quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Sempre que um homem sonha...

Poucas vezes participei com tanta satisfação num desfile académico a preceder uma cerimónia tão marcante como ontem. Para além de convidados como eu, eram muitos os doutores, todos misturados, da Universidade de Lisboa (UL) e da Universidade de Lisboa (UTL). De facto, desde há dias, não se pode dizer com rigor “misturados”, porque são todos professores da nova UL, criada por fusão das duas universidades centenárias de Lisboa, fusão por elas proposta ao governo.

Da parte de António Nóvoa, reitor da UL, sabia eu desde há alguns anos que era um seu velho sonho. Por isto, ainda ontem me perguntou “continuas a pensar que era uma loucura?”. Primeira coisa que devo corrigir: se alguma vez disse que era loucura sua, era no sentido de eu achar ser coisa extremamente improvável, que lhe iria causar grande desgaste. Mas loucura no sentido vulgar do termo, nunca achei. É com loucuras destas que se fazem grandes coisas.

Achar que era improvável não era por razões técnicas ou organizacionais, que são indiscutíveis – não há entre as duas antigas universidades qualquer sobreposição ou redundância a resolver, são absolutamente complementares, um casamento perfeito. Pensei foi nos entraves corporativos, nas razões de mentalidade.

A autonomia dos universitários (o que não é exactamente o mesmo que a autonomia universitária) favorece a criatividade e a responsabilidade intelectual, mas tem como consequência tradicional o enquistamento em capelinhas, as rivalidades mesquinhas, a reduzida amplitude da visão institucional.

Foi o que aconteceu, inicialmente, com muitas resistências de várias escolas, de uma e outra universidade. Mas a persistência e capacidade de convencimento dos dois reitores, convictos da razão que tinham, acabaram por dar por vencedora a tal “loucura”.

António Nóvoa e António Cruz Serra ganharam lugar destacado na história da universidade portuguesa.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Velhos e novos fascistas?

José Manuel Correia Pinto, no seu imperdível Politeia, cunhou hoje um novo termo para Gaspares e canalhada: novos fascistas. Pode parecer um chavão, mas JMCP nunca escreve nada sem grande rigor conceptual e histórico.
Em poucas palavras é este, para começar, o projecto que o FMI tentará pôr em prática em Portugal para “refundar o Estado”. Mas o ataque neoliberal não se fica por aqui. É preciso também destruir o Estado de direito nalgumas das manifestações mais eminentes dos princípios que dele decorrem. É neste sentido que devem ser interpretadas as intervenções dos “novos fascistas” (terminologia que doravante utilizaremos para caracterizar os corifeus deste ataque bem como os seus apaniguados e que um dia tentaremos fundamentar teoricamente para que o termo não pareça uma simples aberração retórica) contra a Constituição, relativamente a questões que nada tem a ver com o Estado social, nomeadamente a propósito da eventual ou hipotética declaração de inconstitucionalidade de normas orçamentais.

Meu caro, não sei bem se partilharei contigo o uso deste apodo "novos fascistas". É verdade que estamos em presença de uma nova direita (ou, porque não, de uma nova extrema-direita?), qualitativamente diferente daquelas que temos visto nas últimas décadas, incluindo o CDS. E até todos os boys Goldman-Sachs têm ido é para o PSD, muito mais albergue espanhol do que o CDS, honra valha a este.

São os prosélitos fanáticos de uma religião que faz cerimónia-mor em Davos, enquanto manobra diariamente nas sacristias dos bancos e nas cúrias episcopais das burocracias financeiras internacionais e manda missionários estilo meninos de Deus nas troikas que nos invadem.

Não há dúvida de que tens razão em caracterizá-los teoricamente como (novos) fascistas. Têm uma ideologia totalitária, desprezo pelas normas básicas da democracia e da "ética republicana", culto do poder (antes militar, hoje económico), total subvalorização de um povo concreto em relação a um "ente social" abstrato portador de um destino histórico (neste caso, agora, uma camada superior de grandes do capital financeiro, seguida de uma camada de tecnocratas serventuários que eles próprios personificam). Já não encenam o domínio das massas mas fazem-no de forma subtil, manipulando a opinião pública. E servem-se desta manipulação para que lhes dêem aceitação para a destruição do estado de direito. O recuo revolucionário de 25 de Novembro foi uma brincadeira comparado com isto.

Em termos de referências nacionais, não me parece haver dúvidas de que esta gente se encaixaria de alma e coração no salazarismo. Simplesmente, isto remete-nos para uma velha questão teórica: o salazarismo foi uma forma de fascismo? Em termos de uma reflexão marxista sobre as relações de poder e de classes nos fascismos mais espectacularmente típicos e brutais, mas também de muitas outras ditaduras de direita na Europa dos anos 30, julgo que sim, talvez na versão de Graciliano, "o nosso pequenino fascismo tupinmambá". Valem menos, para mim, como caracterizadores, os aspectos operáticos.

Mas como os historiadores modernos, mesmo os de esquerda, para não falar de Rui Ramos, Filipe Ribeiro Menezes e outros revisionistas, fazem guerra em "desconfundir" salazarismo e fascismo, com algum sucesso, acho que não devemos dar cera para tão ruim defunto.

Lembrei-me de que toda a gente que perfilha uma ideologia socialista é apodado de socialista. A identificação é ideológica e política. Pelo contrário, e os nossos clássicos têm alguma culpa, o termo capitalista refere-se à propriedade e à classe, sem conotação ideológica imediata. Já é tempo de acabar isto, até porque a figura típica do capitalista individual já se diluiu até certo ponto. E, com esta crise, adquiriu conotações negativas.

Portanto, capitalista tanto deve servir para designar o detentor de capital como o que defende o capitalismo como a ordem social que deseja e em que não consegue deixar de ver o mundo e a sociedade (deles). Claro que há muitos graus. Assim, para Gaspares, Moedas, Borges, Barrosos, só para dar exemplo de lusofalantes, proponho "ultracapitalistas". Fica de fora Passos Coelho, noutra categoria, a dos "tontocapitalistas".

domingo, 6 de janeiro de 2013

A língua portuguesa

Para desanuviar, e depois da minha entrada sobre o acordo ortográfico, aqui vai uma brincadeira (lamento não conseguir identificar o autor):

sábado, 5 de janeiro de 2013

Aprender com a América latina

Recebi este texto do meu amigo JLSC. É um artigo do Público (espanhol). Creio que merece divulgação, sem comentários.

 * * *

Presidente RAFAEL CORREA  do Equador a descrever em Sevilha a Crise Espanhola (e a Crise Portuguesa) falando do Equador

DEZEMBRO 3, 2012 - 10:28PM | POR BONIFACIO CAÑIBANO

Rafael Correa chegou ontem à tarde à Universidade Pablo de Olavide, em Sevilha, onde era aguardado por uma multidão de pessoas. Veio explicar como tinha o Equador saído da crise da sua dívida ou, como ele próprio chamou, da «longa noite neoliberal» na qual afundaram o país na década de noventa: a ação conjunta de banqueiros insaciáveis, políticos corruptos e governos cegamente obedientes às medidas desreguladoras do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Parecia estar a descrever o que se está a passar em Espanha e no Sul da Europa, porque o processo era quase uma fotocópia do seguido aqui, de tal modo que, para não provocar conflitos diplomáticos, avisou no início da conferência que «não vinha dar conselhos ao governo espanhol sobre a forma de sair da crise, mas sim descrever o que tinha acontecido no país dele».

A sala onde decorreu a conferência estava a abarrotar de estudantes e havia mais três salas onde se seguia a sua intervenção por videoconferência. Mesmo assim, não era suficiente. Fora, no campus, um numeroso grupo de estudantes que tinham ficado sem lugar gritava durante metade da conferência: «Que saia Correa!»

O presidente do Equador situou a origem dos problemas económicos do seu país na década de setenta, em pleno boom do petróleo. Nessa altura, o Equador crescia a um ritmo de 10 por cento, superior ao que a China apresenta atualmente. Então, quando houve excesso de liquidez, começaram a aparecer em Quito os burocratas do FMI, do BM e da banca internacional, predicando o endividamento agressivo. O país começou a comprar compulsivamente no estrangeiro todo o tipo de coisas, entre as quais, obviamente, pacotes de armamento caríssimos.

Em 1982, o Equador já não conseguiu pagar a dívida e a situação explodiu. Naquela altura, disse Correa,«entrou em funcionamento a lógica financeira do FMI, que dá a prioridade ao pagamento da dívida, acima de tudo». Os sucessivos governos equatorianos sentiram a necessidade de endividar-se uma e outra vez para poder pagar os cada vez mais altos juros de uma dívida que continuava a crescer. «O objetivo da economia passou a ser o pagamento das dívidas do próprio Estado e dos bancos, enquanto a população empobrecia cada vez mais», acrescentou, levando os estudantes a aplaudir entusiasticamente. «O círculo infernal em que se encontram atualmente Grécia e Portugal» – afirmou Correa, que, por respeito ao país anfitrião, não incluiu a Espanha nesta referência.

No Equador, sustentou o Presidente, «a dívida privada interna (a dos bancos) foi paga à base de empréstimos externos, mas à custa do endividamento do Estado». Também desta vez não referiu Espanha, mas lembrou que dois anos antes, numa visita a Portugal, tinha avisado o governo português do risco de acontecer o mesmo no país vizinho. Augúrio cumprido.
O passo que o Equador deu em seguida também é bem conhecido nestas latitudes: «Foi o das privatizações, desregulações e cortes sociais, ditados pelo consenso de Washington, a Bíblia do neoliberalismo para a América Latina». (Algo semelhante ao que ditam atualmente Berlim ou Bruxelas). «Impuseram-nos leis», disse o Presidente, «que, diziam eles, impulsionavam a competitividade e a flexibilidade no trabalho, que é o mesmo que explorar os trabalhadores», esclareceu a uns estudantes cujos aplausos e entusiasmo continuavam a aumentar. «Demonizavam a despesa pública quando era para pagar aos professores, mas não quando era para comprar armas», voltou a esclarecer.

Foi nesta conjuntura que o Equador entrou no ano 2000, no qual 16 bancos foram à falência. «Então, os políticos, que não representavam os cidadãos mas sim os poderes económicos, tudo fizeram para que a crise fosse paga pelo povo», referiu, tendo todo o cuidado para não mencionar em momento algum a Espanha, enquanto as quatro salas aplaudiam com grande alvoroço. Correa explicou que, pouco antes da falência, o governo em funções criou um Fundo de Garantia de Depósitos, que não teria sido uma má ideia se o objetivo não tivesse sido o de cobrir as perdas das entidades financeiras que faliram imediatamente depois. “Desta forma, as perdas da banca foram socializadas”. O presidente equatoriano manteve-se firme na decisão de não fazer comparações com a Espanha.

O «quintalinho» equatoriano recebeu o nome de encautamiento de depósitos (cativação de depósitos), que se traduz na proibição governamental de os cidadãos utilizarem o dinheiro que tinham no banco. Depois chegou a dolarização, os suicídios – «chegamos a conhecer um novo fenómeno, o suicídio infantil» – e a emigração de milhões de equatorianos (alguns dos quais presentes na conferência).

Correa criticou abertamente a independência do Banco Central Europeu, «que não está a fazer o necessário para que a Europa saia da crise». «A ideia de que a economia não é política não resiste a uma análise séria e torna-se uma estupidez argumentar que os tecnocratas que a dirigem tomam decisões sem interesses políticos concretos, como se fossem seres celestiais que não estão contaminados pela maldade terrena». Nesta altura o público estava rendido. Depois, dirigindo-se aos estudantes, disse: «Quando a burocracia financeira internacional toma decisões, não está a pensar em solucionar o vosso desemprego, está a pensar no pagamento da dívida». E disse-o com a elegância de colocar como sujeito dessa ação a burocracia internacional... não os políticos locais.

Foi mais direto ao evocar um cartaz que tinha visto em Sevilha nessa manhã e que dizia «Gente sem casas e casas sem gente». «Se seguirmos a lógica dos poderes financeiros vamos chegar ao pior dos mundos possíveis, no qual as pessoas não terão casas e os bancos terão casas de que não precisam». Os despejos são inumanos, disse, e «não tem lógica que uma pessoa que entrega a casa, por não a conseguir pagar, fique endividado para sempre». O presidente explicou que, quando chegou ao governo em 2007, implementou de imediato diversas medidas: eliminou a hegemonia do seu banco central, auditou e reestruturou a dívida, eliminando o embuste da «dívida ilegítima» e recuperando títulos de dívida a 35 por cento do seu valor nominal. Depois pagou o resto, «para se livrar do condicionamento do FMI, como haviam feito o Brasil e a Venezuela». Correa terminou lembrando que «expulsei de Quito a missão do Banco Mundial e há seis anos que a burocracia financeira internacional não voltou ao meu país.  Agora estamos melhor do que nunca».

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

O talibã da educação (II)

Na última entrada, disse que escreveria alguma coisa sobre o ministro Crato, o tal que só ganhou "autoridade pública" por ter protagonizado umas das personagens, televisivas, de uma célebre fábula. Afinal, até já tinha escrito, sem publicar, a propósito de um artigo sobre ele, no Público. Deixei de assinar o Público, “jornal de referência”, em descida acelerada para pasquim. Por isto, não li esse artigo do Público, referido pelo Jugular, que reproduz, no essencial, um comunicado do MEC.

Lá vem o “eduquês”, uma alusão lançada com infeliz boa intenção por Marçal Grilo, mas depois aproveitada por talibãs fundamentalistas da transposição freudiana para hoje da educação que sofreram, como Nuno Crato e o seu companheiro de lides Guilherme Valente. O que é preciso é tabuada, encornanço, escrever 100 vezes no caderno. Faz lembrar a velha coisa dos pais violentos, “se o meu pai me bateu só me fez bem e me educou, agora devo fazer o mesmo aos filhos”. Horroroso!

É claro que se escreveu e se fez muita asneira com base no construtivismo pedagógico, em Piaget mal lido, também em muito mais de cientificamente muito sólido. Mas estes talibãs são ideólogos sem rigor científico, misturam tudo, como caricatura, posições patetas de esquerdistas (a propósito, por que setores políticos andou Crato quando estudante?!) e ideias cientificamente sólidas de pedagogos como António Nóvoa, que Crato critica abundantemente no seu livro, com citações fora do contexto.

Crato é um estimável professor universitário, embora sem grande destaque. Popularizou-se, com mérito, como divulgador de ciência, em crónicas de meia dúzia de parágrafos no Expresso. Depois, com muito menos mérito, como rapaz comentador-topa-a-tudo a amparar o velho Medina Carreira mais o tal outro da lenda, Mário Crespo. Mais tarde, incompreensivelmente, é presidente do Tagus Parque, coisa sobre que a sua honestidade mental lhe devia ter dito que ele não tinha a mínima qualificação para o lugar. Depois ministro absurdamente venerado, até, inicialmente, pelo mandarim do nosso sindicalismo de professores (tudo valia para malhar na ministra M. Lurdes Rodrigues).

E afirma com leviandade a sua certeza: os nossos jovens não sabem tabuada, não sabem gramática e escrevem erros de palmatória. Não sei se é o caso dele, mas não é o meu, que só vou exemplificar, por questão de datamento, no meu filho mais novo. Sr. ministro, ele aprendeu tabuada e sabe de cor quantos são 9x7, até é muito bom em cálculo mental. Fazia ditados diários e hoje escreve sem erros. Não sabe português? Ao contrário do que se calhar se passava consigo com os seus pais, discute comigo porque é que gosta mais de Pessoa e eu de Cesário, como eu contrapunha ao meu avô, em horas de discussão às vezes tensas (o homem era duro de roer, eu também se calhar) o seu adorado Camilo com o meu Eça. E hoje, os seus filhos conversam assim consigo? Espero que sim.

E nunca ninguém pôs no lugar o arrogante Crato, sem medo daquele ar superior e convencido que arvora, de sobrancelha olímpica? Sim. Desculpem a imodéstia, mas eu escrevi em devido tempo. Denunciei a mediocridade do seu livro “Eduquês em discurso directo”, (Gradiva ISBN 989-616-094-5). Dei muitos exemplos da desonestidade intelectual do livro. Chamei a atenção para o homem legitimamente preocupado com um tema circunscrito mas que o queria envolver em discurso ignorante de filosofia política, com erros crassos sobre o pensamento de Gramsci (compreender o genial Gramsci não é para qualquer um!) ou com estereotipos simples sobre Lenine ou, com alguma razão mas só de slogan, sobre Estaline. 

E a que propósito Crato se preocupa tanto com essa discussão dos marxistas ou “marxistas”? Catarse, penitência do passado? A célebre boutade de Brandt era de que um bom social-democrata devia ter sido comunista na juventude. Já passou. Hoje, mostra a experiência que um bom direitista retinto deve ter sido um fanático esquerdista na juventude. Que o diga Durão Barroso.

Também combati frontalmente o seu artigo sobre o “bolonhês” [Crato, Nuno (2009). "Ficamo-nos pelo 'Bolonhês'?". Ensino Superior, 31:9-13], tentativa tosca e sem bases de fundamentação de transpor para uma geração etariamente mais avançada (a dos estudantes universitários) a sua obsessão contra o cuidado com a formação de competências nas crianças e adolescentes, menos importante para ele do que a simples acumulação de informação perecível. Olhe, Sr. ministro, por ventura ou azar de ter um avô professor de latim, tive com eles aulas semanais de latim, porque, senão, segundo ele, nunca falaria bom português. Porque é que não faz um exercício desses e, daqui a uns tempos, me demonstra que sabe todo o rosa-rosae, todos os casos em todas as declinações? Hoje, confesso que me dá gozo saber ler uma estela romana. Mas o que paguei para isso? Justifica-se, só para, segundo a sua ideologia, "disciplinar" o aluno, vergar a coluna vertebral da aprendizagem?

Mas também lhe reconheço a coerência de ser ministro. É verdade que Passos Coelho dificilmente teria encontrado outro ministro tão pronto a desfazer a escola pública e a sua evolução pós-revolucionária. Este é um governo de fanáticos, ultra-ortodoxos. Na sua área, Crato não destoa de Gaspar.

Já que falei do seu dileto companheiro talibã, Guilherme Valente (GV), sem desprimor para as boas publicações da Gradiva, vem-me à memória uma história pitoresca. Creio que em 2001, acabado de escrever o meu livro “A universidade no seu labirinto”, mandei-o a GV. Conversámos e ele explicou-me que não o editava, porque ninguém queria saber do ensino superior, que já tinha muitos monos, entre os quais um sobre a reforma da universidade de que até me ofereceu um exemplar, que li com simpatia, embora considerando que era coisa bem intencionada mas fraquinha. O meu livro foi depois editado pela Caminho, com bastante sucesso e está largamente esgotado, nem eu já tendo exemplares para oferta. O tal mono era um livrinho de João Queiró, hoje Secretário de Estado de Crato. As voltas que o mundo dá!

O talibã da educação (I)

Chegou-me uma carta escrita ao ministro Crato por três colegas muito estimados: Carlos Salema, ex-presidente da JNICT numa altura crítica, a do Programa Ciência, e fundador e primeiro presidente da Fundação para a Computação Científica Nacional (FCCN); Luís Magalhães, que conheci ainda a fazer o seu excelente doutoramento no meu IGC, depois também presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT),  e mais recentemente, presidente da Agência para a sociedade do conhecimento (UMIC); João Sentieiro, penúltimo presidente da FCT, recentemente substituído pelo atual ministro.

Para quem não sabe, a FCCN é a Meo ou Zon das universidades. Faculta-lhes, a preços baixos, a ligação à internet, para além de outros recursos. Já imaginaram uma universidade sem ligação à net? É mais do que provável – embora eu não tenha dados certos – de que as nossas instituições de ensino e de investigação e, indiretamente os seus membros como eu, não conseguiriam assegurar orçamentalmente o seu tráfego informático (internet, correio, nuvens, teleconferência, e-learning, etc.) se ficassem dependentes dos fornecedores comercias de serviços de ligação de rede. Ainda por cima, sem que ninguém se queixe, a FCCN é invisível, limita-se a funcionar muito bem, o que é melhor que se pode dizer de um fornecedor de serviços – que fique esquecido. Digamos que a FCCN é a PT universitária.

A FCT é uma instituição completamente diferente, de âmbito muito vasto. Para além de estudos e constituição de bases de dados sobre o sistema científico nacional, é essencialmente a principal entidade financiadora – a nível nacional – da investigação: financiamento de base de unidades de investigação, financiamento de projetos, concessão de bolsas, contratos de investigação, etc. Por isto, na lista da independência do financiamento do Estado, está no fim do campeonato. Até lhe cabe gerir, obviamente como encargo do Estado, a comparticipação nacional nos projetos internacionais. Digamos que a FCT é o banco da universidade, no que respeita à ciência.

Não sei se há melhor figura institucional para a FCCN e para a FCT do que fundações públicas. Certo sem dúvidas é que não podem ser organismos normais da administração pública, como nem uma universidade ou um hospital ou um teatro de ópera ou uma rádio-televisão podem ser. A uniformidade esquemática da administração pública é uma herança de Salazar nem sempre recordada e discutida.

Na sua fúria cega e igualizante contra as fundações (claro que há de tudo, mas a ver uma a uma), o governo decidiu fundir ambas as fundações, FCCN e FCT. Não tenho aqui lugar nem vagar para discutir em pormenor tal asneira. Os argumentos estão muito bem apresentados pelos meus três colegas num artigo resumido, no Público, mas só para assinantes (não sei se o conseguem ler no Facebook de João Sentieiro), e no texto completo da carta que enviaram ao ministro. Só digo que é coisa tão absurdamente ilógica como fundir a PT e a CGD.

É estranho que o ministro Crato esteja em tão boa conta. Para além de ser co-rresponsável deste governo, só tem feito asneiras e é tecnicamente pouco abonado, bem como os seus "ajudantes", como dizia Cavaco, defendendo-se com alguma recetividade pública (até dos sindicatos!) ao seu talibanismo fundamentalista contra a pedagogia moderna. Talvez também por ter tido notoriedade pública como membro de “o velho, o rapaz e o burro”, no “Plano inclinado” da SIC. Falarei disto mais desenvolvidamente em próxima entrada.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Acordo ortográfico

Vou dar a mão à palmatória, embora não renegando muito do que escrevi sobre o acordo ortográfico (AO), certamente não renegando o essencial.

Essencial do essencial é sempre ter considerado que a ortografia é uma convenção, um fato que se veste sobre o corpo da língua. Preocupa-me muito mais que ela seja bem falada e que eu não possa ouvir, como ainda ontem ouvi, uma personagem notável da nossa vida política e social esperar que, em 2013, “póssamos” ter um ano melhor. Que alguém disse um célebre “há-dem ver”. Que “hão-de haver coisas boas”. “Que tenho que fazer isto” (no sentido de devo fazer). Ou que tenho um site com muitos links de onde faço muito downloads de files quando estou conectado e a net a funcionar.

Fui fazer um teste. Herança de avô com alma de renascentista, tenho algumas coisas de Camões em edições muito precoces (por exemplo, uma edição dos Sonetos de meados do séc. XVII). Tenho também coisas facsimiladas de Gil Vicente e de António Ferreira – não de Sá de Miranda – e, claro, a primeira edição dos Lusíadas. 

É certo que sessenta anos separam os dois génios, Camões e Gil Vicente. Mas, se pensarmos que Gil Vicente, culto, escrevia como era uso então corrente, que transgressões cometeu Camões! Ele não é só o poeta genial. É, para mim leigo, e como os italianos reconhecem em Dante, o inventor do português moderno, com os seus companheiros renascentistas portugueses (por isto referi António Ferreira ou poderia ter referido Sá de Miranda, mas deste não conheço escritos na sua ortografia pessoal).

Refletindo sobre os últimos desenvolvimentos do AO e sobre a minha experiência de escrita segundo ele, começo a pensar que tem muito menos importância para a unidade da língua – e até que ponto deve a língua ser única? – que todos escrevam acto/ato da mesma forma do que os portugueses não consigam entender uma evolução de língua que mete bonde, trem, chope, chácara, aeromoça, quilombo; ou que um brasileiro não saiba o que é chana, muceque, cabrito (não estou a falar no bicho) ou machimbombo. Ou que até, neste canto primevo, muita gente não saiba o que é semilha ou – desculpem-me! – o duo blica e pinta.

Sendo uma convenção, eu  – não especialista – simpatizo muito mais com uma lógica fonética do que com a etimológica, com a qual ainda estaríamos a escrever pharmacia. Também me parece paternalismo infantilizador defender que preciosismos de ortografia são necessários para a boa aprendizagem. E então os homónimos e homógrafos? Alguém tem dúvidas, no contexto de uma frase, se banco é de sentar, de ir a dinheiros ou de urgência de hospital? Para voltar ao exemplo a meu ver desonesto do “cagado”, só um idiota não percebe quando se fala de um animal ou de um borrado. Quantas línguas há no mundo que não têm acentos, a começar pelo inglês? 

Alguma criança que aprende inglês tem dificuldade em perceber esta palavra esquisita, “through” ou pior ainda “throughout”, em que os dois “ou” se leem de forma inteiramente diferente e outras duas letras ("gh") não se pronunciam de todo? Coloquialmente, os americanos escrevem "thru".

Com o meu sentido prático, encarei esta coisa do AO principalmente do ponto de vista de rendimento de trabalho e de ergonomia: quantos caracteres ia ter de teclar a menos? Vou mais longe, podia ser mais radical, porque ter de escrever 5 para “homem” em vez de 4 para “omem”, coisa que não faz nenhuma impressão aos herdeiros mais diretos do latim, os italianos, que escrevem “uomo”?

E isto para não esquecer o “SMSês”! Tb keres ir? Ke k dizes?

Para além dessa minha concordância prática com o AO (“ce eu levaria mais lonje em lojica fonetica como no ruso ce Sirilo normalizou em escrita”), tive razões práticas para adotar o AO. Com a sua identificação emblemática com a lusofonia, a U. Lusófona adotou oficialmente o AO e, em princípio, devemos escrever os textos oficiais e didáticos segundo ele. Como uso muitos destes textos na minha escrita pessoa, não fiquei nada na disposição de ter de usar dois corretores e a estar a pensar a cada momento como escrever. Adotei o AO, já que era na ULHT, também em casa, com a facilidade de o corretor de Português do Brasil funcionar muito bem. Note-se que, com isto, estou a dar razão a muitos adversários do AO: tenho já suficiente experiência do AO para saber que um texto escrito de acordo com o AO é, essencialmente, escrito em português do Brasil, tal como demonstrado pelo "spelling" do Word ou do Pages.

Mesmo assim, muitas vezes tenho dúvidas e tenho de ir ao Lince. E, para minha surpresa, cada vez mais me deparo com ainda mais dúvidas, com grafias duplas permitidas pelo acordo ou com a nota de que o termo ainda não figura no inexistente vocabulário comum. Então o uso do hífen dá-me cabo da cabeça.

Também a ambiguidade política na CPLP, com Moçambique a ratificar relutantemente, com o gigante angolano a recusar, com o Brasil a adiar agora por mais uns anos, com semanas de férias de leitura de jornais caboverdianos no velho português. Começo a duvidar. Acho que há em tudo isto interesses de mercado livreiro a abafarem um esforço possível de entendimento baseado em critérios científicos e de sentido das realidades do uso da língua em cada país, principalmente naqueles em que o português é apenas um unificador político.

Também aceito o argumento que me têm contraposto ao AO, que não há necessidade absoluta de uma norma comum para textos oficiais ou de negócios. Afinal, que inglês é língua oficial da ONU? O americano, o britânico, o australiano, o canadiano? Abram um processador de texto e veem lá a possibilidade de escolhas por cada um destes dicionários de inglês. Claro que, sendo a Apple e a Microsoft o que são, a opção americana é aquela que aparece sem adjetivação, simplesmente “English”.

Assim, até se ver, este é o último texto meu em que o “defeito” (“default”) será o dicionário eletrónico “Português do Brasil”. Não recuso o AO, mas talvez seja prematuro aplicar este. Isto não quer dizer que me vá meter em discussões linguísticas para que não estou habilitado. Simplesmente, quero ser prático. É evidente, porém, que, nos documentos oficiais da minha universidade seguirei as suas normas e usarei o AO, que ela adoptou, com total legitimidade e base legal. Vai dar algum trabalho, mas é dever de ofício.

NOTA 1 – Esta entrada (aqui está, nunca escrevo post ou, mais execravelmente posta! "Blog" vem do velho "Logbook" de marinha, o diário de bordo, onde se faziam entradas) foi-me suscitada por uma artigo de Vasco Graça Moura. Tenho-o considerado como um fundamentalista nesta questão, claro que contra o AO. Este seu artigo parece-me mais sereno e sensato, embora baseando-se sempre em argumentos científicos que provavelmente nenhum de nós domina (não basta ser um muito bom homem de letras para se ser linguista). A novidade deste artigo, para mim, é analisar objetivamente fatores políticos importantes. Merece que eu ache que, se calhar, não estamos irredutivelmente contrários.

NOTA 2 – Não se entenda deste texto que me oponho a um AO. Como já tenho dito, até iria mais longe em coisas hoje foneticamente sem sentido, embora com muito sentido na história da língua e até tão recentes, como fonemas diferentes, que Verney criticava que se estivessem a perder. Por exemplo, a assimilação dos sons que justificavam "x"[x] e "ch" [tx], "ss" [s] e "ç" [ts], "jeito" e "gesto" [j e dj]. O que acho é que o atual AO é divisor em coisa tão importante que é um espírito de família, com o afeto estranho entre colonizadores e colonizados. Não se perde nada em usar mais alguns anos para se estudar este assunto.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

2013




Se calhar quem tem razão é um comentador deste vídeo do iTube que escreve "J'adore ce scénario ! Il n'est pas noir du tout il est plein d'espoir".

Fui lá por intermédio de mensagem de um amigo, que escreveu "Porque 'quem vos avisa...', aqui deixo à vossa reflexão este exercício de ficção ( será realista?)".

E por falar em vídeos, agradou-me o destaque dado pela Joana Lopes a uma cena célebre de "Si Versailles m'était conté", de Sacha Guitry, com a magnífica Piaf a cantar o "Ça ira". Já provavelmente repararam em que é presença constante na barra lateral deste blogue.
"Ah ça ira ça ira ça ira
Les aristocrates à la lanterne
Ah ça ira ça ira ça ira
Les aristocrates on les pendra"
(Les banquiers on les prendra!)