quarta-feira, 2 de outubro de 2013

O PCP, ontem e hoje

RESUMO: De como o PCP se mantém como partido consequente de esquerda mas não se consegue afirmar, para muita gente, como alternativa de poder. Por culpa de muitos preconceitos, de desinformação mas também por muitas culpas próprias.

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Publiquei algumas entradas sobre a posição dos partidos de esquerda, PS e PCP, em relação à crise, à política das troikas (interna e externa), à minha perspectiva de emergência de uma verdadeira alternativa que não se confunda com o discurso ambíguo do albergue espanhol de todas as “esquerdas” (mais uns indivíduos que disto precisam para o seu carreirismo político), albergue em que tanto se quer meter coisas espúrias que o fato de “outlet” rebenta pelas costuras. Interrompi a meio de algumas reflexões sobre o PCP, depois desta e desta entrada. Acho que fiz bem nessa pausa, porque posso agora retomar a escrita tendo em conta os resultados eleitorais.

Deve discutir-se a questão fundamental: o PCP tem, a meu ver, a posição mais consequente acerca da configuração de uma política anti-austeritária; recolhe um movimento significativo de protesto, com tradução eleitoral; mas é visto como partido em que não se confia para exercer o poder. Porquê? A meu ver por preconceitos, por grande agressão ideológica por parte dos instrumentos da hegemonia mas também por muitas culpas do PCP, talvez não tanto actuais mas principalmente por ainda não ter sabido combater eficazmente as prisões em que o encarceraram (muitas vezes com a sua cumplicidade). Pesam muito ainda os factores que, a meu ver, limitam consideravelmente um papel de liderança do PCP numa esquerda consequente (isto se nos limitarmos à lógica do quadro democrático institucionalizado no sistema parlamentar).

O que escrevi antes tentou testemunhar o que sabia do PCP, no tempo da luta antifascista. Pareceu-me importante para elucidar muita gente honesta que não a viveu e também para me posicionar como não anticomunista irracional, o que mais vai por aí. Alertei para a incerteza de dúvidas que então se poderiam colocar, porque, em plena guerra fria, se jogava uma feroz guerra de propaganda e de contrainformação. 

Volto a chamar a atenção para o facto de muitos dos que hoje dizem que tinham então tais certezas mentem, porque as suas certezas sobre os males do comunismo à soviética só serviam então para a sua militância maoísta agora esquecida em Bruxelas e noutras partes, certamente muito menos louvável em termos de abertura mental e de reflexão sobre o marxismo e a própria democracia (fora dos esquemas, porque também são esquemas, da social-democracia). Não me interessam agora os esquemas e as críticas teóricas, quero manifestar aqui as críticas reais, balanceadas com as coisas positivas, também reais. Por parte de quem as viveu, umas e outras.

Terminei as crónicas anteriores com a primavera de Praga. Primeiro, porque foi um acontecimento marcante na minha juventude política. Segundo, e relacionadamente, porque foi a primeira vez em que, na tal guerra de propaganda, pudemos perguntar: se é a direcção de um partido comunista e o seu secretário-geral a dizerem isto, a porem em prática medidas necessárias de liberalização, de efectivação de direitos (expressão, manifestação, participação política), de liberdade de imprensa, de novas relações entre o partido e a sociedade, na perspectiva do “socialismo de rosto humano”, pode o aparelho de propaganda do PCUS e aliados vir desmentir? Aliás, se não me engano e se recordo as informações que nos eram dadas pelo “controlo” partidário, o PCP começou por ter simpatia pela primavera de Praga, mudando de posição só na altura da intervenção do Pacto de Varsóvia.

É assim que, sem prejuízo de bastante actividade política posterior, sem ligação partidária, mas com contacto estreito com eurocomunistas, experiência muito interessante, só com o 25 de Abril voltei a reatar a ligação ao PCP, com a promessa de que, sem prejuízo da prioridade das tarefas revolucionárias da altura, tudo isso seria discutido. Não foi, como nem sequer foi feita a análise séria do 25 de Novembro e de algum comportamento do PCP que ajudou a esse golpe. No entanto, creio que o PCP, apesar disto, tentou e conseguiu, com a ajuda da inteligência de militares de elevada qualidade política (Costa Gomes, Melo Antunes, Rosa Coutinho, Martins Guerreiro) minimizar as consequências do que até poderia ter sido uma guerra civil. Todavia, dizem, foi o PCP que fez e perdeu o 25 de Novembro.

Do PCP pós-25 de Abril há uma visão localizada a alguns historiadores, como Raquel Varela, que, insistindo num grande tacticismo defensista e até oportunista do PCP, leva a água ao moinho esquerdista dos seus autores, eles os únicos revolucionários. É uma posição sem muito impacto, face à visão muito divulgada de um PCP raivoso, extremista, termidoriano. É sobre isto que é mais útil falar. Segundo dizem, o PCP simbolizou o extremismo revolucionário, a desordem, a que só faltaram as armas de as bombas (que o ELP usou com fartura).

Começo pelos preconceitos e pelas manipulações da história. A que principalmente perdura até hoje é a de o PCP ser apenas um partido de protesto, sem propostas. Afinal, sendo uma dicotomia arbitrária entre o que se presume serem partidos de governo (em ciclo vicioso de auto-perpetuação alternante), passa-se a ideia de que PS e PSD têm programas partidários e de governo, o PCP e o BE não. Mas alguém já os leu, esses dos partidos de governo? É com base neles que se vota? É claro que se pode discordar dos programas de congresso e eleitorais do PCP, mas jurar pela ausência de propostas – em regra muito mais sólidas e fundamentadas – mesmo que discutíveis, é ir pela manipulação mediática. Todavia, dizem, o PCP é só um partido de protesto.

Deturpação é também, de longe a de maior impacto, a ideia de que o PCP, se conquistasse o poder, teria implantado uma ditadura, contra a democracia mesmo que considerada meramente burguesa e formal. Não podendo pôr as mãos no fogo, creio que, honestamente, nada permite dizer isto. É certo que havia uma atitude ideológica triunfalista e sectária, que discutirei adiante, propícia à restrição dos direitos e liberdades formais, mas o caso mais falado, o do República, foi totalmente fabricado pelo PS, com ajuda de toda a imprensa da “Europa connosco”. Sabe-se bem que toda a movimentação foi esquerdista e que o PCP só tinha uma influência residual no jornal. Todavia, dizem, se tivesse ganho o poder, estaríamos em outra ditadura, se calhar pior do que o salazarismo. 

Outro quadro determinante da actuação do PCP, extremamente complexo, foi o do MFA, das suas indecisões, carências ideológicas e divisões internas. O PCP teve de lidar com isto, com a agravante de, no primeiro semestre da revolução, ter de a garantir contra ameaças sérias por parte dos revanchistas acantonados atrás de Spínola. Depois, penso, pessoalmente, que foi um terreno em que o PCP cometeu muitos erros, deixando-se arrastar para lutas um pouco infantis e de fraca substância política e ideológica entre grupos militares. 

No entanto, creio que ainda é difícil fazer essa história. Por exemplo, tendo eu vivido alguma coisa, fragmentária, do verão quente de 75, tendo lido tudo o que se tem publicado sobre os “golpes de rins” do PCP (Fabião, conversas com o grupo dos 9, posição em relação ao documento do COPCON, assembleia de Tancos, governo Pinheiro de Azevedo), ainda continuo confuso. Muito mais quem hoje só sabe alguns “sound bites” de jornalistas que quase ainda não eram nascidos nessa altura. Todavia, dizem, toda a gente hoje sabe tudo daquela época e não precisa de se informar mais, porque o PCP, e outros actores da história, ficam logo arrumados nas classificações da história, com etiquetas mal escritas. Também associado à figura de Vasco Gonçalves, perpetuada como de louco, um homem certamente com muitas culpas políticas mas que ninguém hoje estuda.

Muito relacionado com isto, também com uma feroz luta internacional de bastidores, no quadro da guerra fria, foi a descolonização. É voz corrente que o PCP foi o principal responsável pela descolonização, pelo regresso dos retornados, pela perda dos seus bens, o que qualquer pessoa, obviamente, considera um drama, uma das muitas dores da história. É o que ainda hoje ouço dizer a filhos de retornados (e lá vem sempre, fraca memória, o “comunista”, que nunca foi, Rosa Coutinho, regressado a Lisboa muito antes das cenas de tiroteio em Luanda). 

Comparado com o MFA, graças principalmente à confiança ganha junto dos movimentos por causa da sua atitude no terreno a seguir ao 25 de Abril, e com o PS (Mário Soares e Almeida Santos), até certo ponto coniventes com Spínola, o papel do PCP foi reduzido e de bastidores, só se tendo valorizado com a maior influência no MFA a partir do 28 de Setembro. De qualquer forma, e principalmente no que toca a Angola, independentemente do que é hoje o MPLA, perguntem-se os naturais de Angola o que lhes teria acontecido se não tivesse sido possível suster a força da FNLA apoiada por Mobutu e pelos EUA. Todavia, dizem, o PCP e o MFA são culpados do “crime” da descolonização, de não terem conseguido o milagre de fazerem esquecer pelos povos africanos séculos de opressão.

Mas não houve erros, até a perdurar até hoje? Claro que sim e muitos. Salientaria desde logo o erro de análise de se ter sobreestimado grosseiramente a força do movimento popular antifascista. Afinal, os movimentos grevistas, estudantis, as manifestações de rua do 1º de Maio, as movimentações legais das CDEs ou o Congresso de Aveiro eram coisa de poucos milhares de pessoas. O Largo do Carmo encheu-se com poucos milhares. De onde apareceram as centenas de milhar de manifestantes do 1º de Maio?

Este foi o primeiro momento de uma grande e continuada onda de voluntarismo, de sectarismo, de triunfalismo. O “assim se vê a força do PC” fica como marco negativo na história partidária desse tempo. É verdade que a direcção do partido alertava contra isto, mas nada se conseguia, até numa altura em que recrutar, recrutar, recrutar não só era palavra de ordem mas também credencial de mérito para o que se pensava serem algumas veleidades de carreira política (felizmente, com grande limpeza a seguir ao 25 de Novembro). Da mesma forma o culto de personalidade que indiscutivelmente testemunhei, e que combati, como dirigente intermédio, podendo testemunhar que era instrução “de cima” (embora haja muitas maneiras de fazer as coisas, e Cunhal era subtil). Também o prestar serviço, muitas vezes com sabujice, chegando-se, como comprovei, a transmitirem-se informações erradas – em particular sobre coisas militares – para se mostrar que se era muito importante.

Mais grave, mais triste, os ajustes de contas pessoais, os saneamentos. Não falo dos de autênticos criminosos, antes ligados à Pide ou à legião, ou descapitalizadores de empresas, mas de pessoas reaccionárias que, lá por isto, não tinham de ser privados do pão familiar. Isto aconteceu. Até ainda hoje me pesa ser acusado, com total fantasia, de o ter feito. Creio é que foi uma situação ocasional, em geral por vinganças pessoais, tal como outras situações “selvagens”. Nenhuma revolução é asséptica.

O que resta hoje de tudo isto? Honestamente, não sei, porque muito foi conjuntural, fruto da época revolucionária. Mas é provável que tenha havido factores estruturais que perdurem. Parece-me detectá-los  nas posições e no discurso do PCP.

A revisão do seu dogma marxista-leninista não é de somenos. As minhas convicções continuam – e julgo que continuarão – muito enraizadas no marxismo, relido à luz dos marxistas ocidentais e, também muito “et pour cause” dos marxistas latino-americanos (onde estão os portugueses?). Mas, de Lenine, fora a teoria geral da revolução, fica-me a rejeição do centralismo democrático e do papel dos funcionários partidários, a meu ver coisas lesivas de uma prática democrática que o partido deve mostrar à sociedade, como exemplo, e de uma cultura aberta da prática política.

Também a ênfase colectivista, menorizadora da escala individual e das suas novas aspirações, com a realização individual realizada no colectivo. Também a valorização de outras influências ideológicas, como a religiosa. Também a libertação da cultura da influência instrumentalizadora da política (sei do que falo, fui responsável pelo MUTI). O respeito pela autonomia das novas formas de intervenção social. A análise profunda dos grandes fenómenos mundiais, civilizacionais, como a globalização, a emergência de novas economias de “capitalismo selvagem”, a importância da educação e das novas tecnologias na formação do capital, etc.

Importante também a influência nos jovens, quando se fez a imagem do PCP como partido de velhos. Não sei, embora possa admitir que o BE tenha tirado ao PCP algum eleitorado jovem, urbano, de pequena e média burguesia, com destaque para intelectuais e estudantes. Mas só uma análise sociológica e o estudo dos resultados das mesas de voto dos eleitores mais jovens poderá dar indicações seguras.

Podia o PCP ser hoje diferente se tudo isto tivesse sido diferente? A história faz-se com factos, não com “ses”. O que não impede que a discussão sincera do que se podia desejar que tivessem sido as respostas a esses “ses” possa ser muito importante para o presente e o futuro.

Concluo com um aspecto essencial pouco discutido até mesmo, por razões compreensíveis, pelo próprio PCP e pelos seus teóricos. O que é hoje um partido socialista revolucionário? O que é hoje o PCP como partido revolucionário (não estou a falar de tiros e atentados, como é óbvio)? O PCP é um partido com uma luta intensa centrada na oposição aos governos de direita (e seus cúmplices objectivos) e na expressão do protesto popular. Mas, compreensivelmente, consolidada a democracia institucional, luta no quadro dessa democracia, indo longe os tempos de clara distinção das suas propostas revolucionárias como, certa ou errada, a revolução democrática e nacional. Mais importante, fica preso do respeito por esse quadro formal, não propondo a sua reforma radical. É por vezes distinguir, no seu programa, o que não é gestão “progressista” do capitalismo.

Não jogando no terreno revolucionário tradicional, resta-lhe a revolução “por dentro do sistema”, provavelmente tendo de passar por um compromisso com o capitalismo, sob severo controlo – o que não é o mesmo que respeito pelos seus fundamentos. Mas, para isto, e nesta fase, tem de ganhar o sistema segundo os termos do sistema, isto é, eleitoralmente. Como? Não certamente só com um bloco dos dois partidos de esquerda radical, também com um leque alargado de forças e movimentos sociais, e determinantemente boa parte do eleitorado do PS. O PS-aparelho é que não adianta, como estou farto de escrever, porque em nada seria “ganhar o sistema”.

Na foto: um homem a estudar cada vez mais, Antonio Gramsci.

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