terça-feira, 30 de julho de 2013

Tributação do rendimento e do capital

Lobo Xavier e a sua comissão (o que quer dizer, um grupo de pessoas estreitamente dependentes do grande capital – nomeadamente ele como advogado de grandes empresas) acabam de propor a redução do IRC. 

O argumento é incentivar a localização das empresas e aumentar a sua competitividade. Isto merece grande discussão, nomeadamente a importância do valor do IRC em comparação com a de outros factores de competitividade (inovação, qualificação da mão-de-obra, agilidade administrativa e da burocracia oficial, crédito, etc.), mas talvez não esteja a haver uma das pertinentes sobre este assunto.

Obviamente, a descida do IRS terá de ser compensada pelo agravamento do IRS. Não quer dizer que por aumento imediato de taxas. O aumento da produção, das exportações e da riqueza nacional, se acompanhado por um aumento da procura agregada e mais ainda por aumento dos salários e redução do desemprego, faz subir a receita fiscal de IRS por aumento da matéria colectável, mesmo sem aumento de taxas.

No balanço IRC-IRS também entra a tributação do rendimento do capital, a nível individual. Os capitalistas beneficiam da descida do IRC pelo aumento do lucro livre após IRC mas, em contrapartida, como sujeitos passivos de IRS sobre esse lucro, devem contribuir para a compensação dos benefícios atribuídos às empresas (não me pronunciando agora sobre a correcção desta medida).

O IRS pago pelo rendimento individual do capital deve ser rigorosamente cobrado, com fiscalização efectiva e englobamento obrigatório desses rendimentos na matéria colectável, sujeita às taxas gerais do IRS. É inadmissível que paguem IRS a taxa liberatória de 26,5%, muito inferior à minha taxa média  correspondente a uma reforma de professor catedrático/investigador sénior.

Adicionalmente, não deve ser possível que os rendimentos dos capitalistas (ou outros) que exerçam funções de gestão os beneficiem directamente e beneficiem indirectamente as empresas baixando a sua matéria colectável, por salários descomedidos e outros benefícios. Para a redução de custos e competitividade das empresas, isto também conta, não é só o IRC.

sábado, 27 de julho de 2013

Porta giratória

1. João Rodrigues Queiró era um relativamente obscuro professor da Universidade de Coimbra, sem experiência relevante de política ou gestão da educação superior até ser nomeado Secretário de Estado do Ensino Superior de Nuno Crato (SEES).

2. João Atanásio era um dos principais proprietários e homem forte do Instituto Superior de Línguas e Administração (ISLA).

3. A sua quota foi vendida a um grupo multinacional poderoso, a “Laureate International Universities”, com ofertas de ensino superior online e em Portugal, Brasil, França, China ou EUA.

4. Entretanto, João Atanásio é nomeado chefe de gabinete de João Rodrigues Queiró.

5. Há algumas semanas, num processo anormalmente expedito e ao contrário do que é usual, a SEES propõe ao governo o decreto-lei nº 87/2013, que aprova a transformação do ISLA em universidade, a Universidade Europeia, beneficiando da herança de cursos do ISLA já aprovados.

6. Com a recente remodelação, João Rodrigues Queiró deixa o governo, “por razões pessoais”.

7. Alguém tem o palpite de qual é o destino de João Rodrigues Queiró?

quarta-feira, 24 de julho de 2013

E se começássemos por perguntar o que é a esquerda?


(NOTA PRÉVIA – Este “post” é politicamente incorrecto e contém cenas eventualmente chocantes)

RESUMO: nenhuma discussão é válida sem entendimento sobre o significado dos termos. Clamar por unidade de esquerda exige entendermo-nos sobre o que é esquerda. Historicamente, teve grande evolução, o que não permite uma caracterização. Também por isto, a ambiguidade da noção actual de esquerda só permite uma caracterização muito ampla e difusa. Em tempo de crise, ou de bifurcação, dispomos de uma definição de esquerda que seja operacional?


* * * * *

Com maior ênfase nestes dias recentes de jogos unitários cruzados, muito se discutiu a unidade de esquerda, com variantes ao gosto de cada um. Para uns, nunca com o PCP; para outros, nunca incluindo o BE. Curiosamente, todos incluindo sempre o PS. Parece indubitável que o PS é um partido de esquerda. Será? Para muitos, porque sim, porque sempre pensaram assim. Não valerá a pena reflectir um pouco?

Começo por deixar bem claro que a minha dúvida sobre esta questão não se reflecte, em consciência, em nenhuma atitude sectária. É para mim claro que o PS é o aliado natural e preferencial da esquerda, mas em circunstâncias históricas e políticas que não têm a ver, directamente, com a delimitação rigorosa da esquerda (com este nome ou outro, já que este nome tradicional e emblemático pode hoje favorecer confusões ou rejeições emocionais). E creio que essa delimitação é essencial para uma perspectivação dialéctica ou dinâmica – coloco-me nessa posição – dos processos políticos. 

“O que é a esquerda?” não é questão bizantina nem de mera terminologia. A meu ver, é necessária para evitar perverter o sentido de muitas discussões políticas, para evitar demagogias e, com isto, contribuir para o esclarecimento dos eleitores.

Claro que esta questão é mais ampla, incluindo as interacções com os movimentos sociais e com a rua, inorgânica. Todavia, por facilidade de discussão, fico pelos partidos. Também por facilidade, considero apenas o PS, o PCP e o BE, por pensar que o PEV não é determinante da política de UE.

Ainda previamente, uma primeira pergunta a conduzir adiante a uma dicotomia: basta a suavização da austeridade? Sérgio Lavos escreveu que “a Seguro bastou um módico de decência e olhar para o rasto de destruição que a austeridade está a deixar no país para acertar e ser, vá lá, coerente, para ganhar a batalha”. 

Pergunto: para vencer a crise e inverter o caminho para a desgraça a que nos estão a sujeitar, num quadro de política europeia intransigente e para qual não se vislumbra correcção que desobedeça ao ordoliberalismo, basta “um módico de decência”? E que a coerência fique pela que o PS mostrou (não estou a diminui-la)? E que seja isto o que se entende como coerência com a caracterização de um partido como de esquerda? É o que pretendo discutir.

É certo que, estando o PS mais pressionado, as suas propostas para a negociação à direita foram relativamente mais claras do que até agora. Mas são coerentes e realistas? Criticam-se as propostas do PCP e do BE porque irrealistas, mas sem se ter em conta que elas se inserem num quadro estratégico diferente, de luta e resistência. Pode-se duvidar da sua viabilidade, mas têm essa coerência: assumem a denúncia do memorando, a reestruração da dívida e, em último caso, o abandono do euro. As do PS são simpáticas mas inviáveis porque não têm sustentação numa estratégia de rejeição da austeridade. Não há austeridade dura e austeridade suave; há a austeridade punitiva – e isto é muito importante! – que não mudaremos com atitudes de meninos obedientes e bem comportados. Como é que o PS se propõe mudar isto?

Estou a falar de relações entre partidos a nível de direcção e de aparelhos centrais. Claro que é muito diferente a questão da convergência de membros individuais dos partidos para actuações conjuntas em sindicatos, comissões de trabalhadores (onde ainda há), acções sectoriais ou transversais (comunitárias ou temáticas) ou, tão importante hoje, no âmbito de movimentos sociais e políticos. Veja-se, por exemplo, como participaram socialistas conhecidos em acções como a Iniciativa Cidadã da Dívida ou o Congresso Democrático das Alternativas. Mais importante ainda, obviamente, é não confundir o PS-partido com o seu eleitorado.

Seria altura de perguntar, a começar, se o PS é de esquerda. Come se verá adiante, não é para mim questão essencial, é mais de rótulo e de que esse rótulo, sem mais crítica, condicione a definição do quadro de alianças. Quero dizer, evitar o raciocínio vicioso “é preciso unir a esquerda / o PS é de esquerda / logo é preciso unir PS, PCP e BE”. Hoje, vou preocupar-me mais com o primeiro termo. O segundo exigiria larga discussão, quanto à história do PS depois do 25 de Abril (e antes, por exemplo em relação às CEUD e às posições em relação à descolonização), às características sociais e ideológicas do seu eleitotrado, ao seu enquadramento internacional, ao seu programa, à sua cultura organizativa e funcional.

Mesmo sem esta discussão, creio ser opinião generalizada que o PS navega sempre ambiguamente por águas turvas. Essa ambiguidade permite-lhe ser uma espécie de atractor de “esquerda”, um álibi para gente que, psicologicamente e socialmente, foi criando relações com “gente bem”, se aburguesou (mais do que já eram). MES, ex-PCP, até um ou outro ex-LUAR. Continuaram de “esquerda”, moralmente tranquilos porque iam fazer do PS um verdadeiro partido de esquerda. Viu-se.

É paradoxal que muitos escribas que hoje tanto discutem esquerda e direita sejam os que, tipicamente, há tempos, diziam que já não fazia sentido distinguir entre esquerda e direita, que eram conceitos ultrapassados. A tal ponto que já não me lembro quem comentou que “quando ouvia uma pessoa dizer isso sabia logo que ela era de direita”.

Porque serve hoje à direita falar hoje de uma esquerda difusa em que situa o PS? Em primeiro lugar, se o comprometer com a política de direita, pode apresentar esta como uma política de “salvação nacional”, e lá conta com Cavaco, com isto prendendo o eleitorado num espartilho de bloco central, numa democracia  de consensos espúrios. Em segundo lugar, diferencia duas esquerdas, a moderada e a radical. 

A mensagem transmitida ao eleitorado, mesmo que com risco de alternância – que as forças socioeconómicas dominantes aguentam – é de que a esquerda moderada é sensata, realista, bem educada, de gente engravatada. A radical é irrealista, minoritária, só berra e não quer assumir a responsabilidade do poder, não é de pensar nela como alternância. Ao aceitar este papel, a esquerda moderada deve pagar o preço. Sempre houve a história do polícia bom e do polícia mau; mas também a do escravo bom e do escravo mau.

Até que ponto esquerda é um conceito com alguma perenidade temporal e manutenção de um corpo essencial de características?

Creio que a resposta é claramente negativa, até por haver vários critérios definidores da esquerda. Se virmos épocas passadas da história, faz algum sentido separar esquerda e direita em função de monárquica ou republicana, laica ou não (França, Assembleia de 1789)? Ou de princípios revolucionários depois das jornadas de 1848, cedo confundidos por cisões de socialistas, comunistas, anarquistas, contra os utópicos como Saint-Simon e Fourier? Ou de teorias gerais, nomeadamente prudhonianas ou marxistas? Ou, mais tarde marxistas e sociais-democratas?

Com tudo isto, a confusão evolutiva de uma noção de esquerda em sentido lato que vá desde polos a meu ver mal classificados – de extrema esquerda a centro-esquerda – leva a que, hoje, só um conjunto muito vago de tendências (nem lhes chamaria características) a caracterize grosseiramente: valorização da equidade e da justiça social, do Estado social (principalmente no caso europeu), aceitação de limitações à propriedade privada, defesa de regulação da especulação financeira desenfreada, maior aceitação das mudanças nos costumes, dos direitos das minorias, dos valores ambientais. Concretizando, esta esquerda em sentido lato, em Portugal, compõe-se do PS, do PCP (mais PEV) e do BE.

Em contrapartida, uma esquerda em sentido estrito tem tudo isto mas mais uma diferença essencial, de que decorrem políticas diferenciadoras: rejeita o capitalismo, mesmo que, com o fim último de o conseguir, faça a sua gestão em favor das classes populares (como se vê hoje na América latina). Concretizando, esta esquerda em sentido estrito, em Portugal, compõe-se do PCP (mais PEV) e do BE.

Até que ponto esquerda é um conceito operacional? Se a definirmos de modo abrangente, como acima, é certo que a unidade de forças que se reconheçam neste espectro um pouco vago de valores pode conduzir a políticas populares, de que há exemplos históricos (as frentes populares francesa e espanhola dos anos 30 – curiosamente “populares”, não “de esquerda” como a que recentemente candidatou Melenchon). Também a social-democracia nórdica obteve progressos indiscutíveis na construção do estado social.

No entanto, estas frentes são, em geral, defensivas. Podem ser até imperiosas em estado de guerra ou de catástrofe. Podem configurar uma natureza de força popular patriótica em situação de neo-imperialismo. Podem ser necessárias, com maior coesão a nível da esquerda em sentido lato para defesa – volto a insistir no carácter defensivo – quando as forças do capital, nacional e internacional, põem em risco conquistas sociais importantes.

Quanto a isto, há um aspecto essencial, de se estar ou não em situação de crise. As situações que referimos são de conflito e tensão, mas não obrigatoriamente de crise. Nestas situações, é sempre melhor alguma coisa do que nada e devem-se explorar todas as possibilidades de unidade, com cedências mútuas certamente necessárias. 

A nossa situação é diferente, é de bifurcação (uma perspectiva enriquecedora, com fundamento de modelos matemáticos, da velha dialéctica). Muito simplesmente, em história, a bifurcação é uma situação em que não há meios termos, atalhos, compromissos. Ou há escravatura ou há abolição. Ou há monarquia ou há república. Numa bifurcação, a escolha é imperiosa. Não se pode ir por um caminho e outro; quem escolhe um dificilmente pode ter por companheiro quem escolher o outro. Ceder mutuamente, pactuar, só se se ficar parado a conversar antes da bifurcação, com risco de ser apanhado pelo perseguidor que vem atrás.

Alguém tem dúvidas de que estamos em bifurcação, aliás com sub-bifurcações? 1. A nossa crise de austeridade recessiva resolve-se no quadro europeu porque a UE, o BCE e os países germano-centrados vão ver que o euro está em risco e que isto os prejudica grandemente. É a posição dos que acreditam na fada europeia, parte creio que minoritária do BE e alguns independentes umbilicalmente ligados às instituições europeias. 2. A resolução da crise impõe uma política nacional diferente, sem a sujeição extrema que tem havido aos ditames da troika. É a posição do PS, do PCP e da maioria do BE (claramente da sua direcção). 

Mas: 2.1. Pode haver uma solução moderada, com renegociação pacífica de prazos, metas e juros e com adopção (com que meios) de políticas de investimento e promoção do emprego. É a posição do PS. 2.2. O problema central não é a dívida ou o défice, mas sim a disfuncionalidade de origem do sistema do euro, que não permite “correcções suaves” ou cosméticas. Mau grado o reconhecimento de que a denúncia do memorando (e mesmo a indesejável mas eventualmente necessária saída do euro) tem custos, eles são menores do que os da política austeritária. É a posição do PCP e do BE.

Penso que, nesta situação de exemplar tensão dialéctica, só um grande milagreiro é que a pode resolver sem desiludir todos os que clamam por uma unidade impossível.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Enganei-me

Apostei que o PS subscrevia o acordo a três. Obviamente enganei-me. Será difícil apurar-se de certeza o que se passou. O PS estava decidido desde o princípio a não se deixar armadilhar pelo PR e manteve as reuniões só para dar imagem de dialogante, sério e preocupado acima de tudo com o chamado “interesse nacional”? Ou começou por embarcar, vendo depois que ia pagar um alto preço e assim interrompendo as negociações num momento em que já se esperava o desfecho contrário – e com isto parecendo que a sua decisão tinha tido motivos muito poderosos? E como pesaram as relações de força internas?

De qualquer forma, reconheço que o PS não sai mal de todo deste episódio. O PS, perante muitos eleitores “moderados”, continua a parecer defender princípios e propostas bem distintos dos da direita e deste desgraçado governo. E, ao mesmo tempo, dá imagem de sensato, responsável e cumpridor, com abertura ao diálogo. Afinal, tudo o contrário do que os meios de desinformação acentuam como características dos partidos de esquerda, PCP, BE e Verdes. Não faltará quem continue a falar de esquerda moderada e de esquerda radical. Claro que isso interessa ao PS, mas também à direita, embarcada com o PS no grande navio armado pelo capital.

Com o golpe de rins de hoje, o PS aparentemente ganha posição ao centro. Escapa, a curto prazo, à armadilha do compromisso com a direita, mas só o pode fazer afirmando diferenças, vincando a especificidade das suas propostas e acentuando as razões da rotura. Isto tem um lado perigoso: permitir aos eleitores um mais fácil escrutínio dessas propostas e aos partidos de esquerda a demonstração mais linear da incoerência das propostas.

O PS vence uma batalha no flanco direito mas abre nova luta no flanco esquerdo. Creio que esta vai ser mais determinante para o futuro a médio prazo do nosso processo político do que o episódio agora encerrado (se o PR o quiser dar por encerrado, do que duvido muito).

Notas soltas

1. Bolsa das apostas

A grande aposta agora é saber qual vai ser a decisão do PS. Os balcões de apostas ainda não fecharam. Por mim, vou apostar sem hesitação na cedência do PS em relação a aspectos essenciais do seu plano de combate à crise, embora eu não saiba bem o que caracteriza o grau de essencialidade das medidas propostas pelo PS (veja-se um “post” anterior).

Repito que é só aposta porque, no momento em que escrevo, nada é certo sobre o resultado das negociações entre os três partidos. No entanto, mesmo que só como palpite, há bons indícios do que se está a passar. A simples demora do processo, com desconvocação dos órgãos partidários, indica que se está perante negociações propriamente ditas e não de um “show off”. 

Estão a medir-se cedências mútuas, pesar influências internas e externas. Julgo que estão enganados os que ainda tinham ilusões e acreditaram que o PS estaria a fazer ronha e que só queria mostrar respeitabilidade, mas que acabaria por não subscrever nenhum acordo. Já passou demasiado tempo para ser isso.

Se assim fosse, o PS deveria ter colocado logo condições. Claro que eu não esperaria que fossem as posições que defendo, mas mesmo as que o PS vem apregoando – menos austeridade, renegociação [JVC · não reestruturação!], promoção do emprego – seriam suficientemente distintas das do governo, mesmo que só superficialmente, para justificar na altura certa a rotura das conversações (o que é diferente de negociações). Fá-lo-ia dizendo claramente quais os pontos de discordância irredutível e demonstrando a razão dessa irredutibilidade.

Penso que o PS vai sair muito ferido desta armadilha tecida por Cavaco e em que o PS caiu infantilmente (como seria de esperar da infantilidade política de parte da sua direcção, aparelhística). Creio mesmo que não é abusivo pensar-se que o PS possa estar no princípio do seu fim. Até a mais curto prazo, o suicídio político de Seguro. Já se deve estar a preparar no Rato a noite das facas longas.

Já tenho falado na pasokização do PS (diminuição brusca da expressão eleitoral em virtude do compromisso com a troika) e cada vez mais estou convencido dela, o que até me leva a menorizar efeitos eleitorais próximos de uma unidade de esquerda. Vamos assistir a nova bipolarização eleitoral, agora já não entre direita (PSD e CDS)e centro (PS), mas entre direita e esquerda (PCP e BE), esta reforçada com parte importante do eleitorado que o PS vai perder com a sua pasokização. Há mais eleições do que as próximas e as eleições não são a única forma de luta política.

2. Danças e contradanças

O jogo de convites cruzados a que se assistiu nestes últimos dias facilitou interpretações deturpadoras que não ajudam à intenção messiânica de alguns de conseguirem a unidade de esquerda. Disse-se, por exemplo, que o convite do BE ao PS tinha sido uma novidade, principalmente por não ser condicionado. Ora é o próprio BE, em comunicado, que declara que “regista positivamente que, entretanto, a direção do PCP tenha proposto ao Bloco de Esquerda a realização de uma reunião.” 

É certo que o PCP não estendeu o convite ao PS, mas também parece óbvio que o convite do BE ao PS, como se viu depois, resultou numa conversa de surdos e com recusa do PS ao prosseguimento das reuniões, como não podia deixar de ser quando o PS estava a ser convidado para negociar com Deus e estava simultaneamente a negociar com o diabo. 

Mais, a agenda do BE para as reuniões era “a construção de um governo de esquerda que termine a austeridade e o memorando, que consiga a reestruturação da dívida, mobilizando os recursos bancários,  financeiros e fiscais necessários, e que recupere o rendimento perdido pelas pessoas”, impensável para o PS. E não é isto um convite com condições, ao contrário do que dizem os entusiastas do “gesto Semedo”?  Em que é que esta proposta enviesada difere, essencialmente, na mais lógica e transparente recusa do PCP em convidar o PS para negociações à esquerda?

O que faz correr esse grupo de escuteiros com missão de fazer a unidade da esquerda, mesmo que sejam só eles a pensarem que é possível essa unidade? Serão mesmo angélicos ou “uma vez ambicioso sempre ambicioso”? São perguntas politicamente pouco correctas, nesta época de todas as unidades, mas “amicus Plato, sed magis amica veritas” (sou amigo de Platão, mas mais amigo da verdade).

3. De como a questão importante dos quatro fundadores do BE vale mais do que a unidade

Rui Tavares, numa das suas crónicas habituais no Público (só para assinantes), invoca um argumento que creio ser novidade, em relação a esse mito da unidade: “ninguém está mais escaldado do que o comum eleitor de esquerda neste país, a quem várias vezes iludiram e desiludiram sucessivamente.” Não faço a mínima ideia do que quer dizer. Quais foram, quando, como, as ilusões de unidade em que os partidos fizeram cair os eleitores? E, se houve alguma iniciativa, qual dos partidos a desfez e desiludiu os eleitores de esquerda?

Na mesma crónica, considera o PS como o pivot da nossa II República. Se percebo o termo, entenda-se, em definição partidária, o centro, o partido que permite a oscilação do sistema para ambos os sentidos, conforme se coliga. Mas, segundo Rui Tavares, o PS deve escolher se quer manter a sua autonomia e margem de manobra enquanto partido central do sistema (veja-se como qualquer solução terá de passar por ele) ou se aceita amarrar-se a um acordo que o ancorará sem apelo nem agravo a um bloco de direita. Estou a perceber bem? Ou autonomia ou ligação à direita? Então e a ligação à esquerda?

Gato escondido com o rabo de fora. Começa a não haver pachorra...

4. Continuando com escuteiros

Numa crónica do Expresso, com o título de “O desafio de Semedo”, Daniel Oliveira exemplifica bem a atitude de que falei acima. Vai mesmo mais longe, quando deixa margem para dúvida sobre as consequências que poderia ter tido a negociação entre o BE e o PS: “o PS acaba, nesta crise política, por se ver confrontado, ainda antes de ir a votos e chegar ao poder, com as grandes escolhas que terá de fazer. As programáticas e as de alianças. Estando assim obrigado a mostrar o jogo. O seu discurso contra a austeridade é sincero ou faz apenas o jogo do costume, opondo-se agora àquilo que depois fará?”

Que significa o ponto de interrogação final? Será que Daniel Oliveira, político experiente, ainda admite que o discurso do PS contra a austeridade é sincero? Dou-lhe o benefício da dúvida. Mas é coerente? Não acredito que Daniel Oliveira o possa admitir. E se for conscientemente incoerente pode ser sincero? Como escreve Daniel Oliveira mais adiante, “O PS nunca quis ‘rasgar o memorando’. Mas dizia querer renegociá-lo. Seria em torno da profundidade e do rumo dessa renegociação e de uma significativa reestruturação da dívida que o diálogo se teria de fazer.”

Escreve também Daniel Oliveira que “até ontem [JVC: data do convite do BE], o PS tinha um álibi: a impossibilidade de entendimentos à esquerda atirava-o para os braços do PSD e do CDS.” Quem é que hoje, salvo os próprios simpatizantes do PS, diz tal coisa? Mesmo que a falta de entendimento não pudesse em nada ser imputada ao PS, tal argumento acaba por ser ofensivo para o PS, visto como um boneco sem pernas próprias e sem vertebração, que só anda a ser atirado de um lado para o outro, como o "pelele" de Goya (na imagem). 

Sejamos claros, mesmo que politicamente incorrecto nestes tempos de apelos a todas as unidades: o PS não está próximo da direita por outra “coisíssima nenhuma” que não seja a degenerescência ideológica e a cobardia política que alastrou desde a guerra fria por toda a social-democracia europeia. Falaremos disto um dia destes.

5. O rol de razões de Cavaco

Tudo o que é jornal ou blogue tem apresentado inúmeras justificações ou intenções quanto às propostas de aliança tripartidária de Cavaco Silva. Por exemplo, 
  • alargar, com o PS, a base social de apoio ao governo da direita; 
  • reforçar os poderes presidenciais e preparar, em segunda fase, um governo presidencial; 
  • comprometer o PS e reduzir a sua expressão eleitoral; 
  • facilitar uma atitude mais benévola da troika em relação a um programa cautelar ou até um segundo resgate; 
  • permitir uma atitude ambígua de nim a eleições antecipadas, que Cavaco sentiria como desejo dos eleitores, não sendo acusado de provocar mais instabilidade convocando eleições; 
  • reforçar o comprometimento dos três partidos com o memorando inicial, validando com isso a ideia de um consenso nacional e internacional em relação a políticas de austeridade, numa lição em que Portugal é um bom aluno, estudioso e disciplinado; 
  • diminuir a força do governo e da coligação, recusando com esta alternativa a proposta de remodelação; 
  • até mesmo vingar-se de Portas director do Independente, já que a vingança serve-se fria; 
  • criar uma imagem de estabilidade política que acalme os especuladores, faça baixar os juros e alivie o “pós-troika”;
  • etc.
E porque não, mais simplesmente, porque assim o querem a troika e a Sra Merkel?

sexta-feira, 12 de julho de 2013

A crise passou para Belém

Sobram os comentários sobre a crise reavivada pelo Presidente da República (PR). Custa não deixarmos registada a nossa opinião, mas não é fácil. A situação está muito incerta, certamente condicionada por informações reservadas. Provavelmente há pressões imperiais que desconhecemos, bem como pressões domésticas dos senhores do capital. Mas, acima de tudo, há perguntas suscitadas pura e simplesmente por certos factos parecerem totalmente desprovidos de lógica.

Julgo que o PR tem insuficiências conhecidas, mas não o considero desprovido de inteligência. Como político, aguentou-se 10 anos no palacete de S. Bento, constituiu uma rede notória de relações e passa por não dar ponto sem nó. Não se deve subestimá-lo, se os seus actos parecerem desprovidos de lógica.

Creio que, a menos que haja alguma coisa na manga, quase toda a gente considerará a proposta do PR como irrealista e imprudente. Imprudente porque a falhar, quase certamente – ou muito me engano – redundará em maior desprestígio de quem já anda muito na crítica do povo. Então, só uma coisa me parece ter lógica. O PR está a fazer uma provocação, sabendo que depois pode culpar os partidos pelo fracasso da sua proposta irrealista. Com isto, vai, populisticamente, apelar ao antagonismo de muita gente contra os partidos, favorecendo assim uma solução cesarista. A referência ameaçadora a “outras soluções no quadro do nosso sistema jurídico-constitucional” [?] não augura nada de bom.

Começo pelas eleições e com a declaração de interesses de que, como aqui tenho escrito, não vejo vantagens em antecipação das eleições. O PR justificou longamente, entre a tecnicidade e a exposição dos malefícios políticos, que não podia convocar eleições antecipadas. Mas alguém esperava que o fizesse, quando tem passado todos os últimos meses a declarar expressamente o seu apoio à coligação maioritária e a garantir apoio ao governo? Até aqui, nada de surpreendente.

Inaudito, sim, é que um PR anuncie eleições antecipadas com um ano de antecedência. Independentemente de grave problema relacionado com isto – e que é: que governo aceitará governar com morte anunciada? – não dá para acreditar que o PR possa ver para daqui a um ano, com certeza certa, o desaparecimento dos factores que, segundo ele, impedem agora a antecipação das eleições. 

Será que o PR acredita com inabalável fé de economista que, em Abril de 2014, a troika sai de um Portugal de excelente saúde financeira, respeitado nos mercados e com taxas de juro favoráveis? Ou, pelo contrário, o PR, informado pelas fontes governamentais, financeiras e europeias, sabe que é praticamente inevitável um segundo resgate ou, pelo menos, um novo programa de austeridade baseado em OMTs? Tudo leva a crer, desde a capacidade técnica do PR até à sua manifestada preocupação com o pós-troika, que a segunda hipótese é que é verdadeira, o que retira congruência à convocação de eleições para o ano e não agora.

Por outro lado, não há na comunicação do PR uma palavra a justificar as eleições em 2014. Seria lógico qualquer coisa como “entendo que o povo português deve ser chamado a pronunciar-se sobre a política que tem sido seguida e que continuará, mas, por restas e estas razões, não podem ser agora e convocá-las-ei logo que acertado, daqui a um ano”. Eu discordaria, mas reconheceria que, do ponto de vista do PR, tinha lógica.

Da mesma forma, promover agora um compromisso do arco da troika com incidência em formação de governo, com um programa a médio prazo (donde, se ainda entendo as palavras, para lá de 2014) e convocar eleições durante a vigência desse compromisso) é surrealista, Não me parece poder significar outra coisa que: “seja qual for o resultado eleitoral, uma grande maioria já está vinculada a uma política com expressão governamental”. É bom exemplo do descarrilamento da democracia a que, dia a dia, vamos assistindo. É a pós-democracia. 

Passemos aos partidos. O PR teve a suprema arte de os colocar a todos – os três troikianos, claro – em posição desconfortável. Diga-se mesmo que sob ameaça: “se esse compromisso não for alcançado, os Portugueses irão tirar as suas ilações quanto aos agentes políticos que os governam ou que aspiram a ser governo.” Se algum vai conseguir – ou quer conseguir – resistir à ameaça é coisa para se ver nos próximos dias ou semanas.

PS e PSD estão visivelmente atónitos, depois de o PR ter feito deles gato sapato. Ninguém pode acreditar que as negociações entre eles há uma semana não tivessem sido pautadas por linhas gerais de orientação discutidas entre o PR e Passos Coelho, logo na sequência da demissão de Portas.

Como é agora? O governo continua em plenitude de funções, diz o PR. Com ou sem demissão “irrevogável” de Portas? E como vai Portas e o CDS engolir a escandalosa afronta de ser apeado da importante posição que foi anunciada a todo o país? Quem se está a rir é Álvaro Santos Pereira.

E, das duas uma. Antes da comunicação feita por Passos Coelho com Portas ao lado, não informaram o PR, e são tontos e politicamente infantis; ou fizeram-no e então alguém não fica nada beneficiado na imagem de pessoa leal e séria.

Quanto ao PS, para o eleitorado de direita e até para parte do seu próprio eleitorado, continua prejudicado pelo ódio a Sócrates, pela história (diga-se que sem fundamento) de que a crise se deve aos seus gastos exagerados e a ter sido o principal subscritor do memorando com a troika. Também pela suas posições tíbias, não ganha apoio à esquerda. Por isto, apesar da grande perda da direita nas sondagens, o PS não beneficia. Ser agora convidado para o “clube da salvação nacional”, quando começava a desmarcar-se timidamente, foi um presente envenenado.

No meu último “post”, manifestei fortes críticas em relação às propostas do PS para nos libertarmos do sufoco da política austeritária que a troika nos impõe – com grande cumplicidade interna. No entanto, face à proposta do compromisso de “salvação nacional”, achei que o PS iria resistir ao canto suicidário da sereia, como aparentemente declarado por Alberto Martins. Todavia, não ponho as mãos no fogo, depois de o Expresso noticiar que “Passos e Seguro abertos a negociar”.

Note-se também que há omissão total do que o PR entende por “salvação nacional”, excepto no que respeita a procedimentos. Não vale o argumento de que é matéria de programa de um governo e de uma coligação que o suporta. O que se exige ao PR, quando decide uma medida de tal importância e até, para alguns, na área de penumbra dos seus poderes constitucionais, é que mostre ao país, sem ele próprio se comprometer em concreto com os partidos, o que são as vias de solução para a crise, os seus custos e expectativas, o esforço de afirmação de patriotismo, nesta crise de submissão neo-imperialista do país, que se exige dos agentes políticos.

Na realidade, à “austera, apagada e vil tristeza”, ao aumento moral e socialmente inaceitável do desemprego e à crescente pobreza dos velhos, à submissão vergonhosa a interesses estrangeiros – porque “também dos Portugueses alguns tredores houve algumas vezes” – junta-se uma doença porventura letal da democracia.

Na actual pós-democracia, a expressão popular é limitada a eleições ritualizadas e, quando apresentam riscos para a “seita dos grandes irmãos”, manipulam-se, como nos referendos dos tratados europeus, ou mesmo exige-se a sua anulação, como o referendo grego. Os direitos e liberdades são formais e reduzidos ao mínimo, só para salvaguarda das aparências. Os “poderes de facto” – capitalistas, corporações, irmandades diversas, comunicação social, certas academias, etc. – fazem e desfazem governos, corrompendo agentes políticos ou manipulando a informação. Os políticos “formam-se” cada vez mais nas juventudes partidárias ou entidades por elas controladas, como associações de estudantes, dando em pobres carreiristas em que a capacidade de intriga e de tráfego de influências pode sobrepor-se ao mínimo de inteligência e cultura. A corrupção destila pus como ferida infectada. A promiscuidade é escandalosa, de que é exemplo a porta giratória entre governos e grandes empresas ou, mais caricatamente, entre política e lugares de comentador ou colunista na comunicação social. Todo um bando de medíocres e arrivistas que parasitam as instituições democráticas baba-se, e tudo faz para, a beijar a mão dos sacerdotes da tal “seita dos grandes irmãos”.

É o que estamos a viver. Os próximos tempos, depois da comunicação do PR, serão de agravamento da crise. E lembremo-nos de que “um fraco rei faz fraca a forte gente”.

(A imagem retrata a repressão nas ruas de Paris em 2 de Dezembro de 1851, mais famoso como "o 18 brumário de Luís Napoleão")

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Os puros e os espúrios (II) – o PS

Prosseguindo a discussão da unidade de esquerda, disse que, na minha opinião, essa discussão teria de ser fundamentada em dados objetivos, não em pressupostos morais subjectivos. Não com indignações virtuosas de quem paira acima das responsabilidades dos partidos, apresentados como incapazes de verem a fada de salvação da esquerda que esses iluminados dizem ser, sem que, ao menos, proponham a tal plataforma mínima ou credível que reclamam. 

Neste texto e nos que se lhe seguem, tentarei lembrar aos leitores o que são coisas fundamentais que dificultam essa unidade (a não ser que nos contentemos com um acordo de generalidades, sem efeito prático numa acção coerente e coesa de governo). Não tomarei partido por nenhum dos partidos, mas tomarei posição em relação a cada posição ou proposta concreta. Vou começar hoje pelo PS.

Partido Socialista

A atitude inicial do PS foi de quase silêncio, compreensível por parte de quem estava comprometido com a negociação e assinatura do memorando de entendimento com a troika. Posteriormente, foi denunciando os custos da “austeridade exagerada” [?] e defendendo a necessidade de uma política de crescimento e de combate ao desemprego, a meu ver não concretizada em propostas concretas.

Aliás, nem vejo como o poderia ser. Não querendo o PS admitir formas radicalmente diferentes de financiamento e estando totalmente dependente do resgate troikiano (e, no futuro, provavelmente aceitando um segundo resgate ou um programa cautelar do MEE e compra de dívida pelo BCE, por OMT) não se vê como pensa o PS financiar essas políticas de crescimento ou de alívio da austeridade a não ser por crença na fada europeia, que acordará depois das eleições alemãs.

A questão central posta pela posição do PS é “como conciliar a proposta de política de crescimento e emprego com austeridade, medidas estruturais e aceitação de metas gravosas?Quem diz “entendam-se, porra!” também deve responder a esta pergunta.

As propostas do PS são a quadratura do círculo. No essencial, o PS, com bastante grau de generalidade e admitindo eu que com alguma (e estou a ser generoso) moderação em relação aos fanáticos troikistas, 1. é a favor do cumprimento do programa de resgate, embora defendendo algum alívio das taxas de juro e das metas de acerto do défice orçamental; 2. é contra a reestruturação da dívida (se incluir rejeição de parte da dívida e “hair cuts”; 3. é radicalmente contra qualquer hipóteses de estudo da possibilidade da saída do euro; 4. defende a renegociação com a troika do plano de “ajustamento” para que as obrigações do resgate (que o PS aceita) sejam menos punitivas em termos de austeridade; 5. da mesma forma, entende que a austeridade deve ser compensada com uma política de crescimento económico e de promoção do emprego.

Estas posições aparecem transparentemente na moção de António José Seguro ao último congresso do PS, “Portugal Primeiro”. O diagnóstico não levanta problemas: o governo está a empobrecer o país, falha previsões e não cumpre as metas [JVC - fosse este o problema!], as principais vítimas são os mais pobres, aumenta o desemprego e há sério risco de pobreza, a fatalidade da emigração, etc. Ataca também o famigerado corte dos 4 mil milhões, só para diminuir o défice para 2,5% em 2014 [JVC - afirmação incorrecta]. Também a caracterização da crise e da sua origem me parece, como leigo, corresponder à opinião séria, não contaminada pela caricatura do “governo que gastou demais”.

No entanto, recordando coisas médicas elementares, um bom diagnóstico só serve para propor uma boa e adequada terapêutica, com meios disponíveis e com medicações coerentes entre si ou que não se anulem em efeitos. Que terapêutica propõe o PS? Todo um mundo de medidas como se não houvesse a austeridade imposta pela troika e o definhamento da economia por retração da procura, causada por essa austeridade. O PS propõe aquilo que sabe ser impossível de cumprir sem antes se fazer o que o PS não quer, a denúncia do memorando e a reestruturação da dívida. Quer sol na eira e chuva no nabal. Não é sério.

O programa económico do PS, credível – em três páginas, há seis referências a “credível” ou “credibilidade” (para quem?) – visa estancar a perda (repare-se na subtileza, não é aumentar) do PIB, defender uma nova política europeia e adoptar uma agenda para o crescimento e emprego. 

O que são as medidas para “estancar a perda de valor (PIB) da economia portuguesa? No essencial, já as referimos: renegociação com a troika “das condições de ajustamento com metas e prazos credíveis”, bem como dos prazos de pagamento de parte da dívida, medidas estruturais [o que são?] que conciliem rigor orçamental com crescimento económico.

O programa, na tradição do PS desde o “Europa connosco” e acompanhando posições europeistas de outro partido que discutiremos noutro "post", desenvolve com pormenor um amplo conjunto de medidas estritamente baseadas na crença da fada europeia, a contra-corrente da falta de solidariedade, neo-imperialismo e hegemonia de direita que se espalhou pela Europa. Parece-me sonhador defender-se – e esperar-se – como o PS um programa europeu de combate ao desemprego jovem, reforço da acção do BCE junto dos mercados financeiros (quando a acção actual já é inaceitável para o Bundesbank), mutualização de parte das dívidas, união bancária (teoricamente já criada), financiamento dos bancos pelo MEEF, convergência fiscal.

Repare-se na última proposta: “aprofundamento da União Económica e Monetária como resposta afirmativa à crise do euro”. É uma típica frase redonda, cujo significado eu bem gostaria de conhecer. A maior parte das propostas são requentadas e contam com a firme oposição da toda-poderosa Alemanha. São apenas uma forma de a social-democracia europeia, “animada” pela eleição do triste Hollande, parecer desmarcar-se. Foi assim que o Pasok tentou governar. Vê-se no que deu, para a Grécia e para o próprio Pasok.

Finalmente, o último dos pilares, o da agenda para o crescimento e emprego: qualificação das pessoas, financiamento das PMEs, redução dos custos de contexto da actividade económica (custos administrativos, custos judiciais, funcionamento da administração), apoio à investigação e desenvolvimento tecnológico, promoção da economia verde e das energias renováveis, promoção das exportações [JVC – também para a Europa em recessão?], captação de investimento estrangeiro.

O mesmo programa repete-se nos cinco grupos de medidas apresentadas no início do ano no parlamento e muito parcamente divulgadas: parar com a austeridade; estabilizar a economia; implementar um programa de emergência para apoiar os desempregados; adoptar uma estratégia realista [?] para diminuição da dívida e do défice; agenda para o crescimento e o emprego.

Sendo repetição da moção ou das dez propostas a que me referirei adiante, relembro só o que é a tal estratégia “realista e credível” [novamente…] em relação à troika e ao resgate: “renegociação a) das condições de ajustamento com metas e prazos credíveis; b) do alargamento dos prazos de pagamento de parte [que parte?] da dívida pública; c) do diferimento do pagamento de juros dos empréstimos obtidos; d) dos juros a pagar pelos empréstimos obtidos; e) reembolso dos lucros obtidos pelo Banco Central Europeu pelas operações de compra de dívida soberana.

Claro que não são más propostas, antipopulares, mas é tudo muito curto, cobertor que não tapa os pés. Hoje quase não há nenhum economista liberal ou conservador que não defenda isto, mesmo os que, inicialmente, alinhavam acriticamente no coro de louvor à troika. E, afinal, até não foi Gaspar, apoiando-se no seu homólogo irlandês, que andou a negociar coisa parecida no Eurogrupo? 

É sonho demais para uma concomitante aceitação, com vagos protestos, do empobrecimento causado pela troika, seguindo a linha dominante da economia política europeia. É uma proposta política com um pé cá e um pé lá, um no cumprimento das “obrigações morais de devedor honesto”, outro numa proposta aparentemente keynesiana. São obviamente incompatíveis. A Fed teve total capacidade de fazer “quantitative easing”, de se apresentar como emprestador de último recurso, de manter as taxas de juro muito baixas, não fazendo do medo da inflação a sua preocupação principal. Será que Seguro consegue ser o Ben Bernanke europeu ou convencer Draghi a sê-lo?

De tudo isto, veja-se só, como exemplo, o aspecto do financiamento da dívida. Segundo o BdP e o Deutsche Bank, Portugal precisa até meados de 2015 de 30 mil milhões de euros para pagar compromissos não anuláveis e para o serviço da dívida. É já considerada irrealista a ida aos mercados. Então, qualquer forma de “ajuda”, nos termos ortodoxos, implica mais austeridade e a recusa de políticas expansionistas (a não ser o fantástico “austeritarismo expansionista”). 
Não esqueçamos também que, para o pensamento ortodoxo que o PS partilha, o pecado original é a dívida. À Reinhard-Rogoff, é a dívida que cria a recessão, não o contrário. Ora a renegociação da dívida nos termos em que o PS propõe aumenta a dívida. Como é que se pode compatibilizar com isto o projecto do PS? Ou o PS, austeristarista brando, não aceita a ortodoxia e o desprestigiado estudo R-R? Como disse acima, não é a quadratura do círculo?

Também é cada vez mais vulgar ouvir-se pessoas do arco troikista falarem como inevitabilidade de segundo resgate, mesmo que disfarçado com um programa OMT do BCE com condicionalidades troikistas.  O El Pais de hoje anuncia-o e ouvi há pouco declarações de um dirigente do PS dizendo que só o PS é que está em condições de gerir esse segundo resgate sem os sacrifícios do primeiro. A mim, tanto se me dá quem me administra o veneno.

Claro que a solução poderia estar numa posição firme do PS a favor de uma renegociação da dívida, uma renegociação diferente – prefiro chamar-lhe reestruturação. A meu ver, firmeza, neste caso, significa várias coisas, em simultâneo: 1. um forte sentimento da independência e da dignidade nacional; 2. a atitude de negociar prioritariamente na perspectiva do devedor e não do credor; 3. negociar indissociavelmente todos os aspectos da dívida – legitimidade, recusa de dívida odiosa, maturidades, juros, montantes e eventuais “hair cuts”; 4. estar preparado para ir tão longe quanto possível e para assumir consequências negativas se elas forem menos nocivas do que a situação actual. Nenhuma declaração do PS permite ter-se confiança em que defenda esta atitude negocial.

Entretanto, o PS vai propondo medidas avulsas que, por causa destas constrições financeiras, se ficam por medidas avulsas de natureza legal ou fiscal. Para além do que já falámos, são exemplo recente as 10 medidas, propostas em 21 de Junho à Assembleia da República e viabilizadas pela maioria [JVC – afinal até pode haver entendimento, mas não à esquerda!], contra a vontade de Gaspar. 

No essencial, são medidas de estímulo à oferta, não à procura: 1. pagamento das dívidas do Estado a horas, se necessário por intermédio de um banco; 2. renovação em 2013 dos seguros de crédito à exportação; 3. investimentos com participação dos cidadãos; 4. equiparação de juros e capital para efeitos fiscais; 5. redução dos impostos sobre lucros reinvestidos; 6. ampliação do tipo de garantias das empresas, para além de caução ou fiança; 7. actualização de juros; 8. sistema de conta-corrente com o fisco; 9. processo especial de revitalização; 10. IVA da restauração a 13%. Por outro lado, não discute a possibilidade de investimento com o que ainda vamos tendo de fundos, do QREN.

Não sou economista, mas duvido de que estas medidas, apoiadas pela maioria, ajudem significativamente à solução da crise. E talvez manifestem uma posição declarada do PS de ir por caminhos enevoados, pronto a “uma alternativa que inclua todos os partidos da esquerda e da direita”.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Os puros e os espúrios (I)

Deve-se fazer incidir o principal esforço à esquerda no estabelecimento de uma unidade que viabilize, a curto prazo, um governo de esquerda, uma verdadeira alternativa às políticas das troikas, interna  e externa? É uma proposta hoje muito consensual (?) mas já escrevi que não me parece ser realista. Esta ilusão pode ser frustrante para o eleitorado descontente mas perplexo e pode ser desmobilizadora para os mais empenhados em outras formas de acção política. Vale a pena reflectir nela.

Principalmente a partir do 25 de Novembro, assistiu-se a uma progressão lenta das posições do capital e a erosão dos instrumentos institucionais de luta dos trabalhadores, com políticas de direita – com apoio socialista – que, apesar de lesivas, não punham em causa, isto é, não anulavam irreversivelmente, muitas conquistas populares, nomeadamente os direitos de trabalho e os fundamentos do estado social.

Por isso, a questão da unidade de esquerda colocava-se de forma diferente de hoje. O PCP e depois o BE, bem como a CGTP, faziam um jogo de gato e rato em que os apelos à unidade podiam servir para evidenciar a recusa do PS a esses apelos, desvalorizando-o como partido de esquerda. Afinal, esperava-se que, a prazo, o PS se fosse desgastando. 

Creio que foi um cálculo errado, porque não era só o PS, partido, que recusava essa unidade. Era também uma grande massa de eleitores, os que já vinham do medo de 75, que não era sensível à ideia de um “PS traidor à esquerda”. Eventualmente, até não dariam o seu voto a um PS aliado à esquerda. Com isto, e com a conquista progressiva da informação e do aparelho ideológico pela direita e pela burguesia, PCP e BE, por mais consequentes que fossem, foram empurrados para o enquistamento e vistos como radicais insensatos por muita gente de camadas populares, os mesmos que foram orientados para verem como “natural” o arco de governo do centrão (ou pântano).

Como disse, tudo isto era relativamente secundário, quase um jogo de propaganda, porque não se passou por crises agudas económico-políticas, a exigir a unidade contra uma direita muito avançada na relação de forças. As contradições estavam longe de ter a profundidade das actuais.

O paradoxo é que hoje, quando a unidade é mais necessária, é que ela é mais difícil e, a meu ver, impossível em tempo útil (em termos eleitorais). 

Até agora, como disse, a falta de unidade não teve consequências de rotura grave da situação social e dos direitos dos trabalhadores e reformados, nem agravou o desemprego a dimensões intoleráveis.

Agora, os apelos à unidade que se lêem diariamente ou comícios sem conteúdo fundamentado, como o da iniciativa de Mário Soares, parecem-me não corresponder minimamente aos problemas centrais que defrontamos. Já não se trata de unidade para programas mais ou menos reformistas ou para aproximações de cedência mútua para medidas sectoriais concretas, no mesmo quadro continuado de governação para a mesma gestão convencional do capitalismo, regulado e controlado nos seus excessos por forças de esquerda.

Pelo contrário, como duas placas movediças, estão a deslizar uma sobre a outra duas movimentações sociais e políticas. A resistência a curto prazo à política neoliberal e à ideologia, levadas ao fanatismo, de destruição do estado social levará à resolução da crise e, porventura, à libertação de Portugal da servidão perante os interesses corporizados no sistema europeu “de facto” (quero dizer, não contando com as intenções piedosas dos pais europeus e de todos os eurofílicos fantasistas de hoje). 

Ao mesmo tempo, por debaixo, mais lentamente, outra corrente de lava alimenta-se destas lutas para uma mudança mais de fundo que tem como objecto as fragilidades da democracia formal reveladas pela crise a mais curto prazo: a falência dos partidos, a impreparação dos dirigentes políticos, a corrupção e o tráfico de influências, a apropriação pelos aparelhos de toda a vida política, o abafamento da cidadania, etc. Uma mudança revolucionária (o que não quer dizer obrigatoriamente violenta) do sistema económico será também uma nova democracia com plena cidadania.

Fico-me agora pelo processo a curto ou médio prazo. Não sou economista, estou sempre a recordar aqui, mas ainda vou até onde deve ir hoje qualquer político interessado. Creio que uma das principais características da economia actual, em boa parte devido à crise, é a negação prática da ideia de que a economia é uma ciência pouco vulnerável à sua conquista e formatação pela ideologia. Com extremos, a meio caminho dos quais é difícil estar-se.

Escrevi que não se pode estar meia grávida. Pelo que vou vendo, e passe algum exagero ou simplificação, também me parece que é impossível, teórica ou praticamente, conciliar-se ou ter-se uma posição a meio caminho entre opostos fundamentais como a ideia de que o crescimento é movido pela procura ou é pela oferta; entre a política keynesiana e a monetarista ou ordoliberal, com relação com o neoliberalismo; entre a esperança na austeridade expansionista ou a opinião de que a austeridade leva a espiral recessiva; entre a crítica do euro e o reconhecimento da falta de condições de zona monetária óptima e, por outro lado, a mitificação do euro e do federalismo europeu com rejeição catastrofista da saída do euro; entre o privilégio à perspectiva dos devedores numa reestruturação da dívida e à perspectiva dos credores; etc.

O eleitor comum não sabe escolher entre estas alternativas mas sabe algumas perguntas “de bom senso” que lhe andam a sugerir: o governo tem dinheiro para pagar salários e pensões? Quando acabar o empréstimo da troika, como vamos pagar a dívida? Se os juros forem altos demais, se quisermos pedir algum alívio, não estamos sempre nas mãos da Alemanha e da UE? Se sairmos do euro e desvalorizarmos a moeda, não vamos perder pela subida dos preços e por termos de pagar a dívida em euros? Sair do euro, significando sair da UE, não vai deixar desprotegidos os nossos emigrantes na Europa?

Muitas destas perguntas já vêm com resposta falsa. Outras partem de falsos pressupostos. No entanto, por muito que machucadas pelos opinadores de serviço, parece-me possível discutir alguns aspectos essenciais da economia política de hoje, a dominar a crise actual. É na concordância ou não destes pontos essenciais em debate – como formulei acima e repito – que se afere da viabilidade de um programa comum. O problema seguinte é o da consistência do programa e da forma como essa consistência se traduz numa mensagem simples, clara e mobilizadora do eleitorado.

1. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre o motor do crescimento? É principalmente a procura, por  poder de compra dos consumidores e, logo, alto nível de emprego, ou é a oferta, por incentivos às empresas, muitas vezes perdidos porque a produção não se escoa, principalmente na situação de deflação a que nos arriscamos?

2. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre o balanço relativo e eficácia de políticas a favor da redução de importações ou, por outro lado, do aumento de exportações (tendo em conta, neste caso, as constrições postas pela recessão nos nossos parceiros tradicionais)? Estão de acordo em relação à necessidade ou não de alteração ou diversificação das nossas relações económicas internacionais?

3. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre a ideia que deve ser transmitida, usando a “economia moral” dos adversários, de que os nossos défices são o excedente de outros, que o nosso endividamento é o crédito de outros? Que o diferencial entre o custo dos juros pagos pela nossa banca à banca do centro e dos juros pagos pelo Estado à banca, facultando lucros gigantescos em todas as décadas de 90 e 2000, facilitou a dívida soberana?

4. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre qual o modelo económico (que julgo serem antagónicos) adequado e experimentado historicamente para resolução da crise financeira, espiral recessiva, risco de depressão, desemprego – keynesianismo? monetarismo (também dito, como variantes, ordoliberalismo, neoliberalismo)? 

5. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre a forma, viabilidade e custo de angariar financiamento alternativo ao da troika?

6. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre o peso do estado na economia e sobre o grau de imperiosidade de defender o estado social?

7. PS, PCP e BE têm posição concordante sobre a probabilidade – e estudar tecnicamente com profundidade e rigor – de a via austeritária que nos está a ser imposta ter consequências mais gravosas do que medidas drásticas de recusa, como a reestruração da dívida, com ou sem saída do euro?

8. PS, PCP e BE têm posições concordantes sobre a viabilidade de uma mudança dos dogmas de política económica da prática totalidade dos países europeus e da burocracia das instituições, com realce para a CE e o BCE? Estão de acordo na crença de uma mudança de atitude europeia, nesta relação de forças, em que o campo de direita absorve mesmo a social-democracia? Acreditam todos no projecto federalista?

Ou há resposta lúcida para tudo isto, no domínio da objectividade política, ou a indignação com a falta de unidade, as manifestações de “entendam-se, porra!” são demagogia, subjectividade e uso de “argumentos morais” por quem é politicamente, e experimentado, tudo menos anjo de moral. Quem se limita a clamar pela unidade, por vezes com a arrogância de que todos são moles ou inconsequentes, tem de mostrar que a falta de unidade é só uma birra e não a incompatibilidade de posições políticas claramente opostas

E nem é um caso à Brest-Litovsk, uma cedência para se conseguir o essencial. Ceder na resistência à política das troikas, interna e externa, é correr o risco de perder não uma batalha mas a guerra.

Os do "entendam-se!" devem também tomar posição política, dá-la a conhecer, criticar as propostas partidárias, em concreto, não se refugiando atrás de uma mera “proclamação moral”. E, como já disse aqui, é curioso que esses apelos veementes até possam vir de pessoas que quebram com espavento ligações partidárias, com declarações agressivas entre companheiros de luta, mesmo que com discordâncias legítimas, ou até por motivos fúteis e ridículos, como a história de quem foi o quarto fundador do BE. Fico por vezes a pensar, lembrando-me de alguma ética dos meus tempos, se não há mais coisas por detrás.

Quanto aos partidos de esquerda, têm o dever perante o povo português de mostrarem transparentemente o que são as suas propostas para solucionar a crise, no âmbito de uma política de esquerda, patriótica e sem submissão aos poderes da nova hegemonia imperialista intra-europeia, com centro em Berlim. Ao mesmo tempo, devem declarar-se sinceramente disponíveis para o debate dessas propostas (também com movimentos e organizações sociais). Debater não obriga a mais .

Depois, das duas uma. Ou há base suficiente para uma candidatura alargada em novas legislativas (digo-o por absurdo) ou não, avaliando-se depois se há condições para graus variáveis de convergência pós-eleitoral. Este caso é provavelmente desmotivador mas ganha em transparência.

Este texto vai longo e fico hoje por aqui. Continuarei com a exposição, porventura desconhecida de muitos, das posições formais dos partidos de esquerda e de alguns dos mais significativos movimentos dos últimos tempos

terça-feira, 2 de julho de 2013

Manicómio ou clube de idiotas?

Escrevi ontem na minha página do Facebook:
“A política em Portugal está num manicómio? Passos Coelho (provavelmente com espírito santo de orelha de Gaspar e anuência da troika) não hesita em correr o risco de nomear Maria Luís Albuquerque, afundada até ao pescoço, pelo menos na opinião pública, no caso das swaps, directamente da sua responsabilidade pessoal no caso da REFER.Passos Coelho está assim tão toldado pela sua fé cega e fanática no monetarismo-neoliberalismo-austeritarismo-feudogermanismo-etc?”
É claro que a interrogativa a enfeitar a última afirmação era figura de estilo, porque não me parece haver dúvida de que Passos Coelho está mesmo preso. Confesso é que não me passava pela cabeça o desenvolvimento do caso, com a demissão de Portas. Passos Coelho está preso da sua fé fanática, de quem não a sabe criticar, mas também, antes, preso pela sua impreparação, inexperiência de vida, vulgaridade (se calhar é favor) mental e cultural. Como coelho, o vivaço Bugsbunny era muito mais esperto.

A saída de Gaspar, com confissão na carta de despedida de que havia divisões no governo, identificáveis com Portas, podia ser útil a este, num cenário pré-eleitoral em que o CDS começasse por se distanciar.  Foi mais longe e provocou o que me parece certo, a quebra da coligação e eleições antecipadas. Talvez lhe cheire a um namoro ao PS, a ficar mais difícil com o arrastar da coligação. Este momento aparentemente anti-Gaspar torna o DCS mais "respeitável", julgam eles. A nomeação de Maria Luís Albuquerque veio mesmo a calhar para comparar o tonto do primeiro ministro com o traquejado político Portas.

No entanto, talvez as coisas não sejam assim tão transparentes. Desde logo, alguém mente, como se tem mentido nestes últimos dias sobre as "swaps" (o governo foi ou não informado por Teixeira dos Santos?). Portas diz preto no branco que discorda da nomeação da nova ministra e que Passos Coelho não soube ir além da mera continuidade. Passos Coelho emitiu um comunicado a desmentir, dizendo até que Portas tinha ontem sugerido nomes para secretários de estado da nova ministra. Passos Coelho é tonto mas, em matéria de psicopatia do deleite com a mentira, Portas é caso bem conhecido de há muito. De qualquer forma, não ponho as mãos no fogo por nenhum deles.

Patética é também a posição dessa triste figura que é o presidente (não o faço, mas agora, por decisão da PGR, já se pode apodá-lo de palhaço). Ainda hoje, já conhecedor do caso Portas, voltou a distanciar-se da crise política, apoiando indirectamente o governo em farrapos ao  afirmar que só o parlamento é que deve resolver a situação. Então é isto tudo o que um presidente, que nomeou o governo, tem a dizer quando se demitem os dois ministros de estado?

Também não deixa de ser caricato que, nesta situação, tome posse a ministra. No entanto, é preciso atender-se a que a formação de um novo governo após eleições demora algum tempo e a situação financeira exige um mínimo de direcção, mesmo que de gestão corrente.

Em resumo: primeiro, ou muito me engano ou vamos para eleições; segundo, a meu ver nada disto estaria a passar-se sem tudo o que foi a força na rua, nomeadamente a vitória dos professores sobre Crato, o que fragilizou Gaspar de forma irremediável perante os seus patrões da troika.