quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Será que ainda hoje sou um comunista com problemas? (II)

RESUMO: de como o autor, num texto forçosamente longo, descreve o que foi ser comunista nos anos 60, prepara a transição para a explicação da sua primeira rotura partidária, com a revolução de Praga e, mais tarde, o regresso à actividade partidária após o 25 de Abril. Também o que parece serem motivos compreensíveis para que as discordâncias com o PCP não derivem para uma atitude anticomunista.

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Queremos dar lógíca a artigos, mormente quando encadeados, mas eles emaranham-se com outros e só rendeira de bilros consegue fazer sair dali alguma coisa que se veja. Já há tempos que comecei a escrever sobre a esquerda e as suas propostas para a crise, logo a possibilidade ou não de uma mítica unidade que parece ser desejada por tanta boa alma da esquerda pura donzela.

Falar do PS não foi difícil, porque, a meu ver, não pode determinar um governo de esquerda em rotura com a servidão a que a crise nos sujeitou. Então, que será esse governo de esquerda, propriamente dita? Difícil é ir só mais para a esquerda, falar do PCP e do BE. As posições económicas destes partidos não são radicalmente incompatíveis, a diferença é política. E também a sua viabilidade de governação não depende só das suas propostas de economia política, estando muito ligada à percepção estritamente política que o eleitorado deles tem. 

Muita desta percepção, mesmo por parte de quem não viveu velhos tempos e principalmente em relação ao PCP, vem de preconceitos. Outras vezes, de factos reais mas interpretados fora do contexto de uma cultura partidária (mal) peculiar. Muitas vezes, também, de erros com grave repercussão na imagem pública do partido. Também, frequentemente, de um grande defensismo sobranceiro que desculpabilizava o partido em relação à necessidade de esclarecer as pessoas, mesmo bem intencionadas, em relação a coisas que se remetiam para o lixo do “anticomunismo primário”. Era verdade, mas quem não limpa a nódoa de excremento que lhe atiram aparece aos outros como sujo.

Creio que vale a pena discutir hoje o que deve ser um partido comunista nesta volta para o século XXI. Não julgo que seja matéria exclusiva dos seus militantes, principalmente quando quem entra nesse debate fraterno, embora como independente, é muito crítico do partido mas não lhe é hostil.

No plano político, não posso falar do PCP sem alguma reflexão pessoal. Assim, interrompi a cadeia de posts “Os puros e os espúrios” para o último “Será que ainda hoje sou um comunista com problemas?”, que hoje continua, até retomar aquela. 

Começo por dizer que ainda hoje, mais de trinta anos depois de ter deixado de ser militante do PCP, tenho dificuldade em falar dele com objectividade. Para o bem e para o mal, a minha vida política, com tudo o que ela me significa de missão, cumprimento de um trajecto de vida, são indissociáveis do que foi o meu único partido e de que saí com discrição, sem alaridos mediáticos a servirem os adversários. Como há tempos me dizia o meu amigo MC, grande escritor, fica-se com a relação e a memória terna que temos da primeira namorada, mesmo que depois, com o tempo, venhamos a ver que ela era feia e bastante estuporada. Mas gostámos dela! Assim, nunca depois fui anticomunista, sem prejuízo de frontal e declarada discórdia com muita coisa do PCP. Senão, se não discordasse, não teria saído.

Isto está a sair muito personalizado, admito, mas é difícil ser de outra forma. Justifica-se então um escrito que não é análise, que é mais testemunho ou catarse? Creio que sim, porque muito do que tenho lido de ex-comunistas, sendo isso de apenas literatura de confissão pessoal, não tem a honestidade crítica que julgo que me vou esforçar a ter neste texto. Todavia, e como a mais importante das limitações deste escrito, admito que se duvide da sua validade, quando quem o faz desconhece por completo, em vivência, o que foi a actividade do PCP como partido de operários e de trabalhadores agrícolas, mesmo quando nele militou, como estudante universitário.

E seria possível fazer análise rigorosa? Coisas à Pacheco Pereira e outros, por muito documentadas que sejam, são vistas de fora, por quem não consegue minimamente sentir o enorme componente afectivo do que foi a militância comunista. Mas, sendo assim, um testemunho, uma impressão, em nome de quem posso falar? Em tempo, lugar e modo, do que sei: década de 60, Lisboa e particularmente a universidade, perspectiva e condicionalismos de um jovem da pequena-média burguesia de serviços educado na província (ilhas). 

Mesmo assim, isto remete para coisa mais difusa do que a política partidária, mais especificamente o movimento associativo estudantil e a intervenção cultural, por exemplo a cineclubística. Do partido (dizer partido ou PCP era indiferente) só em âmbito muito mais limitado, quase nebuloso. Entre 1962, em que a crise académica me acordou, e 1964, em que comecei a ter responsabilidades associativas e depois militância no PCP, creio que não li mais do que meia dúzia de Avantes e certamente que não o Rumo à Vitória. Quanto a conhecimento de outros comunistas e das suas memórias posteriores, só a meia dúzia que conheci na minha organização clandestina e, depois do 25 de Abril, os bastantes mais de quem suspeitava e que vi, como eu, aparecerem à claridade.

Desvio para assunto colateral mas importante, a guerra colonial. Só havia uma escolha para comunistas, discutida com o partido: desertar ou ir para a guerra mas com a intenção de fazer o máximo de trabalho político junto de soldados ou, como meu caso, marinheiros fuzileiros. Também, claro, junto dos oficiais do quadro. Continuo a achar que foi um factor importantíssimo na génese do MFA. A quadrícula “antiterrorista” implicava a estadia longa em quase isolamento de um capitão ou primeiro-tenente comandante de companhia, normalmente já em segunda comissão, em convívio estreito com três alferes milicianos mais um médico, muitos com traquejo associativo estudantil e alguma formação política. Mas não vou falar disto em termos de militância no PCP. A minha experiência, creio que generalizável, é de que esta acção era individual, sem possibilidade de contacto com o partido.

Como nos tornávamos comunistas?

Os percursos eram certamente muito diferentes. Peço novamente desculpas mas vou personalizar. Adolescíamos aos 13 e pré-adultávamos aos 17, a ir para a universidade. Neste período revoltávamo-nos, deixávamos de ir à igreja, líamos o Drama de Jean Barrois, depois Sartre, ouvíamos Juliette Greco, no meu liceu fazíamos um clube Antero de Quental (“pour cause”), provocávamos Ilídio Sardoeira – que pedagogo! – a fazer de nós gente, alinhávamos nas iniciativas de outro jovem um bocado mais velho, amigo inesquecível, Ernesto Melo Antunes. 

E tudo mudou com a crise académica de 1962. Também antes, para quem ouvia alguma coisa em casa, mesmo que muito limitada e numa perspectiva de oposição democrática tradicional, a campanha de Delgado, o Santa Maria e a Índia (“mas não contas isto fora de casa”). Com sorte de não ouvir, o que era frequente nessa época, opiniões paternas reaccionárias e salazaristas, as opiniões em família podiam parecer-nos recuadas mas eram valorizadas. A política também é afecto. Ou, se calhar, é principalmente afecto, mais ética e missão na vida, respondendo-se perante quem quer que seja, um deus, a nossa consciência que até se vai connosco, os outros, ou mesmo a nossa memória vaidosa.

Porque aderíamos ao PCP? Antes da resposta, é preciso ter em conta que só falo, com razão, do PCP. Os esquerdistas, começando com a FAP de Francisco Martins Rodrigues, são nessa altura um pequeno grupo e acabam por ser relativamente ultrapassados, já no passar para os 70s, pelo MRPP, num processo que nunca percebi bem (e há quem perceba bem a origem e trajecto do MRPP?). O PS, então Acção Socialista Portuguesa, era apenas um grupo de amigos, de estudantes – valha-lhes que prestigiados academicamente – na órbita, até familiar, de Mário Soares e limitados quase que só a Medicina, com um pouco em Letras e Direito. Não tinham programa, nem ideias que se vissem, eram apenas anticomunistas muito sectários.

Volto à pergunta. Aderíamos principalmente porque queríamos lutar, e o orgulho de querermos lutar, contra todos os riscos, ninguém nos tira até à morte. E aderíamos por três factores, com peso relativo conforme cada caso. Primeiro, a revolta contra a injustiça social. Creio que pesava nisto a educação católica prévia, se influenciada por alguma perspectiva de acção social cristã, como eu tive. Em segundo lugar, o sentido da eficácia (talvez com algum radicalismo juvenil), vendo a gratuidade e acomodamento burguês da oposição tradicional, do reviralho, bem como do que se vislumbrava já dos grupos juvenis socialistas. Em terceiro lugar, talvez com menor peso, a elaboração ideológica. Isto merece um pouco mais de reflexão.

Ainda há dias me dizia alguém que a nossa geração universitária era politicamente inculta, que se ficava pela Marta Harnecker, activista chilena e discípula de Althusser. Talvez não seja bem assim e desconfio de que quem agora me diz isto nem a Marta leu nessa altura (até nem ela escrevia então). 

Muitos dos meus camaradas também começavam por ler Georges Politzer (“Princípios Elementares da Filosofia”) ou o “Processo Histórico”, de Zamora. É verdade que livros com algum esquematismo, mas que não enjeito como introdução ao pensamento marxiano. De Marx, ao menos o Manifesto era bem lido. Em todo o caso, talvez mais do que leram, dos clássicos, muitos dos detractores da formação ideológica da minha geração de comunistas. Quantos só leram o livrinho vermelho de Mao?

É necessário contextualizar. Primeiro, era bem difícil obter os livros. Dos jovens estudantes, só alguns tinham amigos respeitáveis que os apresentassem na Barata ou ao Brito, ou que, como a mim, lhes trouxessem livros de Paris. Depois, para quem tinha como bases de leitura e instrumento de reflexão os livros de filosofia do liceu, mesmo os textos mais básicos de Marx não eram pera doce. Bem me lembro de quantas vezes precisei de reler e reler cada página do Capital, em tempos em que nem sequer havia a wikipedia para nos explicar cada termo de economia política. 

Mesmo assim, não éramos poucos os que lá iam fazendo e lendo a sua pequena biblioteca básica dos clássicos, como se pode ver ainda hoje cá em casa, em lugar de carinho de memórias (as bem conhecidas “Oeuvres Choisies” das “Éditions du Progrès”, de Marx-Engels e de Lenine, mais uns avulsos (como o indispensável, tanto relido, "A Sagrada Família"), assim como uma edição em português do Capital (Delfos, de 1973, ainda antes do 25 de Abril!) e que está toda sublinhada e anotada. Não o digo para me gabar, mas para que se veja que muita gente da minha geração político-partidária não era assim tão acarneirada e primária. E quanto ao Manifesto, não seria só uma minoria de militantes intelectuais a lê-lo. Pergunto-me se tinham este nível de formação a maioria dos anarco-diletantes ontem e hoje muito mais anticomunistas ou os maoístas hoje recauchutados à direita ou pelo menos a hábitos de boa burguesia.

Abro parênteses para mais alguma coisa sobre a literatura marxista-leninista (termo de que não gosto, por achar que a junção de Lenine diminui Marx e até o desvirtua; além de que, pessoalmente, sou hoje marxiano e nada leniniano). Também cá tenho Engels, mas não o aprecio. O Anti-Duhring é indigesto e a Dialéctica da Natureza um disparate. Ao elaborar a sua noção de materialismo dialéctico, ou de materialismo histórico, Marx nunca caiu nesse erro de o “objectivizar”, no mundo físico. A dialéctica é inerente e limita-se ao pensamento humano e à sua decorrente acção social e histórica. Também cá tenho três volumes de Lenine, todos lidos na juventude mas hoje a amarelecer. Considero Lenine um grande teórico da acção prática política, mas completamente datado. Quanto ao Materialismo e Empiriocriticismo, mais uma pecha dos revolucionários que têm de mostrar que também são filósofos. Que seca! 

Atraía-nos a coerência do PCP, a sua aura de resistência, a coragem dos seus quadros face à tortura – mas também nos angustiava não sabermos nós se também resistiríamos, mau grado os ensinamentos do “Se fores preso, camarada”. Víamos determinação, boa elaboração mental e viabilidade prática (hoje tenho dúvidas) no programa do VI Congresso (1965), na proposta de Revolução Democrática e Nacional, explicados no Rumo à Vitória. Líamos uma análise sólida do papel dos monopólios e da propriedade latifundiária na exploração do nosso país e na ligação com um estado de essência fascista (não me venham com a forma) que sustentava essa economia. Sabíamos dependerem fortemente do PCP as acções políticas eficazes, que nos mobilizavam, como as CDEs ou o Congresso de Aveiro.

No plano externo, víamos que era o único partido com posição firme de condenação do colonialismo e de apoio aos movimentos de libertação. Era o partido que apoiava “aventuras” (no bom sentido) simbólicas da nossa juventude, como a revolução cubana (na sua genuinidade) e a resistência vietnamita. 

Tudo isto com muitos erros? Certamente, mas nada de comparável com outros que tinham também erros e nada destas coisas positivas. Muito menos com a “pureza” dos que criticavam e não se comprometiam. Porque comprometer-se podia ser perigoso, acreditem.

Estávamos cegos?

Encontro hoje amigos e conhecidos próximos desses tempos que cultivam uma atitude anticomunista evidente. A sua pergunta habitual, como que a dizer que eles viam, é “mas vocês não viam?”. O que é que não víamos que eles então viam? Em muitos casos, esta sua atitude actual e essa sobranceria não é honesta, mormente por parte de muitos que, sendo hoje assim, cometeram na época muito mais flagrantes erros, como se babarem a ler o livrinho vermelho, ou a criticarem o partido em consequência de terem recusado por razões menos dignas a proposta de nele lutarem.

É verdade que havia muito a criticar, embora as possibilidades de informação e de construção de opinião isenta não fossem fáceis. Começa por se estar em plena guerra fria, com guerra de propaganda e de desinformação feroz. Depois, algumas coisas passadas, como as sublevações de Berlim e de Budapeste, apanharam-me com 9 e 12 anos e passaram de raspão pela casa dos meus pais, até pessoas interessadas pelo mundo. Mais importante, a denúncia do estalinismo já tinha sido feita pelo próprio PCUS no início da década de que estamos a falar e não havia nenhuma razão para pensarmos que o PCP não estava a alinhar com a linha khruschoviana de correcção dos crimes do estalinismo. Por exemplo, na década de 60, não havia qualquer culto de personalidade de Cunhal (nessa altura nem conhecia um retrato seu), que só aflora depois do 25 de Abril como hábito sabujo de arrivistas de última hora que o PCP, na época do "assim se vê a força do PC", não soube analisar e controlar.

Se havia razão para desconfiarmos, no quadro do consequente conflito sino-soviético, até era para nos interrogarmos sobre o inverso, sobre o que de monstruoso se passava com o maoísmo, logo com a mortandade anterior da Grande Marcha. Também, mais tarde, com o movimento dos guardas vermelhos e a Revolução Cultural, a decapitar a elite da direcção do comunismo chinês, como tinha feito Estaline. Que diziam “os poetas maoistas de agora (de então)”?

Vi eu bem, mais tarde, depois do 25 de Abril, in loco, que a vida na URSS era cinzenta e tristonha. Que dominava a burocracia, o formalismo, uma norma social arrasadora da riqueza da individualidade inserida no bem comum. Mas como podíamos sabê-lo antes, em época de guerra propagandística feroz, com contactos fechados de parte a parte? Desconfiámos alguns pela surpresa que foi o golpe de palácio de Brejnev e do seu grupo. Que significava afastar Khruschov, o símbolo de uma certa transparência?

Estou a dizer com isto que se discutia muito, obviamente que apenas no âmbito restrito da nossa célula. “De cima”, só o que vinha no Avante e no Militante, mais algumas orientações genéricas do “controleiro”. Também pelas condições da clandestinidade, não podia haver um controlo rigoroso do partido sobre o que se discutia na base, a desmentir o que se diz sobre a disciplina férrea que reinava no partido. Havia todo o lugar para a abertura de espírito, embora condicionada, positivamente, por uma grande identidade de ideias, aceite colectivamente. Assim, quanto conversei, por exemplo, sobre Maio de 1968 ou sobre o eurocomunismo, sem ter de pedir autorização, era o que faltava. 

Ao mesmo tempo, evidentemente, o centro de toda a discussão política marxista, a revolução de Praga, acontecimento decisivo na minha vida política e de bem mais um grande grupo de camaradas. Tão importante que aqui me fico, em passagem para o seu significado para outra fase de análise da vida no PCP, não sem dizer, ainda aqui, que o processo checoslovaco revolucionou – até hoje? – toda a minha maneira de ver a revolução socialista e a construção de uma sociedade que eu já imaginava e desejava, a reflectir o profundo sentido humanístico de Marx, de que via agora ser o movimento comunista oficial uma caricatura. Lembram-se do lema de Marx, também o meu? "Humani nihil a me alienum puto" (Sou homem e nada do que é humano me é estranho).

(continua)

NOTA - No período que estou a relembrar, e mesmo depois, até ao 25 de Abril, houve amigos meus que, individualmente, sem organização, um pouco à anarco-diletante, como disse, tiveram actividade política.  Mesmo quando me dão razão, então ou agora, para os incluir no anticomunismo que critico, quero deixar bem claro que os distingo dos outros que falam para se ouvirem falar e instalarem-se no sistema. Esses são amigos que prezo e admiro, que correram riscos, que até foram presos. Para mim, esse seu anticomunismo é honesto, respeito-o, discutimo-lo com duas cervejas, até porque nem tenho alguma dama a defender com voto de serviço donzel.

1 comentário:

  1. Percorrendo um caminho alimentado por inquietações.
    Vejo claramente o perfil difuso de uma pequena multidão que se revê num e noutras.

    Admirável!

    "Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer
    Qualquer coisa que eu devia perceber
    Porquê, não sei
    Porquê, não sei
    Porquê, não sei ainda"

    (De "Inquietação", José Mário Branco)

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