes” que espero que não me sejam injustamente imputados, os críticos estarem a fazer o jogo da direita, mais uma vez contribuindo para a falta de entendimento à esquerda, um mito a cumprir seja a que preço for, seja com que cedências for.

Uma destas críticas aos críticos é feita hoje no Público por José Vítor Malheiros. Pela grande e velha estima que tenho por ele, julgo que partilhada, e pela qualidade do que escreveu hoje – embora errado, a meu ver – merece resposta minha mais destacada e ao seu nível de qualidade. Fica para amanhã, enquanto hoje vou ao geral sobre este tema.

A direita é muito mais unida do que a esquerda, é inegável. Mas esquece-se que a direita tem a tarefa facilitada. Defende os seus interesses e essa defesa não depende essencialmente de posições ideológicas diferenciadas, basta ter o poder. Para ter o poder, pode facilmente aliar-se, inclusivamente com sectores seus marginais captados (social-democracia) e garanti-lo distribuindo com habilidade os benefícios do poder por um largo aparelho burocrático-partidário de peões do seu exército.

Perguntar “porque é que a direita se entende e a esquerda não” é coisa sem senso. Que a esquerda se pode e deve entender tacticamente, é indiscutível (e, mesmo assim, há dificuldades, como agora em relação à política austeritária e ao euro). Defender que a esquerda se deve entender estrategicamente, como visão do futuro a orientar o presente, é tolice, é misturar esses dois planos bem distintos. É não perceber que, na acção e na consciência, na história e nas ideias, os avanços se fazem por roturas e debates, não por consensos. Nem preciso de invocar Marx, basta Hegel. Ou até o meu padroeiro Epicuro.

A esquerda real é luta e, inevitavelmente, conduz essa luta com projectos, senão era oportunista e inconsequente. Por isto, desde à partida, é difícil haver entendimento com sectores ditos de esquerda que já estão instalados no sistema. Já houve experiências históricas importantes de aliança, como as frentes populares dos anos 30. No entanto, anote-se que foram defensivas contra os fascismos e que os partidos sociais-democratas estavam claramente no lado antifascista. Também tiveram o seu lado ofensivo, por direitos sociais populares, mas, repito, numa época em que a social-democracia nem sonhava que um dia havia de capitular perante o capital. E nem foi recentemente, com Blair e a terceira via ou com Schröder e o Hartz IV. Foi logo nos anos 50, com a grande viragem de Bad Godesberg.   

Mas vamos admitir que pode haver esperança de chamar os sectores moderados de centro-esquerda a projectos de luta comum, guinando eles à esquerda, como muitos gostam de os situar. E vamos também adoptar, como princípio essencial, que, se isso acontecer, os projectos têm de ser confrontados e debatidos fraternal e lealmente.

A questão crucial é que isto hoje não se esgota em palavras e slogans. Em próximo texto, desenvolverei isto, mas aqui fica, para que se perceba o que é o dilema da “unidade”, ou convergência, ou o que se queira chamar, o problema inultrapassável. O PS proclama a luta contra a austeridade, contra os ataques ao Estado social, pelo crescimento económico, pela competitividade da economia, com base nas exportações. Sem dúvida, toda a esquerda deve convergir nestas posições indiscutíveis. 

Mas, sabendo que, na zona do euro, não se pode criar dinheiro por emissão clássica ou por “quantitative easing”, que é preciso afrontar os poderes europeus para nos comprometermos com endividamento (e que não é desejável, além de certo ponto), que não podemos usar a desvalorização da moeda nem a taxa de inflação, o PS sabe bem que as medidas que propõe são inexequíveis no seu quadro de posições políticas e compromissos. Neste sentido, a direita tem razão: não há dinheiro. Claro que não há dinheiro se obedecermos às regras troikianas secundadas religiosamente pelo tal “arco da governação”.

Pelo contrário, a esquerda diz, com algumas diferenças entre os partidos e grupos de opinião: "concordamos com tudo isso, facilmente nos entenderíamos com o PS, mas isso só é possível com reestruturação da dívida, com possível suspensão do seu serviço e – hipótese não definitivamente assumida mas a não excluir de todo – com a saída do euro".

Esta oposição não é irredutível? Digam lá os defensores do mito da convergência como a resolvem. Sem o dizerem, não têm autoridade, muito menos para se arvorarem como criadores de um partido de esquerda novo, diferente, cheio de ideias salvadoras. E não me digam, como ainda há dias li um deles, que isto é coisa de economistas (que eu até não sou) a esquecerem-se da política. O que é hoje, nesta crise de viragem do capitalismo, uma política de esquerda sem fundamentação no entendimento do que é hoje a crise do capitalismo? 

Já desde há bastante tempo, mas agora mais com as notícias (bem acarinhadas pela comunicação social) sobre o LIVRE, que bom número de pessoas, não nego que bem intencionadas e de coração na esquerda mas talvez um pouco irreflectidamente, adoptam uma posição ligeira. “Os partidos de esquerda não se entendem, não conseguem uma plataforma comum” (ou mínima, ou lá o que seja). Façam um exercício, num velho caderno de significados do meu tempo de escola, com duas colunas, e para já em relação ao PCP e ao PS, mas depois em relação ao PCP e ao BE, assim como ao BE e ao PS. Num lado e no outro, as respectivas propostas sobre cada problema (leram-nas? se não, toda esta discussão é sobre preconceitos). Ajuizem da possibilidade lógica de um entendimento mínimo e, já agora, marquem de um lado ou do outro a vossa própria concordância. Talvez tenham uma surpresa.

Sem qualquer intuito de ofensa, considero que o que mais se vê por aí, a arrumação fácil e apressada dos partidos em definições impressionistas e em construções de cassete para efeitos mediáticos, revela fragilidade ideológica e falta de esforço de reflexão. (NOTA – Já estou a imaginar, “mas ele não faz o mesmo em relação ao PS? Antes, digam onde não me esforço por justificar a minha crítica à rendição da social-democracia ao capital, nas suas formas liberais mais exacerbadas)

Outro aspecto desta obsessão actual com a convergência e com o consenso é a sua relativa falta de correspondência à cultura e tradição da esquerda. Em épocas em que a esquerda tinha grandes homens, Nunca as polémicas e a afirmação das ideias prejudicaram significativamente as lutas comuns. E, muitas vezes, os termos da crítica foram de enorme dureza. Já leram “A Crítica do Programa de Gotha"?

Mesmo entre nós, sempre houve grandes polémicas, políticas, literárias, ideológicas. Volto a sugerir um refrescamento de leituras, “Bom Senso e Bom Gosto”. Também muitos debates magníficos que se podem ler nos diários dos sucessivos parlamentos. Será talvez coisa de hoje de uma brandura dos nossos costumes de que não nos conseguimos livrar. Não lêem noutros lados vivíssimas polémicas? Basta ler, por exemplo, o blogue do bem assertivo Paul Krugman. E assertivo não quer dizer agressivo. 

NOTA 1 – Como esta entrada fala muito de crítica, agressividade, assertividade, aproveito-a para deixar bem claro que tenho o maior sentido de camaradagem e de respeito por quase todos aqueles a quem me dirijo e que se têm manifestado a favor de teses que critico. Se duvidasse da sua generosidade e posição de esquerda, não estava a esforçar-me por aqui debater com eles, frontal e amigavelmente, esta situação que vivemos. E a denunciar sem receio quem merece que se diga que “o rei vai nu”.

NOTA 2 – Perguntaram-me: “mas se achas que o PS não é esquerda, como o vais situar, de forma a que a pessoas percebam?”. Simplesmente, para facilitar e como muitas vezes se escreve, como centro-esquerda (o que quer dizer ala menos conservadora de um centro comum, centrão, pântano, “marais”). Estão satisfeitos?

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