segunda-feira, 30 de setembro de 2013

É complicado resolver a fraude académica?

Porque é que temos sempre de nos embrulhar em discursos redondos, inconclusivos, retóricos? Porque é que a decisão necessária, claramente assumida, tem de parecer o jogo da cabra cega do Goya? O iOnline de há dias publica uma notícia sobre o plágio entre os estudantes universitários. Aparentemente, 40-60% dos nossos estudantes já caiu nisto. Não me surpreende, já apanhei muitos. Em boa parte, é incúria dos professores. A descarga de textos da net é muitas vezes evidente, principalmente pelos brasileirismos, e há instrumentos informáticos poderosos – tenho-os na minha universidade – para detectar o plágio. 

Simplesmente, muitos professores estão-se nas tintas, aqueles que, nas públicas e principalmente nas privadas, têm um arranjinho de duas a quatro horas por semana, com aulas preparadas há cinco ou dez anos atrás e nunca actualizadas. E até nem culpo inteiramente as universidades por esta situação. Em muitos casos, são esses “professores”, políticos, empresários, que querem um título universitário para abrilhantar o currículo. O caso Relvas foi caricato, mas há outros mais “sofisticados”.

O que me surpreende no artigo do jornal é andar a divagar sobre diversas caracterizações do fenómeno sem ir ao essencial. Que é “um problema muito sério, fraturante e global”, lá tinha de vir o discurso redondo de vazio semântico. Que contribui para o baixo nível de desenvolvimento social, económico e político de um país. Ídem. Que acaba por formar “ativos tóxicos” (tem graça, esta).

E lá vem o efeito social: “são pessoas que vão para o mundo do trabalho sem terem as qualificações necessárias para a sua futura vida profissional”.

E ninguém diz, preto no branco, o essencial: estes jovens, por jovens que sejam, são criminosos, desprovidos de ética e não merecem estar numa universidade que gasta com eles muitos dos nossos recursos de contribuintes. Pura e simplesmente, a fraude académica deve implicar a expulsão da universidade. Sem mais, é tudo. Leiam o código de conduta de Harvard e das outras da Ivy League.

Visão heterodoxa dos resultados de ontem

A tendência geral, na análise dos resultados eleitorais, é a de contrapor principalmente o PS e a direita no governo. Talvez não seja a perspectiva mais significativa, em termos de grande tendência e do que pode vir aí como resultado das próximas legislativas.

Claro que o PS foi o principal oponente da direita, numas eleições em que, entrando em jogo muitos factores locais, também pesa o desejo de penalizar o governo e a sua política austeritária. Assim, linearmente, o PS parece capitalizar essa penalização.

Mas será assim, como tendência eleitoral, mormente em próximas legislativas e até nas europeias? Tenho dúvidas, porque, mesmo nas declarações de vitória do PS (com excepção do discurso “nacional”, muito hábil, de António Costa), não há nada que mostre o aproveitamento pelo PS destes resultados eleitorais para afirmar uma alternativa firme de política nacional e internacional. Não se confunda este plano com o plano simbólico dos casos exemplares, como Lisboa, Sintra ou Gaia.

A vitória do PS é inegável mas tem alguma coisa de vitória de Pirro. Não vou contar câmaras nem transferências de bastiões, ficando-me pelas percentagens nacionais. Sei que têm alguma coisa de enviesado, porque os factores locais pesam muito. Minimizando um pouco esse risco, vou usar os resultados para as assembleias municipais.

O PS obteve 35,02% dos votos em 2013 e 36,67% em 2009. Com 1.697.630 votos, perde um pouco mais de 386 mil votos (18,6%). Não se pode falar em derrota, mas também não é uma vitória, muito menos espectacular. A direita, PSD mais o CDS e as suas coligações, fica com 1.723.040 votos (39,87 %) e perde 590.575 votos (25,5%).

Isto são números relativos a movimentos dentro de um grande conjunto, o dos partidos troikianos, em versão dura ou em versão xaroposa. Não me interessando agora analisar essas pequenas oscilações intra-sistema, que nada contribuem para uma verdadeira alternativa, lembro que, nas eleições de 2011, em resultado tão elogiado por Gaspares e todo o clube de troikianos, esse “arco” – PS, PSD e CDS – teve os célebres 78,41% de votos apoiantes do resgate (também chamado de “ajuda externa, como se viu), em números absolutos 4.381.897 votos. Ontem, tiveram 3.420.670 votos, perdendo 22%. Para onde foram esses votos? O que significa a perda?

Foram para a abstenção? Ela cresceu de 4.035.539 votos (41,93%) em 2009 para ontem, 4.557.026 votos (47,35%). Estes cerca de 500,000 votos ficam a meio caminho de explicar a quebra de quase um milhão de votos do arco troikiano.

A meu ver, há duas principais razões da mudança eleitoral, com consequências previsíveis – saiba-se ver a tempo – para as legislativas: a votação na “esquerda radical” (não gosto do termo, mas uso-o por conveniência) e os grupos de cidadãos ou movimentos independentes (designação também dúbia).

O conjunto PCP-BE fortalece a sua posição. Se pudermos transpor isto para a escala nacional, significa a afirmação da alternativa política clara à política troikiana, mesmo que esta disfarçada com falinhas doces de menino de coro. Nas autárquicas de 2009, teve 706.795 votos (12,77%), agora 730.825 (13,08%), mais 24.030 (0,31%). Se corrigido para o aumento da abstenção, o aumento da votação foi de 0,35%. Note-se que nestes dados globais se tem de contar com a absorção pela CDU da quebra dos resultados do BE. 

O PCP está a fortalecer-se, como oponente mais consequente (a meu ver) à política troikiana, face a um BE indeciso, sem posição clara sobre o euro e até sobre uma verdadeira reestruturação da dívida? Tentarei discutir isto mais tarde. Para já, é importante estudar uma situação que os actuais dados ainda não me revelam: o PCP ganhou posições só nos seus bastiões tradicionais, recuperando perdidos, ou também avançou em zonas determinantes, como as zonas urbanas litorais, de população mais jovem e de maior nível educacional e cultural? 

Quanto ao BE, que se cuide!

O outro grande fenómeno foi o da participação de grupos de cidadãos, mais geralmente conhecidos como independentes (6,31%). É difícil a análise, porque tanto parecem significar apenas tricas partidárias internas, como em Portalegre, como genuínos aglutinadores de movimentações de massas, como no Porto ou em Matosinhos. A sua expressão eleitoral foi eloquente e mostra como as gentes se estão a libertar das tutelas partidárias. Mas não sem ambiguidades. Afinal, Rui Moreira, combatendo o candidato oficial da direita, é menos à direita do que Meneses? E o homem de Oeiras é exemplo para algum filho nosso que queiramos educar no respeito pela lei e pela ética? O podemos contar com estes novos actores políticos (novos caciques?), em lutas políticas a nível nacional?

Ainda uma nota sobre o voto em branco. É importante e passa muito cá em casa. Eu próprio, por razões de falta de informação, votei ontem um boletim, o de significado mais político geral, num partido e os outros dois em branco. É pena que ainda vá ficando derrotado pela incivilidade e comodismo da abstenção. Nestas eleições, o voto branco representou , muito à frente do de 2009 (1,99%). Uma grande diferença, que tem de ser tida em conta nas análises e nos espectáculos televisivos de noite eleitoral, que sempre a esquecem.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Textos longos

Escrevi hoje uma entrada [*] com 13000 caracteres. É muito mais do que qualquer jornal me permitiria como artigo de opinião e vai contra todo o “consenso” (?) de que na net (permita-se-me não pôr entre aspas os termos ingleses, senão não fazia hoje outra coisa) se tem de escrever textos curtos. Esse consenso dá como tontos, intelectualmente primários e preguiçosos a maioria dos leitores online. A ideia é de que não conseguem ler mais do que um ecrã e fazerem scroll é pedir-lhes demasiado. E não se esqueça que um dos grandes padrões actuais de comunicação, o Twitter, só permite 140 caracteres. É uma espécie de p**d* mental.

Paradoxalmente, isto é auxiliado pelo afastamento destas lides e correcção de intyervenção e de fixação de usos por parte de muita gente com responsabilidade. Por exemplo, conheço um bloguista que escreve com frequência mas que raramente lê o que se publica na blogosfera. Conheço leitores ávidos que desconhecem que um Kindle ou outro que tal lhes permite levar para o café centenas ou milhares de livros. Conheço um jornalista respeitado que nem sequer tem endereço electrónico e a quem é impossível mandar observações às suas críticas e crónicas. É também conhecido o caso de um escritor famoso que só escreve à mão, certamente para grande mal dos editores e revisores. Se todas estas pessoas vencerem a sua info-iliteracia, contribuem para maior seriedade da leitura online e para que ela não seja vista como coisa menor.

Fiz uma contagem sumária e aproximada do número médio de caracteres das entradas dos blogues que leio obrigatoriamente. Anda pelos 1400-1500. Há desvios grandes, como o meu velho amigo Medeiros Ferreira que faz entradas estilo haiku, de três ou quatro linhas, até outro caro amigo, Correia Pinto, que reflecte aprofundadamente, muitas vezes para cima de 4000 caracteres. Há ainda os casos particulares dos que transcrevem para blogues crónicas de jornais com a respectiva dimensão, relativamente generosa, como José Vítor Malheiros ou Daniel Oliveira. Também dimensão característica, geralmente curta, para os blogues mais marcadamente panfletários (sem ofensa) com menor extensão de argumentação.

Porque escrevo assim? E é que, por me parecer estar a fazer discurso de comício (claro que a maioria dos meus colegas bloguistas não o faz), não me apetece sequer escrever a nota curta, embora sabendo que a capacidade de síntese é uma virtude retórica. Como é costume atribuir-se ao Pe. António Vieira uma apostila em que pede desculpa de uma carta ir muito longa por não ter tido tempo para a escrever mais curta.

Devia gostar de escrever na net como telegramas, porque até tenho boa experiência, de décadas de escrita de artigos científicos, em inglês, em que o editor não permitia estiramentos. Simplesmente, tratava-se de escrita sobre assuntos relativamente lineares (a ciência banal é muito mais chata do que pensam e do que se deduz do marketing dos sucessos que enchem os jornais). Também para leitores que sabiam do assunto tanto ou mais do que eu e que avaliavam os resultados sem eu precisar de grande discussão. Finalmente, admito, não estava a tentar “passar” posições políticas ou ideológicas. Creio que contribui para esta minha habitual extensão de textos o respeito pelo leitor, a quem quero dar toda a informação necessária para que possa construir o seu juízo. Se calhar, também o hábito longo de escrever artigos para o meu sítio, antes de ter blogues.

Terá de ser mesmo assim o tal paradigma de textos curtos, de intervenção quase de sound bites, ou com muito pouca elaboração para além de teses? Leia-se um artigo muito interessante transcrito há tempos pelo Público, “Leia este artigo mais tarde” que analisa, com dados científicos, a mudança dos hábitos e capacidades de leitura e em que se dá conta do crescente sucesso de aplicações desenhadas para guardar, etiquetar e recordar artigos desenvolvidos que os afazeres do dia não permitem ler, considerando-se como longo um artigo com mais do que 15000 caracteres. Vale a pena ler.

[*] Como disse acima, não tenho nada contra o uso judicioso de anglicismos mas, por vezes, há coisas que revelam ignorância crassa e total desrespeito pela nossa língua. Quantas vezes já leram posta, como  tradução (?) de post de um blogue? Blog é a contracção de “web log”, sendo “log” ou “log book” o diário de bordo, em que se faziam posts ou, em Portugal, entradas. Agora postas, só à transmontana e grelhadas!

P. S. (25.9.2013) – Depois da edição substancial que expliquei em P. S. ao texto, hoje, ele ficou com cerca de 9700 caracteres.

Euro-utópicos e euro-realistas

RESUMO: Na sequência das eleições alemãs, um artigo longo  sobre o euro-utopismo. Desenvolvo três aspectos fundamentais: 1. a concepção idealista da UE como entidade agregadora de estados iguais, quando, de facto, é uma comunidade sujeita a um “hegemónio benévolo”, a Alemanha; 2. a sobrevalorização euro-utópica da aplicação à Europa actual de formas tradicionais de luta política, que não consideram a hegemonia e o enorme peso estrutural do neoliberalismo, bem como a subordinação dos governos à ideologia alemã; 3. o idealismo romântico (?) dos projectos federativos. 

* * * * *

Discorrendo sobre as eleições alemãs, dois comentadores bem conhecidos, Rui Tavares e Daniel Oliveira, escrevem ontem artigos sobre a influência que elas têm na política nacional e o que se pode esperar delas. Em ambos os casos, por razões diferentes, dão motivo para nos questionarmos sobre concepções políticas baseadas na crença na fada europeia, na exaltação de uma eurofilia utópica e paralisante.

Para esses euro-utopistas que andam por toda a UE, a crise da Europa tem razões principalmente políticas, de défice e não de avanço voluntarista na união, e, por consequência, o terreno principal da luda de esquerda é a nível europeu.

Pelo contrário, a crise da construção europeia não está no défice formal de democracia, de colaboração entre os estados, de participação dos povos europeus, na burocracia centralizadora que desconhece o princípio da subsidariedade. Tudo isto existe mas, para o comum do cidadão dos países europeus (nem me lembro de dizer “cidadão europeu”), tudo isto é fado, tudo isto lhe é estranho. É conversa de uma elite que se converteu a uma globalização cultural que é uma caricatura de cosmopolitização solidamente enraizada em realidades nacionais e regionais com significado bem estabelecido.

A crise está numa disfuncionalidade intrínseca dos princípios e critérios de união económica (o resto são cantigas), com contradições insanáveis, como, por exemplo, a concorrência total num mercado único, com liberdade de movimentação de capitais, e a proclamada solidariedade. Está na aventura do euro sem condições de “zona monetária óptima”. Está na contradição máxima de, para salvar o euro, precisar de avançar para uma federação e ninguém o querer (nem eu, na modesta parte de cidadão que me toca).

A União Europeia (UE) não é uma união ou confederação de estados iguais, nem politicamente nem economicamente. A diferenças de facto vieram juntar-se, com os resgates à Grécia, a Portugal e à Irlanda imposições que significam verdadeira limitação da soberania. Alemanha desempenha hoje na Europa um papel de “hegemónio benévolo”, como os Estados Unidos à escala mundial, depois do colapso da URSS. São características típicas do “hegemónio benévolo” –  nova forma de potência imperial – por exemplo, grande poder económico, controlo organizacional da sociedade, grande poder tecnológico, reconhecimento pelos estados satélites do seu papel de líder, poder militar.

A Alemanha só não tem esse poder militar, mas, numa época em que a guerra se faz com a economia, ele não é essencial para a capacidade alemã de se assumir e impor como “hegemónio benévolo”. Então, se a real politik ainda vale alguma coisa, como é que os europeístas fantasistas pensam que a Alemanha vai prescindir desse estatuto de facto, sujeitar-se a ser mais um igual entre iguais na UE e mormente onde as coisas doem mais, na eurozona? Como é que os seus governos vão deixar de atender ao desejo dos alemães de assumirem esse papel internacional (com algum revanchismo?). Mais. Com a reunificação alemã e com a entrada na UE de um bom número de países tradicionalmente na órbita de influência alemã (não obstante as muitas guerras entre eles), a tendência centrípeta do eixo franco-alemão dos pais fundadores da CEE inverteu-se e abre-se uma brecha entre um bloco germano-leste e um bloco latino (com o Reino Unido a assistir).

O domínio das concepções alemãs na construção europeia e do euro é o reflexo da vitória da concertação  de uma ideologia e de uma prática economico-política com ela intimamente relacionada. O neoliberalismo esteve no núcleo do projecto europeu, no seu desenvolvimento a partir do acto único e mais acentuadamente de Maastricht. Reclamar, nestas condições, a democratização do projecto, como fazem os euro-utopistas, é não perceber que ambas as coisas estão associadas e que não se pode eliminar a superestrutura tecnocrática e de “especialistas” (e comissários) sem cultura democrática sem se destruir a ideologia neoliberal, que só sobrevive, hegemonicamente (vide Gramsci), por se sustentar necessariamente nesse aparelho cultural e de manipulação mental.

O euro, no quadro da financeirização da economia, é o compromisso de solução entre a dificuldade de não ser sustentado por um estado único com orçamento comum e um banco central politicamente dependente e com poder na política monetária; e ter de respeitar um mínimo de equilíbrio entre as diversas economias (o que não faz, desde o início com distorções na definição de paridades, a causar excedentes e défices, movimentos de capitais para crédito fácil, tudo a explodir em bolhas financeiras).

Como o euro foi coisa difícil de aceitar pela Alemanha (e pelos seus eleitores), que certamente preferia que a reunificação e a integração dos países de leste na UE tivesse sido feita sob o peso do marco, Mitterrand pagou o preço de definir o euro à imagem e semelhança do marco: moeda forte, controlada por um banco central independente, com objectivo exclusivo de garantir a estabilidade dos preços. 

Afinal, isto nem é só novidade do neoliberalismo europeu à Thatcher. Já vem inscrito no velho ordoliberalismo alemão da primeira metade do século XX, que sempre influenciou a democracia cristã, diferindo apenas do neoliberalismo por defender maior papel regulador do Estado, mas sempre a bem do mercado. Impregnado na mentalidade alemã, vê-se agora reforçado pela sua tendência para a “economia moral”, como norma de sociedades de formigas, trabalhadoras e responsáveis, que não têm de ajudar as sociedades de cigarras, gastadoras e irresponsáveis. A tristeza está em ouvirmos tantos portugueses a concordarem com isto.

O imobilismo da posição alemã está portanto inscrito no seu “código genético”, independentemente de haver ou não eleições como as de domingo passado. É sintomática a recusa alemã em considerar qualquer correcção da sua visão dogmática, mesmo quando todos os dados reais o exigem. Só aceitou o tratado orçamental, que se encaixa perfeitamente na sua visão, mas rejeita intransigentemente as obrigações europeias de dívida mutualizada, o alargamento de poderes do BCE, uma verdadeira união bancária abrangendo também os bancos alemães, o fundo de reestruturação bancária e, obviamente, a taxa Tobin. Só não recusa os 41 mM de euros que já lucrou em juros dos empréstimos de resgate dos países periféricos, Portugal incluído.

Pensar que todo este quadro político, ideológico e económico, extremamente entrosado e complexo, se resolve em termos de luta política tradicional agora apenas com mudança de terreno de batalha, para a Europa, como pretendem os euro-utopistas, é “wishful thinking” perigoso, que pode paralisar a esquerda dos países europeus.

Passemos agora para outra questão, estrutural e institucional. Goste-se ou não, é possível argumentar, em teoria, que muitas disfuncionalidades do euro poderiam ser resolvidas pela construção de uma zona monetária óptima, que a história mostra que só é viável como uma federação. É sintomático que, chegados a este ponto de dedo na ferida, os euro-utopistas começam as voltas, sabendo bem como a ideia não é apoiada pela generalidade dos europeus e, portanto, não tem a sustentação democrática que eles tanto defendem como o principal défice da UE.

Vou esquecer agora a diferença entre confederações e federações porque o que importa, em termos comparativos, são as federações actuais, principalmente as que passaram de um estadio a outro por razões financeiras e de necessidade de moeda comum e dívida mutualizada, como aconteceu com os EUA depois de Adams.

Em primeiro lugar, não me estou a lembrar de nenhuma federação bem sucedida que não tenha sido formada por vontade comum “contra” qualquer coisa (Estados Unidos, Brasil, de certa forma a Suíça) ou por imposição de um poder imperial ou seu sucessor (URSS) ou de um projecto político conduzido por um poder central forte, à Bismark (novamente a Alemanha!). Outros casos, de estados quase federativos (Canadá, Austrália, África do Sul), reúnem comunidades muito recentes, em experiências de expansão que exigem compromisso entre individualidade e a utilização de recursos comuns, principalmente as vias de comunicação e transportes. Outra coisa essencial, com excepção da Suíça e do Canadá, é a forte coesão cultural expressa pela existência de uma língua única.

A Suíça é caso único, pela diversidade de factores que, ao longo dos séculos, desde os três cantões alpinos iniciais até às adesões pós-napoleónicas, justificaram a expansão da confederação. Também a constituição de algumas federações não foi linear. Por exemplo, a seguir a Ipiranga, houve quase guerra civil por alguns estados brasileiros terem apoiado a velha monarquia. Mesmo a adesão dos estados americanos à guerra contra o colonialismo britânico não foi unânime.

Assim, qual é o projecto federalista dos euro-utopistas, em que se baseia, como se configura na prática, como garante a solidariedade, o equilíbrio de poderes federais e nacionais? Não me venham com a tese, que já li, de que tudo correrá bem pelo reconhecimento de que a diversidade é um factor histórico de enriquecimento. A Europa criou problemas demais, a terem de ser resolvidos, para agora se meter em mais aventuras voluntaristas, utópicas e embaladoras do ego de algumas elites bem pensantes, contra o realismo dos povos que sentem os seus problemas do dia-a-dia. O complicado é que, não avançando mais e mais nesta corrida para o abismo em que se lançou, há que regressar ao início e refundar todo o projecto, euro incluído. Mas qual é o mal?

A transposição para a dimensão europeia da luta popular e de esquerda é um mito perigoso. Parte do princípio, não demonstrado, antes pelo contrário, de que há mais forças a este nível e menor capacidade das forças conservadoras. É falso, porque foi principalmente à escala europeia que o neoliberalismo construiu um sistema ideológico, institucional e económico de que os nacionais são reflexo.

Ainda é ao nível nacional que se reúnem os factores de luta que são as experiências históricas consolidadas, as identificações partidárias, com os sindicatos e outros corpos intermédios, que há uma cultura política e tradição mobilizadora, que (paradoxalmente) há melhores condições e mais flexíveis para acções internacionais comuns. E, principalmente, é o nível a que, pela diversidade de condições económicas e sociais e relação específica entre efeitos da crise e da política central europeia, por um lado, e da reacção popular, por outro, surgirão condições revolucionárias para um assalto e outro depois ao Palácio de Inverno central europeu (passe a alegoria). Esperar pelo levantamento europeu geral e recusar a luta num só país é mesmo o que se pode esperar de trotsquistas serôdios…

P. S. (25.9.2013, 10:15) – Esta versão tem diferenças significativas em relação ao artigo original, publicado ontem. Reduzi a discussão dos artigos de RT e DO, a que os leitores têm acesso e centrei-me na minha própria posição sobre o tema da eurofilia utópica e dos seus perigos.

domingo, 22 de setembro de 2013

Cincinato, precisa-se

Lucius Quinctius Cincinnatus (Cincinato) ocupou os mais altos cargos de patrício romano, senador, cônsul, general. Apesar de todo este poder, retirou-se no fim do mandato para a sua vila agrícola, onde uma delegação do senado o foi buscar, estava ele a lavrar a terra, diz a lenda, para assumir poderes de ditador, em 458 AC, face ao perigo de invasão de Roma pelos écuos e vólcuos, tribos itálicas não latinas. Venceu-os mas, contra a forte movimentação que queria prolongar o seu poder, recolheu novamente à sua quinta. Vinte anos depois, já com oitenta anos, é-lhe dado novamente o poder de ditador para derrotar a conspiração de Mélio e novamente abdica do poder e se retira para a vida privada quando Roma deixa de necessitar dele.

É o exemplo máximo da ética republicana. Entre nós, e deixada a vida pública para uma geração de arrivistas e oportunistas, a noção de ética reduz-se a “tudo o que não é ilegal é permitido”. Não é assim. A fórmula é juridicamente indiscutível como defesa dos direitos, na vida privada, mas não é válida na vida pública, embora tenha de ser sancionada politicamente e não judicialmente. Ainda mais do que a substância, o conteúdo essencial, não só formal, da ética política, até é importante a imagem, para um bom clima de confiança entre políticos e cidadãos: “à mulher de César não basta ser honesta, é preciso parecê-lo”.

Note-se que, quando falo de vida pública é no sentido que lhe é atribuído por historiadores eminentes. Não se restringe a cargos políticos e abrange toda uma grande área de intervenção social directa ou indirectamente suportada pela comunidade: gestores de empresas públicas estatais ou municipais, de fundações apoiadas pelo Estado, de instituições de interesse público, mesmo que privadas, de confissões religiosas com benefícios sociais, de universidades privadas, de fornecedores de comunicação social, de ONGs, etc.

Vem isto a propósito de uma notícia de ontem do ionline sobre a nomeação da mulher do ministro Nuno Crato para um órgão da Fundação da Ciência e Tecnologia (FCT). Tem todos os ingredientes que referi, como refúgio no álibi de que o que não é ilegal está certo. A nomeação foi feita pelo secretário de Estado, não pelo ministro. O lugar é de consultoria, não remunerado. A FCT não é um órgão da administração directa, embora seja inegavelmente tutelada pelo ministro. Portanto, legalmente tudo bem, mas tudo contra a ética política. Aliás, o criticável começa logo pela senhora, que nunca se devia ter candidatado a esse cargo.

O que fica então para o privado? Dirão que Isabel dos Santos se move na esfera privada, que conseguiu a sua fortuna exclusivamente pelos seus méritos? Ou que uma EDP, a cobrar ricas rendas que todos pagamos e a ter liberdade de pagar o vencimento exorbitante do seu presidente, é coisa privada? Ou que o BPN, e agora o Banif, que estamos todos a pagar, são coisa privada?

Um caso que sempre me interessou, que estudei bem e sobre o qual escrevi, por exemplo aqui ("A Universidade no seu Labirinto", ver capítulo “Os centros de investigação e uma história insensata”, pág. 90 e seguintes), é o das fundações e associações de direito privado criadas pelas universidades. As primeiras estão a ser condicionadas pelas recentes medidas governamentais em relação às fundações, mas as associações (instituições privadas sem fins lucrativos, na língua de pau dos gestores de ciência e tecnologia) continuam a abundar e são um exemplo de confusão perigosa entre a esfera pública e a privada.

Com a designação popularizada de centros de investigação, são reconhecidas e financiadas pela FCT como se fossem unidades universitárias. Só prestam contas aos seus associados (grupos de investigadores como tal autoconstituídos, sem consagração institucional ou garantia de equidade em relação aos demais colegas). Funcionam corporativamente, em circuito fechado, porque, tipicamente, a direcção é que decide a integração de membros e são os membros que elegem a direcção. Quando os centros têm personalidade jurídica, a universidade que os acolhe, que lhes dá infraestruturas e que paga os salários dos professores membros do centro, sem os quais os centros não seriam viáveis, não tem nada a dizer. Muito posso dizer da minha experiência difícil com entidades dessas, quando dirigi um estabelecimento universitário.

As associações pretendem justificar-se com alegada facilitação administrativa e com mais expedita contratação de pessoal. Se é verdade que a contratação pelas universidades tem sido dificultada pela política troikiana do governo, já o argumento da facilitação administrativa é falso, a menos que se entenda por facilitação a falta de controlo e a opacidade da gestão, muitas vezes a versão autoritária e discricionária da gestão, em acumulação, do responsável pelo organismo público que, directa ou indirectamente, criou a associação.

Trata-se quase sempre de casos de conflito de interesses, com sobreposição de objectivos. Na prática, muitas vezes, apenas o desejo tribal de gerir meios e financiamentos externos (incluindo os da FCT) sem subordinação hierárquica. Muitas vezes, com estes poderes feudais, e tal como dizia D. João II, o rei só manda nas estradas. Como director, foi aquilo a que, com ajuda superior, me quiseram sujeitar.

Como expus desenvolvidamente neste artigo, aceito que, em muitos casos, haja toda a vantagem na constituição de entidades específicas, quando a universidade e a sua comunidade não possuem a experiência, motivação e mentalidade necessária para determinada actividade. Por exemplo, muitas das relações com as empresas, a criação de parques tecnológicos ou as incubadores de empresas pelas universidades, só são eficazes se articularem gestores, inovadores e académicos em entidades próprias, de natureza empresarial. 

Curiosamente, são empresas deste tipo que o Tribunal de Contas quer proibir e não as associações que visam, fundamentalmente, fugir à disciplina e transparência da administração pública.

Temos em Portugal casos dessas empresas justificáveis mas creio que, na generalidade, as nossas associações para-universitárias se caracterizam é pela sobreposição concorrrencial de objecttivos, pela ambiguidade e pela indisciplina institucional que referi. Voltando ao início, nada disto é ilegal, mas, a meu ver, é pelo menos duvidoso que seja ético.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Premonições de Natália?

Quantas vezes já escrevi que tenho “mixed feelings” em relação à net? Indispensável instrumento, hoje, de acesso a uma enorme biblioteca ao alcance de um “click”, em tempo rápido. Ao mesmo tempo, instrumento de desinformação, de habituação das pessoas a um embotamento da sua capacidade crítica que Orwell nunca imaginou. Uma das coisas frequentes é a “invocação de autoridade” ou “os cucos da net”. Há anónimos que até escrevem coisas interessantes mas que, sei lá porquê, não as subscrevem, pondo esses ovos em ninhos com o rótulo de pessoas famosas.

Na maioria dos casos, alguma familiaridade com os interesses do invocado autor, com o seu estilo de escrita, alertariam logo para a fraude intelectual. Por exemplo, o célebre texto de João Ubaldo, depois reproduzido em Portugal como de Prado Coelho, era uma fraude evidente. Em qualquer caso, uma pesquisa no Google também ajuda muito. O que me espanta é como pessoas com indiscutíveis credenciais intelectuais se prestam ao jogo e espalham este lixo. Creio que porque tudo é bom para apoiar as suas próprias ideias, como se elas não valessem só por si, mesmo que sejam eles sozinhos contra tudo e todos.

Chegou-me hoje um texto, “As premonições de Natália”, com excertos de reflexões dela sobre a o que adivinhava vir a ser a actual crise económica e da UE. Posso estar enganado, mas é fraude evidente. É certo que vem a referência a um livro de Fernando Dacosta, "O Botequim da Liberdade", mas, como nunca o li e não o vou procurar, mantém-se aqui a minha dúvida.

Conheci relativamente bem Natália Correia, jantávamos em casa de uma amiga comum. Com essa minha patrícia açoriana, discuti muito a insularidade, até ver que era diálogo de surdos, entre quem tinha amadurecido nas ilhas e quem, como ela, tinha da terra uma visão de tenra infância e baseada na sua construção poética, embora invocando, a despropósito, Antero, Côrtes-Rodrigues e Nemésio (este último, é verdade, ela conhecia bem). Também tenho dela a opinião de uma poetisa de mérito, que leio com muito prazer, mas que, nas concepções políticas, se ficava sempre pelo manto diáfano da fantasia. Quanto a algum conhecimento, mínimo, de economia política, o que se conhece dela?

Por tudo isto, para mim e até prova em contrário, as “premonições” são mais um embuste. E insisto: eu não preciso de poemas de Drummond, artigos de João Ubaldo ou fantasias poéticas de Natália para ter as minhas próprias ideias.

O patriotismo ainda vale

Jorge Bateira, hoje, no i: “Apesar de traído pelas suas elites, europeístas a qualquer preço, talvez Portugal ainda encontre energia para recusar tornar-se numa Detroit do extremo ocidental da Europa.”

Quantas vezes já aqui lembrei os versos finais da estrofe 33 do canto IV dos Lusíadas,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns tredores houve algumas vezes.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Infantilidade política fascistoide

Não há esquerdista que não dê em pessoa respeitável, conservadora. Como no seu esquerdismo eram dogmáticos e sem sombra de imaginação (quem gritava “l’imagination au pouvoir” eram outros), não têm hoje uma ideia marcante, mesmo que caricata.

Quem ainda tem essas ideias são os que foram mais ou menos libertários, e estou a lembrar-me dos que, bastante tempo depois de 68, deram os Verdes, primeiro os alemães. Quando entusiasmados por ideias provocadoras, deliram, sentem-se jovens, julgam que vão captar um eleitorado jovem que afinal os olha com sorriso condescendente. Tal como cá com o BE e o acolhimento (mesmo que não iniciativa) da luta contra o piropo, os Verdes alemães tanto têm o bem estabelecido Joschka Fischer, cada vez mais redondo e bem comportado – o mal que faz ser ministro! – como essa coisa estranha e serôdia que é Daniel Cohn-Bendit.

Isto vem a propósito da sua última proposta, inserida na campanha eleitotral para as legislativas: um dia por semana obrigatoriamente vegetariano nas cantinas públicas! Não estou a brincar. Metam no Google “greens vegetarian day germany” e logo vêem o que sai. Isto não tresanda a mentalidade fascista? Para proibir comer carne em alguns dias bastou o obscurantismo (mas com razões económicas) da abstinência da Igreja medieval (e lixou-se, porque sem isto e as bulas e indulgências não teria havido Lutero).

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Um livro abaixo de qualquer consideração

Vou falar do livro de José Milhazes, “Cunhal, Brejnev e o 25 de Abril”. É um livro ao nível dos leitores do Correio da Manhã e que não seria aceite como relatório final de uma licenciatura em história. No entanto, Milhazes é doutorado e, com isto, merece atenção.

Declaração inicial: não sou membro nem simpatizante do PCP, de que saí há mais de 30 anos; não tenho tido actividades no seu âmbito de influência; critico muitas coisas da sua concepção de partido leninista e do seu comportamento; tenho dúvidas sobre o que poderiam ser os efeitos por arrastamento destas práticas para a sociedade, se tivessem o poder; mas há limites para o anticomunismo primário, coisa que julgava em extinção.

Vítor Dias gastou algum do seu tempo valioso a criticar, no “Jardim das Cerejas”, esse livro recente de José Milhazes. Deixei lá no blogue uma crítica amigável a dizer, admito que com alguma sobranceria, que não se devia gastar cera com tão ruim defunto. Mais tarde, à medida que lia o livro e o comentava com o meu grilo falante (não confundir com o da gastronomia), insistia ela que não pode haver condescendências, que a sua geração foi manipulada por grande demagogia e desinformação e que é dever de quem viveu as coisas e ainda tem valores lutar pela verdade e pelo esclarecimento das pessoas.

Valha que Milhazes ajuda. Doutorado ou não, o seu funcionamento mental é primário, totalmente desprovido de rigor. Não usa fontes credíveis, não as submete a crítica racional, não consegue analisar factos no seu contexto nem estabelecer relações entre eles. Pode ser um bom jornalista-propagandista mas de forma alguma um historiador, muito menos de história contemporânea, perigosa por não se dispor de muito material ainda classificado. Infelizmente, haverá gente séria que goste deste livro de espionagem, por ir ao encontro dos seus preconceitos, tidos como verdade. Eu tentarei uma análise objectiva e rigorosa.

O livro é tão esquemático que facilita a crítica. O primeiro capítulo, de narizes de cera e discurso de casste (onde é que ouvi isto, tantas vezes, de outro lado?) é a exposição do quadro de fundo: 1. o PCP, depois de Cunhal e principalmente depois da fuga de Peniche, foi o mais dilecto filhote do PCUS, prestando-se a todos os trabalhos ao seu serviço no movimento comunista internacional; 2. a URSS foi apanhada de surpresa pelo 25 de Abril e não o apoiou; 3. o PCP mandou para a URSS os arquivos da PIDE; 4. o PCP foi o agente da URSS na influência junto dos movimentos africanos e na luta fria depois da independência dos novos países africanos; 5. o PCP era financiado por Moscovo.

1. As relações internacionais. É indiscutível que as relações entre o PCP e o PCUS – e outros partidos comunistas, no poder ou não – sempre foram desenvolvidas com o maior interesse pelo PCP. Que mal tem isso? Não se passava o mesmo com outras “internacionais”, mormente as relações entre o PS e a Internacional Socialista? Como é que um partido na clandestinidade, a precisar de fazer funcionar todo um aparelho de funcionários, imprensa, viagens, podia dispensar apoios? E sabem que na prática, foi muito mais importante o apoio do PCE e do PCF do que o do PCUS? E que a rádio funcionava em Bucareste, não em Moscovo? E que Cunhal se instalou em Paris, porque Moscovo era uma “gaiola dourada”?

Fiquei abismado com uma longa descrição de Milhazes (ou uma transcrição, segundo ele) de uma conversa entre Gorbachov e Cunhal (cap. 3). É de morrer de riso, mas também é devastador para a imagem que se possa ter da cabeça do nosso Rasputine de barba à boiardo. A fonte é o Arquivo da Fundação Gorbatchov (?). O discurso de ambos parece uma composição de escola primária, cheio de clichês que se podem tirar de qualquer cassete de propaganda. Admita-se que de um escriturário burocrata do KGB, mas obviamente que nunca dos dois líderes. Que Milhazes não perceba diz tudo.

Gorbatchov ensina a Cunhal o bê-à-bá da política, em termos quase estalinistas, coitado, e Cunhal, sempre humilde, vai pedindo repetidamente ao mestre explicações e orientações. Quando se conhece o orgulho de Cunhal, a autoestima em relação à sua capacidade de elaboração sobre o pensamento comunista e como ele desconfiava de Gorbatchov, só uma cabecinha à Milhazes é capaz de acreditar neste conto.

2. A surpresa do PCUS. Para Milhazes (cap. 2 e 3), o PCUS foi apanhado de surpresa pelo 25 de Abril. É claro, que novidade! Até certo ponto, talvez também o próprio PCP, que tinha boa informação sobre o MFA mas que, segundo a opinião que tenho de um homem chave do MFA, nunca foi completamente informado, tendo-lhe sido pedidas principalmente informações operacionais. 

Para Milhazes, digerida essa surpresa, o PCUS não engoliu o 25 de Abril e quis travá-lo. A tese de Milhazes, do domínio do PCUS sobre o PCP, joga contra ele. O PCP foi sempre acusado de voluntarismo depois do 25 de Abril, de sectarismo, de falta de realismo. Mas como é que o PCUS, alegadamente tão dominador do PCP, não foi capaz de o disciplinar e de o submeter à lógica das esferas de influência, pós-Ialta, para já não falar da teoria da “soberania limitada” que levou à intervenção na Checoslováquia, a que um partido vassalo (?), como o PCP, teria de se sujeitar? (E note-se que até escreverei sobre o que para mim foi de inaceitável essa intervenção, causa da minha primeira rotura com o PCP).

3. Os arquivos da PIDE. É história estafada e só suportada pelo testemunho de dois dissidentes do KGB, que aliás se revelam bem por episódios pitorescos mas inverosímeis de histórias à James Bond, com amantes, jóias e champanhe. Toda a gente sabe o que valem esses testemunhos, como (verdadeira? falsa?) moeda de troca no negócio de passagem para o outro lado. Ao usar exclusivamente essas fontes, aliás sem novidade (é preciso vender livros), o historiador Milhazes fica desacreditado. Deixo só, porque julgo que é considerado por toda a gente como homem honesto, um testemunho do major Sousa e Castro, responsável pela Comissão de Extinção da Pide-DGS.

4. O PCP e os movimentos de libertação. Este capítulo do livro é revelador de ignorância crassa ou de desonestidade, é vergonhoso e ofensivo. Qualquer anti-fascista (Milhazes?) sabe como o 25 de Abril esteve imbricado com a luta de independência das colónias e, cá, com a solidariedade com essa luta. Com falha de qualquer destes componentes da luta global, não sei onde ainda hoje estaríamos. Ninguém desconhece que os grandes quadros africanos estiveram muito próximos do PCP ou até foram militantes (creio que Neto, Mário Pinto de Andrade, Marcelino dos Santos, não sei se o próprio Amílcar Cabral, os muitos da Casa dos Estudantes do Império e do Kimbo dos Sobas) até seguirem o seu caminho na construção dos seus movimentos libertadores. Meus camaradas, como éramos camaradas pretos e brancos. E também havendo brancos do lado de lá.

Mas afirmar, como faz Milhazes, que isto foi coisa combinada entre o PCUS e o PCP para atribuir essa tarefa a militantes do PCP, insinuando que se mantiveram nessa situação e sob o controlo do PCP, é a "miséria da história”. É ofensa a todos os que, no meu tempo e conheci muitos, saíram para a luta na mata, é certo que com a ajuda do PCP, mas para assumirem com total autonomia a luta independentista. Milhazes era nessa altura politicamente ignorante, mas devia ser hoje mais humilde. Já agora, e como se disse, foi o PCP, com o PCUS a apoiar, que fez o 27 de Maio em Angola?

5. O PCP foi financiado pela URSS, nomeadamente por meio de empresas criadas pelo partido. Claro que sim. E as malas de Macau, do PS? E as fundações alemãs por detrás do PS e do PSD? E como é que Milhazes faz larga descrição e identificação das tais empresas? Tudo opaco? E qual foi a vantagem dessas empresas no período de sufoco do nosso comércio internacional, a seguir ao 25 de Abril? Que o diga um amigo meu, grande responsável pelo comércio externo com os países socialistas a seguir ao 25 de Abril, quando a “Europa connosco” nos dizia "nim".

A baixeza. Deixo para o fim o aspecto mais desagradável e repelente deste livro. Sobre ele, discordei de Vítor Dias, quando ele escreveu que Milhazes era “um filho de pescadores que graças à ajuda do PCP e da URSS  tirou naquele país um curso superior que cá não poderia tirar”. Achei que era um argumento “ad hominem” despropositado e achincalhante, até contra a promoção de filhos do povo que ambos defendemos. Hoje, depois de ler o livro, acho que ele se pôs a jeito. 

Os últimos capítulos são sobre uma outra forma de domínio da URSS e do PCUS sobre o PCP: o acolhimento de combatentes políticos portugueses exilados, o pagamento de viagens para contactos políticos (inclusivamente a socialistas), a criação de escolas para filhos de comunistas a lutar em Portugal, na clandestinidade, a concessão de bolsas para frequência de cursos nas universidades soviéticas.

Tudo isto era domínio sobre o PCP? Esses lutadores eram “apenas” comunistas ou eram antifascistas merecedores da solidariedade do internacionalismo, por mais que esse já estivesse pervertido no jogo dos poderes?  Note-se que as bolsas universitárias não eram destinadas apenas a filhos de comunistas. Claro que a URSS tirava efeitos de propaganda, mas tenho testemunho directo de alguns desses estudantes quanto a nunca terem tido a obrigação de enquadramento político partidário.

Se toda a primeira parte do livro é de mau nível, este final é moralmente abjecto, de quem morde a mão de quem o ajudou. Não quero dizer que o reconhecimento deva ser absoluto e tolher a crítica, mas há limites de decência.

À MARGEM – Com o passar dos anos, e principalmente com a perestroika, veio a conhecer-se com certeza muitos aspectos absolutamente condenáveis da vida soviética. Muitos dos meus camaradas de 1968 se interrogaram sobre isso, ao acompanharmos o que se passava na Checoslováquia (para nós muito mais importante do que a anarqueirada de Paris). Mas era angustiante. Em plena guerra fria e guerra de propaganda, o que era a verdade?

Hoje, há quem nos acuse de não termos sabido ver nessa altura o que era, para eles "indiscutivelmente", essa verdade (como sabiam?). É certo que já havia a denúncia do estalinismo e alguns se mantinham nessa onda, mas éramos nós estalinistas, nos anos 60?

Se quiserem classificar-me assim, não me importo que me chamem hoje de anticomunista, embora isto não seja bem verdade. Vou pelo que disse acima: creio que o PCP, em 1975, cometeu graves erros, creio que a sua concepção de partido leninista de vanguarda, do centralismo democrático e do funcionalismo aparelhístico é viciadora de uma mentalidade ajustada à vida social de hoje.

No entanto, afinal, os anticomunistas bem seguros de hoje, os que sabem tudo sobre o que se passava na URSS, eram muitas vezes, nos anos 60 (e depois esquerdistas a seguir ao 25 de Abril) maoístas fanáticos, de forma alguma democratas e defensores dos direitos burgueses. Tive erros de avaliação e ponderação política, mas só aceito que me acusem os que têm autoridade para isso.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

A fada da unidade

Rui Tavares, paladino da utopia de uma fada da unidade de esquerda, uma esquerda tão vaga que é um embuste, volta à carga, no Público (só para assinantes). “E as eleições legislativas de 2015, será que elas vão resolver alguma coisa? Pelo que vemos da habitual puerilidade à esquerda, o resultado será um governo de direita ou, para gáudio dos sectários, um governo do PS com a direita. As políticas serão as mesmas.

E o que seria, para RT, uma política diferente (?) seguida pela sua esquerda larga? Como é que os sectores minoritários dessa esquerda obrigariam o PS a mudar as suas posições? Ou está RT convencido de que estamos num momento de cedências mútuas, quando estamos é num momento de rotura, ou sim ou sopas quanto à rejeição da troika, à denúncia do memorando, à preparação para a eventualidade (não digo certeza) da saída do euro?

Não sou adepto, em princípio, do “quanto pior melhor”. Mas, neste momento, qualquer entendimento do PCP e do BE com a política subservientemente ambígua do PS, que, como o próprio RT reconhece, é a mesma que a da direita, é condenar a esquerda consequente a um descrédito que a reenviará de novo, por muitos anos, para o limbo político. O curto prazo pode ser o inimigo do futuro. Ou ainda, noutra analogia, uma eventual “vitória de esquerda”, agora, pode ser uma vitória de Pirro.

Estou convencido de que, infelizmente, ainda vai levar algum tempo, mais do que o deste ciclo político, e com avultados sacrifícios do nosso povo, para que haja uma mínima rotura política significativa e a perspectivação de um novo alento da democracia, de uma política nacional de soberania, e de uma mudança real ou verdadeiramente potencial nas relações económicas e de classe, no controlo social da propriedade e no papel do Estado.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

E outro 11 de Setembro


Para não me acusarem de faccioso, aqui fica também a homenagem às vítimas do ataque terrorista e ao sofrimento que naquele dia sentiu o povo americano (que eu testemunhei por via de um bom amigo, em Lisboa, normalmente muito crítico das políticas belicistas e reaccionárias dos governos republicanos).

Jamás te olvidaremos, compañero Allende

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Os puros e os espúrios (III) - o PCP

Já disse o suficiente sobre o PCP, aqui e aqui, para agora passar para a continuação da série de textos sobre as propostas de cada partido para a resolução da crise, mormente a sua posição em relação ao memorando de submissão à troika e em relação ao euro. É bem sabido que o PCP se opôs, desde início, à nossa adesão à então CEE e, depois, à entrada no euro.

Tenho dúvidas em relação à primeira questão. Não sei o que resultaria do nosso isolacionismo num momento de pujante desenvolvimento de um espaço económico europeu, quando ainda tínhamos muitos emigrantes nos países centrais europeus e era para eles que exportávamos principalmente. Quanto ao euro, confesso que, como muita gente – mesmo os então meus amigos do MDP – não vi que a eurolândia estava condenada ao fracasso, não cumprindo as condições mínimas de “zona monetária óptima”. Mas também a posição do PCP era mais política, baseada em posições relativamente lineares de anti-imperialismo, do que em análise económica.

Hoje, parece-me que a posição fortemente crítica do PCP em relação à crise e à política austeritária que domina a perspectiva neo, ultra ou ordoliberal da União Europeia e de todos os círculos hegemónicos, política e economicamente, é firme e clara. Pode-se dizer que também o é a do BE (de que falarei noutra entrada) e até a do PS, quando defende menos austeridade, embora seja diferente defender austeridade mínima para redução do défice e da dívida à keynesiana, em situação de pleno emprego, como faz o PCP, e defender uma simples suavização da austeridade à troika – como, na lógica da sua política? – como faz o PS.

Da mesma forma, julgo haver uma diferença notória entre o PCP, por um lado, e o PS e o BE, por outro, em relação à reestruturação da dívida (talvez não seja sem significado que estes falam de renegociação). Como é óbvio, todos falam de negociação para alívio das condições dos empréstimos, em termos de maturidade e taxas de juro. Mas só no caso do PCP é que vejo claramente a proposta de reestruturação da dívida em termos do seu montante, incluindo a adopção de “haircuts”.

Mais manifesta é a posição em relação à permanência ou não na zona euro. A saída do euro é tabu para o PS e mesmo para o BE, nisto continuando muito influenciado por Louçã, apesar de tanto ter sido criticado por erros técnicos clamorosos (dizem economistas seus colegas) quanto aos custos da saída, nomeadamente por via de uma consequente inflação, que Louçã exagera. Note-se que Louçã é suspeito em tal matéria. No número de Maio de 2013 do Monde Diplomatique (edição portuguesa) pode-se ler uma boa colecção de artigos sobre o euro, todos bem fundamentados economicamente. A excepção é o artigo de Louçã, de natureza vincadamente ideológica. No fundo, ainda é a afinidade com a “fada europeia” em que acreditam todos os trotsquistas europeus. Trotsquista em jovem, trotsquista até morrer? Valha a coerência, porque maoísta em jovem, conservador em velho.

O PCP não defende em definitivo a saída do euro, mas não a afasta. No seu XIX Congresso, em 2012, afirmou por intermédio de um quadro importante, Agostinho Lopes, que “um governo patriótico e de esquerda deve preparar o país para a saída da zona euro”, e advertindo que "é uma ilusão pensar que o federalismo é solução” mas também, por outro lado, que também é ilusão “a ideia de que tudo se resolve com uma saída pura e simples do euro, qualquer que seja a forma como se sai e as condições de saída”. 

Mais tarde, a segunda afirmação foi menorizada e a posição ficou mais clara com sucessivas declarações, inclusive de Jerónimo de Sousa, defendendo estudos rápidos sobre as consequências de uma saída do euro, não considerada como tabu.

Entretanto, na evolução das sondagens, a queda do PSD não é acompanhada de subida significativa do PS nem do BE, mas sim do PCP. Então, com uma posição clara sobre a crise e os malefícios do euro para Portugal, com uma atitude combativa contra a política antipatriótica do governo e com presença significativa na rua, com outras forças, com crescimento da sua posição nas sondagens, porque é que a opinião geral é de que o PCP não conseguirá (até dizem que nunca) ir para o governo?

É aqui que me parece que isto se entronca com os meus “posts” anteriores sobre o PCP, porque a política não é só o agora. Há muito passado, há muitos erros, também muitos preconceitos, que ainda são entraves a um seu papel determinante na alternativa de governo.

Por isto, continuarei esta entrada noutro registo, em que já escrevi, o da minha experiência no PCP. Até breve.

P. S. (10.9.2013) – Muita gente, talvez a maioria da gente, de vários quadrantes, reconhece hoje os “malefícios do euro” e os prejuízos causados à economia portuguesa e bem estar económico do povo e pequenas empresas por uma adesão com excessiva valorização, anti-competitiva, do euro em relação ao escudo e, depois, pela perda de instrumentos essenciais de soberania económica, ligados à moeda própria.

Porque é que também não reconhecem razão, a posteriori (já não é mau) a todos os que exigiram um referendo ao tratado de Maastricht? Porque não se escandalizam, mesmo a posteriori (já não é mau) com aquela obscena e popularucha conversa, exemplar de bloco central, na aprovação do tratado de Lisboa, entre Barroso e Sócrates, “porreiro, pá”?

domingo, 8 de setembro de 2013

A porta giratória da televisão e da rádio

Quase que só ouço rádio no horário rotineiro das minhas deslocações, com o rádio do carro ligado. Assim, ouvi hoje, creio que pela primeira vez, um programa chamado “O governo sombra”, da TSF. São participantes Ricardo Araújo Pereira, o gato fedorento, pessoa com frequentes manifestações de opinião à esquerda; Pedro Mexia, ex-director da Cinemateca, ensaísta e poeta, colaborador de Pedro Lomba na blogosfera e que, por isto, julgo ser um conservador educado e civilizado; e João Miguel Tavares, que leio no Público por masoquismo, exemplo de uma nova direita arrogante, bruta e acéfala.

O que fazem tão díspares pessoas no mesmo programa? O programa é indiscutivelmente de natureza política. Simplesmente, não discutem política a sério. Fazem humor com pouca graça (nem mesmo RAP consegue sobressair e JMT é obviamente demasiado obtuso para algum refinamento de humor). Mas fazem esse “humor” misturando-o com crítica política, claro que de dichote e sem qualquer profundidade. Assim, o programa é um embuste. Nem é de verdadeira discussão política nem é de humor que permita ao ouvinte ficar a pensar que “eles estão só a gozar”. O que fazem ao ouvinte é transmitirem-lhe a sua opinião política, como quem não quer a coisa e como se não fosse para se levar a sério.

Se assim é, pode-se perguntar porque é que a opinião política de RAP, de PM ou de JMT é mais relevante do que a de qualquer outra pessoa, muitas vezes com opiniões muito mais elaboradas e fundamentadas. Ou de pessoas cuja filiação ideológica ou simpatia filosófica ou política seja transparente. Ou que tenham a respeitabilidade de obra académica consagrada. É o que vejo noutros países. Aqui não. O que vale cá é a notoriedade mediática, mesmo que de Beppes Grillo, afinal num circuito à “carrossel napolitano” em que todos são amigos: políticos, jornalistas, opinadores, intelectuais de serviço e bobos de toda a espécie.

Para não deixar sozinho esse programa, e não conhecendo muitos dos seus semelhantes, refiro outro que me parece exactamente igual, o “Eixo do Mal”. Exceptuo a “Quadratura do Círculo”. Tudo neste programa é transparente (fora, claro, as agendas políticas pessoais) e os seus participantes são pessoas indiscutivelmente credenciadas para a discussão política. Até demais, porque não acho que seja normal, em termos de vida das instituições democráticas, que o presidente da maior autarquia do país participe regularmente em programas televisivos (já agora, recebe cachet?).

O que fazem nesses programas pessoas de esquerda como Daniel Oliveira e Ricardo Araújo Pereira, num contexto de futilidade e de graçola gratuita em que raramente conseguem lançar, muito menos desenvolver, uma ideia que justifique a sua presença? Será que, face à preocupação das estações de aparecer com respeito por algum pluralismo, eles fazem bem aceitando estar presentes e influenciar a discussão? Duvido.

Ainda hoje, não ouvi de RAP, em confronto com os seus parceiros, nem uma afirmação que marcasse diferença, nem sequer que nos fizesse lembrar o cronista da Visão. Ou Daniel Oliveira, a conversar sobre futilidades com uma senhora espertinha e com um engraçado sem ideias? Estão a mostrar que são democratas, que podem dialogar – será que discutir política? – com gente de direita? Ou então, no seu pleno direito e no seu exercício profissional, estão num programa de mero entretenimento? Muito bem, mas não usem isso para afirmação pessoal com fins políticos.

Passando para o comentário político televisivo, propriamente dito, e comparando com o que conheço de outros sítios, até aqui ao lado, creio que temos uma situação aberrante. São raros os opinadores ou comentadores não envolvidos directa ou indirectamente, ontem, hoje ou amanhã, na vida política. As televisões são o prolongamento das câmaras adequadas de debate político, mas sem as regras democráticas que essas têm. 

Digam-me de um país em que fale com programa próprio na televisão um ex-primeiro ministro, um ex-ministro do núcleo central de outro governo, um ex-líder de um partido. Ou em que o mais popular, mais manipulador, mais intriguista protagonista televisivo é um homem sempre metido na política, com ambições pessoais de cuja fama não se livra.

É claro que, em muitas televisões estrangeiras, há entrevistas a políticos e a sua participação em programas muito tipicamente americanos que cá não temos, como o Daily Show de Jon Stewart. Mas são fortemente apertados, não lhes fazem os fretes que aqui fazem os apresentadores dos programas em que esses senhores afinal dizem o que querem.

Mas, ó portugueses, afinal como é que aceitam que vos façam a cama e vos ponham a canga?

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Ao correr da pena

1. A palavra e a política

Há alguns dias, Manuel Alegre escreveu no Público um artigo intitulado “Palavras imensas. Defende que “a matriz das esquerdas é comum: reside na recusa daquilo a que Octavio Paz chamou ‘a injustiça inerente ao capitalismo.’ Essa é a sua essência”. Mas reconhece logo a seguir que “a divisão entre revolucionários e reformistas vem quase desde o início” e que se agravou quando, “com a guerra fria, os partidos da Internacional Socialista funcionaram como terceira via, por um lado contraponto em relação ao bloco comunista, por outro gestão moderadora do capitalismo, através do Estado providência e dos direitos sociais que significaram um considerável avanço civilizacional.” Conclui, e não discordo, que “os partidos socialistas ou se deixaram colonizar pelo neoliberalismo triunfante ou seguiram a moda pseudo-modernizadora do blairismo. (…) A queda do muro de Berlim não se traduziu na vitória da social democracia, mas no triunfo do capitalismo financeiro à escala global”. E confessa-se: “Sou, porventura, um socialista fora de moda. Mas não quero o socialismo fora da História e da própria linguagem. E muito menos da vida. Como escreveu Mário Cesariny: ‘Há palavras imensas, que esperam por nós.’ Mas não as palavras ideologicamente assépticas.

Desde o título, há neste artigo algum arrebatamento poético, que não é de estranhar. Mas até que ponto têm as palavras, por si, um valor transformador e revolucionário? Em contraponto, não há uma análise objectiva e teoricamente fundamentada das consequências para a acção prática actual da divisão que se processou ao longo de décadas, reduzindo a bandeira de palavras simbólicas a tal matriz comum. O seu artigo acaba por ser um simples enunciado de factos bem conhecidos, sem devida explicação. O que reconheço em Alegre é que assume a quota parte de responsabilidade histórica do seu lado partidário. 

Dias depois, responde-lhe Domingos Lopes, “Perseguir a imensa esperança”. “Há, na verdade, palavras imensas. Fico-me pela palavra socialismo. Palavra que aproxima as esquerdas. Socialismo, sonho, como outrora o de Cristo, antes de a Igreja se inclinar perante o poder dos Césares. (…) há palavras imensas que esperam por nós. Eu acrescentaria pelas quais nós esperamos em perseguição pelo ideal contido na palavra. Há palavras imensas que aproximam os homens e as que os afastam e os tornam inimigos uns dos outros.

Manuel Alegre analisa as várias rupturas nas esquerdas e até dentro delas, pois enquanto houver homens haverá sempre lugar a diferentes interpretações. Porém, ao acabar de ler e acalentado pela ‘fé’ na palavra que poeta não deixa morrer - socialismo - e tendo em conta a tese do autor de que vivemos num tempo em que os partidos tradicionais podem deixar de contar ou até desaparecer, dei comigo a pensar no futuro do PS com Seguro ao leme. Porquê? Porque se impõe perguntar qual o futuro do PS... E ainda porquê... porque o PS deixou cair os valores da esquerda que proclama ter... (…) O PS é um partido-chave para uma mudança (salvo se se entender que a mudança será sem eleições, do género revolucionário). Continuando, porém, a ser um actor que em muito pouco se distingue dos partidos do Governo, prosseguindo o caminho de incorporação na vaga ultraliberal que assola o mundo, liquidará o sonho social-democrata de muitos aderentes daquele partido.

(…) A democracia precisa de um PS que não se vergue à onda conservadora que varre o mundo. O mundo precisa de mudar. E Portugal também. Há palavras imensas que temos de perseguir: liberdade, igualdade, justiça, socialismo. Há palavras terríveis que todos os dias açoitam os portugueses: empobrecimento, austeridade. Precisamos da imensidão da palavra esperança, desejavelmente com o PS. Se não, com quem tiver esperança. E futuro.

Julgo que Domingos Lopes tem uma formação e solidez ideológica superior à de Manuel Alegre, que é fundamentalmente um tribuno. A sua formação política emerge na aceitação de outra hipótese, comon se viu acima: “salvo se se entender que a mudança será sem eleições, do género revolucionário”. Mesmo assim, procurando corresponder, com espírito “unitário”, ao idealismo de Alegre, fica enredado na contradição principal da nossa “esquerda”: precisamos de um PS diferente mas o PS não quer ser diferente. E outros, que tenham esperança e futuro, de que fala Domingos Lopes, fica-se pelo vago. Contra isto, não há palavras imensas.

2. O BE e Angola

Dou de barato que o MPLA deixou de ser há muito o partido que, na minha juventude, era o exemplo da coerência na luta pela independência. Dou de barato que, principalmente a partir da guerra civil, ambos os lados usaram importantes recursos naturais para se armarem, o MPLA vendendo petróleo, a Unita diamantes. Dou de barato que, com isto, os generais fizeram fortunas que foram acalentadas por José Eduardo dos Santos, para lhes ganhar o apoio. Dou de barato que não é com um simples curso em Inglaterra e sem meios anteriores que Isabel dos Santos se transforma na mulher mais rica de África. Dou de barato que há farta corrupção em Angola, a par com o cumprimento dos slogans anunciados de que “os angolanos têm o direito a ser ricos” e “é necessária a acumulação primária do capital”. Dou de barato que Angola tem uma enorme assimetria económica e social.

Também é inegável que há capitais angolanos a entrar em Portugal (e portugueses em Angola), com destaque simbólico (mas não económico e financeiro) para a comunicação social. E que há uma ostentação de novo-riquismo de angolanas nas lojas de luxo da Av. da Liberdade.

Mas o que faz, disto tudo, proclamar-se repetidamente, como faz o BE, que Angola está a comprar Portugal? Está a dominar economicamente mais do que os ricos da eurolândia? Oprimem o povo português mais do que a troika? E que vantagem há em agitar este papão (xenófobo?) numa altura em que estão a emigrar para Angola centenas ou milhares de portugueses? Quando se chega à economia moral, não há diferença entre fanáticos, sejam eles Louçã ou Merkel, em extremos opostos. 

3. As lutas inglórias do BE

Esta nota vai quase sem palavras. Nos tempos que vamos vivendo, o piropo teve honras de tema nacional no recente debate do BE, “Socialismo 2013”. Se o ridículo matasse...

4. O que Krugman disse

Já foi há bastante tempo que foi muito badalada a afirmação de Paul Krugman no sentido de que os salários (melhor, os custos unitários de trabalho) em Portugal e na Alemanha tinham entre si um desajustamento de 20%. As brilhantes mentes da casa nem foram ler o texto de Krugman, “German Wages and Portuguese Competitiveness (A Bit Wonkish)”(com explicação em português no Jornal de Negócios), mas deveriam ter logo pensado que se duas bengalas diferem em 20 cm tanto pode ser porque uma é 20 cm mais comprida ou a outra 20 cm mais curta (não estou a brincar, pensem bem).

Agora, tantos meses depois, é o inefável José Manuel Fernandes, saído do Público por uma porta e entrado por outra, que, cumprindo aquela norma prática de que arrogante de cabeça rígida fica sempre assim, primeiro como esquerdista depois como “neocon”, vem dizer o mesmo: “vejam lá, não era só António Borges que dizia, também o keynesiano Krugman diz que os salários portugueses têm de descer”. Não é verdade. Vão ao tal “post” e lerão que o que Krugman defende é que os salários alemães devem subir. Agora conseguir isto é outra história…

(A propósito: quais são os critérios do Público para a escolha dos seus colunistas? Se não me falha a memória, dois socialistas, Correia de Campos e Francisco Assis; um jornalista independente de esquerda, José Vítor Malheiros; um PSD, Paulo Rangel; um liberal conservador, João Carlos Espada; um eurodeputado alinhado com os verdes europeus, Rui Tavares; um jornalista de direita retinta, João Miguel Tavares, que só tem rival no seu colega do Expresso, Henrique Raposo – e cada vez mais Henrique Monteiro; finalmente, a figura inconcebível de ultramontanismo de cabeção, Gonçalo Portocarrera de Almada, que, curiosamente e contra o seu retrato, nunca se apresenta como padre católico e do Opus Dei.)