terça-feira, 24 de setembro de 2013

Euro-utópicos e euro-realistas

RESUMO: Na sequência das eleições alemãs, um artigo longo  sobre o euro-utopismo. Desenvolvo três aspectos fundamentais: 1. a concepção idealista da UE como entidade agregadora de estados iguais, quando, de facto, é uma comunidade sujeita a um “hegemónio benévolo”, a Alemanha; 2. a sobrevalorização euro-utópica da aplicação à Europa actual de formas tradicionais de luta política, que não consideram a hegemonia e o enorme peso estrutural do neoliberalismo, bem como a subordinação dos governos à ideologia alemã; 3. o idealismo romântico (?) dos projectos federativos. 

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Discorrendo sobre as eleições alemãs, dois comentadores bem conhecidos, Rui Tavares e Daniel Oliveira, escrevem ontem artigos sobre a influência que elas têm na política nacional e o que se pode esperar delas. Em ambos os casos, por razões diferentes, dão motivo para nos questionarmos sobre concepções políticas baseadas na crença na fada europeia, na exaltação de uma eurofilia utópica e paralisante.

Para esses euro-utopistas que andam por toda a UE, a crise da Europa tem razões principalmente políticas, de défice e não de avanço voluntarista na união, e, por consequência, o terreno principal da luda de esquerda é a nível europeu.

Pelo contrário, a crise da construção europeia não está no défice formal de democracia, de colaboração entre os estados, de participação dos povos europeus, na burocracia centralizadora que desconhece o princípio da subsidariedade. Tudo isto existe mas, para o comum do cidadão dos países europeus (nem me lembro de dizer “cidadão europeu”), tudo isto é fado, tudo isto lhe é estranho. É conversa de uma elite que se converteu a uma globalização cultural que é uma caricatura de cosmopolitização solidamente enraizada em realidades nacionais e regionais com significado bem estabelecido.

A crise está numa disfuncionalidade intrínseca dos princípios e critérios de união económica (o resto são cantigas), com contradições insanáveis, como, por exemplo, a concorrência total num mercado único, com liberdade de movimentação de capitais, e a proclamada solidariedade. Está na aventura do euro sem condições de “zona monetária óptima”. Está na contradição máxima de, para salvar o euro, precisar de avançar para uma federação e ninguém o querer (nem eu, na modesta parte de cidadão que me toca).

A União Europeia (UE) não é uma união ou confederação de estados iguais, nem politicamente nem economicamente. A diferenças de facto vieram juntar-se, com os resgates à Grécia, a Portugal e à Irlanda imposições que significam verdadeira limitação da soberania. Alemanha desempenha hoje na Europa um papel de “hegemónio benévolo”, como os Estados Unidos à escala mundial, depois do colapso da URSS. São características típicas do “hegemónio benévolo” –  nova forma de potência imperial – por exemplo, grande poder económico, controlo organizacional da sociedade, grande poder tecnológico, reconhecimento pelos estados satélites do seu papel de líder, poder militar.

A Alemanha só não tem esse poder militar, mas, numa época em que a guerra se faz com a economia, ele não é essencial para a capacidade alemã de se assumir e impor como “hegemónio benévolo”. Então, se a real politik ainda vale alguma coisa, como é que os europeístas fantasistas pensam que a Alemanha vai prescindir desse estatuto de facto, sujeitar-se a ser mais um igual entre iguais na UE e mormente onde as coisas doem mais, na eurozona? Como é que os seus governos vão deixar de atender ao desejo dos alemães de assumirem esse papel internacional (com algum revanchismo?). Mais. Com a reunificação alemã e com a entrada na UE de um bom número de países tradicionalmente na órbita de influência alemã (não obstante as muitas guerras entre eles), a tendência centrípeta do eixo franco-alemão dos pais fundadores da CEE inverteu-se e abre-se uma brecha entre um bloco germano-leste e um bloco latino (com o Reino Unido a assistir).

O domínio das concepções alemãs na construção europeia e do euro é o reflexo da vitória da concertação  de uma ideologia e de uma prática economico-política com ela intimamente relacionada. O neoliberalismo esteve no núcleo do projecto europeu, no seu desenvolvimento a partir do acto único e mais acentuadamente de Maastricht. Reclamar, nestas condições, a democratização do projecto, como fazem os euro-utopistas, é não perceber que ambas as coisas estão associadas e que não se pode eliminar a superestrutura tecnocrática e de “especialistas” (e comissários) sem cultura democrática sem se destruir a ideologia neoliberal, que só sobrevive, hegemonicamente (vide Gramsci), por se sustentar necessariamente nesse aparelho cultural e de manipulação mental.

O euro, no quadro da financeirização da economia, é o compromisso de solução entre a dificuldade de não ser sustentado por um estado único com orçamento comum e um banco central politicamente dependente e com poder na política monetária; e ter de respeitar um mínimo de equilíbrio entre as diversas economias (o que não faz, desde o início com distorções na definição de paridades, a causar excedentes e défices, movimentos de capitais para crédito fácil, tudo a explodir em bolhas financeiras).

Como o euro foi coisa difícil de aceitar pela Alemanha (e pelos seus eleitores), que certamente preferia que a reunificação e a integração dos países de leste na UE tivesse sido feita sob o peso do marco, Mitterrand pagou o preço de definir o euro à imagem e semelhança do marco: moeda forte, controlada por um banco central independente, com objectivo exclusivo de garantir a estabilidade dos preços. 

Afinal, isto nem é só novidade do neoliberalismo europeu à Thatcher. Já vem inscrito no velho ordoliberalismo alemão da primeira metade do século XX, que sempre influenciou a democracia cristã, diferindo apenas do neoliberalismo por defender maior papel regulador do Estado, mas sempre a bem do mercado. Impregnado na mentalidade alemã, vê-se agora reforçado pela sua tendência para a “economia moral”, como norma de sociedades de formigas, trabalhadoras e responsáveis, que não têm de ajudar as sociedades de cigarras, gastadoras e irresponsáveis. A tristeza está em ouvirmos tantos portugueses a concordarem com isto.

O imobilismo da posição alemã está portanto inscrito no seu “código genético”, independentemente de haver ou não eleições como as de domingo passado. É sintomática a recusa alemã em considerar qualquer correcção da sua visão dogmática, mesmo quando todos os dados reais o exigem. Só aceitou o tratado orçamental, que se encaixa perfeitamente na sua visão, mas rejeita intransigentemente as obrigações europeias de dívida mutualizada, o alargamento de poderes do BCE, uma verdadeira união bancária abrangendo também os bancos alemães, o fundo de reestruturação bancária e, obviamente, a taxa Tobin. Só não recusa os 41 mM de euros que já lucrou em juros dos empréstimos de resgate dos países periféricos, Portugal incluído.

Pensar que todo este quadro político, ideológico e económico, extremamente entrosado e complexo, se resolve em termos de luta política tradicional agora apenas com mudança de terreno de batalha, para a Europa, como pretendem os euro-utopistas, é “wishful thinking” perigoso, que pode paralisar a esquerda dos países europeus.

Passemos agora para outra questão, estrutural e institucional. Goste-se ou não, é possível argumentar, em teoria, que muitas disfuncionalidades do euro poderiam ser resolvidas pela construção de uma zona monetária óptima, que a história mostra que só é viável como uma federação. É sintomático que, chegados a este ponto de dedo na ferida, os euro-utopistas começam as voltas, sabendo bem como a ideia não é apoiada pela generalidade dos europeus e, portanto, não tem a sustentação democrática que eles tanto defendem como o principal défice da UE.

Vou esquecer agora a diferença entre confederações e federações porque o que importa, em termos comparativos, são as federações actuais, principalmente as que passaram de um estadio a outro por razões financeiras e de necessidade de moeda comum e dívida mutualizada, como aconteceu com os EUA depois de Adams.

Em primeiro lugar, não me estou a lembrar de nenhuma federação bem sucedida que não tenha sido formada por vontade comum “contra” qualquer coisa (Estados Unidos, Brasil, de certa forma a Suíça) ou por imposição de um poder imperial ou seu sucessor (URSS) ou de um projecto político conduzido por um poder central forte, à Bismark (novamente a Alemanha!). Outros casos, de estados quase federativos (Canadá, Austrália, África do Sul), reúnem comunidades muito recentes, em experiências de expansão que exigem compromisso entre individualidade e a utilização de recursos comuns, principalmente as vias de comunicação e transportes. Outra coisa essencial, com excepção da Suíça e do Canadá, é a forte coesão cultural expressa pela existência de uma língua única.

A Suíça é caso único, pela diversidade de factores que, ao longo dos séculos, desde os três cantões alpinos iniciais até às adesões pós-napoleónicas, justificaram a expansão da confederação. Também a constituição de algumas federações não foi linear. Por exemplo, a seguir a Ipiranga, houve quase guerra civil por alguns estados brasileiros terem apoiado a velha monarquia. Mesmo a adesão dos estados americanos à guerra contra o colonialismo britânico não foi unânime.

Assim, qual é o projecto federalista dos euro-utopistas, em que se baseia, como se configura na prática, como garante a solidariedade, o equilíbrio de poderes federais e nacionais? Não me venham com a tese, que já li, de que tudo correrá bem pelo reconhecimento de que a diversidade é um factor histórico de enriquecimento. A Europa criou problemas demais, a terem de ser resolvidos, para agora se meter em mais aventuras voluntaristas, utópicas e embaladoras do ego de algumas elites bem pensantes, contra o realismo dos povos que sentem os seus problemas do dia-a-dia. O complicado é que, não avançando mais e mais nesta corrida para o abismo em que se lançou, há que regressar ao início e refundar todo o projecto, euro incluído. Mas qual é o mal?

A transposição para a dimensão europeia da luta popular e de esquerda é um mito perigoso. Parte do princípio, não demonstrado, antes pelo contrário, de que há mais forças a este nível e menor capacidade das forças conservadoras. É falso, porque foi principalmente à escala europeia que o neoliberalismo construiu um sistema ideológico, institucional e económico de que os nacionais são reflexo.

Ainda é ao nível nacional que se reúnem os factores de luta que são as experiências históricas consolidadas, as identificações partidárias, com os sindicatos e outros corpos intermédios, que há uma cultura política e tradição mobilizadora, que (paradoxalmente) há melhores condições e mais flexíveis para acções internacionais comuns. E, principalmente, é o nível a que, pela diversidade de condições económicas e sociais e relação específica entre efeitos da crise e da política central europeia, por um lado, e da reacção popular, por outro, surgirão condições revolucionárias para um assalto e outro depois ao Palácio de Inverno central europeu (passe a alegoria). Esperar pelo levantamento europeu geral e recusar a luta num só país é mesmo o que se pode esperar de trotsquistas serôdios…

P. S. (25.9.2013, 10:15) – Esta versão tem diferenças significativas em relação ao artigo original, publicado ontem. Reduzi a discussão dos artigos de RT e DO, a que os leitores têm acesso e centrei-me na minha própria posição sobre o tema da eurofilia utópica e dos seus perigos.

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