sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O talibã da educação (II)

Na última entrada, disse que escreveria alguma coisa sobre o ministro Crato, o tal que só ganhou "autoridade pública" por ter protagonizado umas das personagens, televisivas, de uma célebre fábula. Afinal, até já tinha escrito, sem publicar, a propósito de um artigo sobre ele, no Público. Deixei de assinar o Público, “jornal de referência”, em descida acelerada para pasquim. Por isto, não li esse artigo do Público, referido pelo Jugular, que reproduz, no essencial, um comunicado do MEC.

Lá vem o “eduquês”, uma alusão lançada com infeliz boa intenção por Marçal Grilo, mas depois aproveitada por talibãs fundamentalistas da transposição freudiana para hoje da educação que sofreram, como Nuno Crato e o seu companheiro de lides Guilherme Valente. O que é preciso é tabuada, encornanço, escrever 100 vezes no caderno. Faz lembrar a velha coisa dos pais violentos, “se o meu pai me bateu só me fez bem e me educou, agora devo fazer o mesmo aos filhos”. Horroroso!

É claro que se escreveu e se fez muita asneira com base no construtivismo pedagógico, em Piaget mal lido, também em muito mais de cientificamente muito sólido. Mas estes talibãs são ideólogos sem rigor científico, misturam tudo, como caricatura, posições patetas de esquerdistas (a propósito, por que setores políticos andou Crato quando estudante?!) e ideias cientificamente sólidas de pedagogos como António Nóvoa, que Crato critica abundantemente no seu livro, com citações fora do contexto.

Crato é um estimável professor universitário, embora sem grande destaque. Popularizou-se, com mérito, como divulgador de ciência, em crónicas de meia dúzia de parágrafos no Expresso. Depois, com muito menos mérito, como rapaz comentador-topa-a-tudo a amparar o velho Medina Carreira mais o tal outro da lenda, Mário Crespo. Mais tarde, incompreensivelmente, é presidente do Tagus Parque, coisa sobre que a sua honestidade mental lhe devia ter dito que ele não tinha a mínima qualificação para o lugar. Depois ministro absurdamente venerado, até, inicialmente, pelo mandarim do nosso sindicalismo de professores (tudo valia para malhar na ministra M. Lurdes Rodrigues).

E afirma com leviandade a sua certeza: os nossos jovens não sabem tabuada, não sabem gramática e escrevem erros de palmatória. Não sei se é o caso dele, mas não é o meu, que só vou exemplificar, por questão de datamento, no meu filho mais novo. Sr. ministro, ele aprendeu tabuada e sabe de cor quantos são 9x7, até é muito bom em cálculo mental. Fazia ditados diários e hoje escreve sem erros. Não sabe português? Ao contrário do que se calhar se passava consigo com os seus pais, discute comigo porque é que gosta mais de Pessoa e eu de Cesário, como eu contrapunha ao meu avô, em horas de discussão às vezes tensas (o homem era duro de roer, eu também se calhar) o seu adorado Camilo com o meu Eça. E hoje, os seus filhos conversam assim consigo? Espero que sim.

E nunca ninguém pôs no lugar o arrogante Crato, sem medo daquele ar superior e convencido que arvora, de sobrancelha olímpica? Sim. Desculpem a imodéstia, mas eu escrevi em devido tempo. Denunciei a mediocridade do seu livro “Eduquês em discurso directo”, (Gradiva ISBN 989-616-094-5). Dei muitos exemplos da desonestidade intelectual do livro. Chamei a atenção para o homem legitimamente preocupado com um tema circunscrito mas que o queria envolver em discurso ignorante de filosofia política, com erros crassos sobre o pensamento de Gramsci (compreender o genial Gramsci não é para qualquer um!) ou com estereotipos simples sobre Lenine ou, com alguma razão mas só de slogan, sobre Estaline. 

E a que propósito Crato se preocupa tanto com essa discussão dos marxistas ou “marxistas”? Catarse, penitência do passado? A célebre boutade de Brandt era de que um bom social-democrata devia ter sido comunista na juventude. Já passou. Hoje, mostra a experiência que um bom direitista retinto deve ter sido um fanático esquerdista na juventude. Que o diga Durão Barroso.

Também combati frontalmente o seu artigo sobre o “bolonhês” [Crato, Nuno (2009). "Ficamo-nos pelo 'Bolonhês'?". Ensino Superior, 31:9-13], tentativa tosca e sem bases de fundamentação de transpor para uma geração etariamente mais avançada (a dos estudantes universitários) a sua obsessão contra o cuidado com a formação de competências nas crianças e adolescentes, menos importante para ele do que a simples acumulação de informação perecível. Olhe, Sr. ministro, por ventura ou azar de ter um avô professor de latim, tive com eles aulas semanais de latim, porque, senão, segundo ele, nunca falaria bom português. Porque é que não faz um exercício desses e, daqui a uns tempos, me demonstra que sabe todo o rosa-rosae, todos os casos em todas as declinações? Hoje, confesso que me dá gozo saber ler uma estela romana. Mas o que paguei para isso? Justifica-se, só para, segundo a sua ideologia, "disciplinar" o aluno, vergar a coluna vertebral da aprendizagem?

Mas também lhe reconheço a coerência de ser ministro. É verdade que Passos Coelho dificilmente teria encontrado outro ministro tão pronto a desfazer a escola pública e a sua evolução pós-revolucionária. Este é um governo de fanáticos, ultra-ortodoxos. Na sua área, Crato não destoa de Gaspar.

Já que falei do seu dileto companheiro talibã, Guilherme Valente (GV), sem desprimor para as boas publicações da Gradiva, vem-me à memória uma história pitoresca. Creio que em 2001, acabado de escrever o meu livro “A universidade no seu labirinto”, mandei-o a GV. Conversámos e ele explicou-me que não o editava, porque ninguém queria saber do ensino superior, que já tinha muitos monos, entre os quais um sobre a reforma da universidade de que até me ofereceu um exemplar, que li com simpatia, embora considerando que era coisa bem intencionada mas fraquinha. O meu livro foi depois editado pela Caminho, com bastante sucesso e está largamente esgotado, nem eu já tendo exemplares para oferta. O tal mono era um livrinho de João Queiró, hoje Secretário de Estado de Crato. As voltas que o mundo dá!

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