quinta-feira, 29 de março de 2012

Cerimonial académico

Para descontrair da tensão política, hoje vou falar de coisa estranha, cerimonial universitário. Poucos saberão que um dos meus encargos na Universidade Lusófona é o de chefe do protocolo. Gosto, porque foi um desafio fazer de raiz o código de traje e cerimonial, equilibrando o respeito pela tradição e a lógica das origens com algum sentido da modernidade. 

E gosto porque confesso que sou entusiasta pela encenação, fanático da ópera, amante de alguma pompa e circunstância, tudo talvez recordações do maravilhamento pela grande liturgia dos meus tempos infantis ainda tridentinos. Lembram-se do que era o "momentum" do Gloria pascal, em que a negritude da paixão se desfazia em campainhas, sinos, cantos, para o abrir dos cortinados negros, a revelar todo o esplendor de luzes, brancos e dourados, velas e flores já preparadas por detrás? 

Ainda por cima, o meu avô era um excelente tenor gregoriano e nessa escola escrevia em latim e compunha salmos, hinos e coisas do género. Eu devo ser o mais religioso dos incréus! E homem moderno, esquerdalho, mas que ainda consegue ler razoavelmente em latim. Que foi encontrar no selo da sua casa académica atual o seu velho lema, também só no latim de Terêncio, "Homo sum, humani nihil a me alienum puto" (Sou homem, nada do que é humano me é estranho). Não liguem, sou assim parvo, que hei de fazer?
O cerimonial da Lusófona é, segundo creio, o único cerimonial académico português codificado e que vai chamar as raízes coimbrãs. Quando escrevo único, evidentemente que não esqueço o cerimonial de Coimbra, mas consuetudinário e não regulamentado formalmente. Ao contrário de muitos países, até os EUA, a tradição escolar portuguesa tem sofrido tratos de polé, entendida como símbolo de conservadorismo que novos cerimoniais têm de renegar, mesmo que algumas cerimónias universitárias atuais pareçam entrega de óscares de Hollywood. 
Em Espanha, todas as universidades usam o mesmo traje académico, com fundas raízes históricas embora só consagrado em meados do séc. XIX. No Reino Unido e nos EUA, as novas universidades criam trajes distintos, mas com respeito por uma tradição comum, até codificada por entidades interuniversitárias. Diferentemente, o traje coimbrão de séculos de evolução foi completamente renegado por Lisboa e Porto, que, querendo apresentar-se como modernas e laicas, adotaram, ainda na época das escolas suas precursoras, o traje de tipo judicial que se conhece. Depois, com as novas universidades dos anos 70 e com as privadas, foi o delírio. Trajes de opereta, fantasias de domínio deste mercado por artistas ou alfaiates respeitáveis mas desconhecedores da tradição e da lógica do traje académico.
Veja-se este vídeo do cortejo académico que, da biblioteca joanina à sala dos capelos, passando pelo belo pórtico manuelino da capela henriquina, ao som da charamela com fundo do redobrar do “cabrão”, precedeu o doutoramento honoris causa de Lula da Silva pela U. Coimbra. Deixo algumas notas, para quem tiver curiosidade e nunca tenha assistido a uma cerimónia académica (há muito mais a ver, a cerimónia propriamente dita, mas fica para outra vez).
O traje académico coimbrão é duplo. Nas cerimónias simples usa-se o chamado hábito talar: capa e batina como estamos habituados a ver nos estudantes, mas com a batina fechada no pescoço, à eclesiástico, e com a capa caída. É o traje que se usa em provas de doutoramento e de agregação e, por isto, muitos doutores só têm este traje. Em cerimónias solenes, usam-se sobre o hábito talar as insígnias doutorais, as bem conhecidas borla e capelo. Assim completo, considero-o dos mais elegantes trajes académicos que conheço.
A minha universidade seguiu este uso tradicional (ver foto inicial), que nenhuma outra universidade segue, fora nós e Coimbra: um traje preto simples (toga), para atos simples, e sobre ele, em ocasiões solenes, um capelo com cores variadas de doutoramento mais o azul real da universidade, e um “barrete” inspirado na velha tradição dos barretes doutorais-eclesiásticos como a borla coimbrã ou a “birreta” espanhola.
No vídeo, começamos por ver a charamela, conjunto de metais. Tentei isto, mas é difícil porque, com exceção das velhas filarmónicas, perdeu-se o hábito de tocar andando. Na Lusófona, há um uso único em Portugal, mas com antigas raízes históricas, em cortejos reais ou festivos: dois gaiteiros, a tocarem uma marcha solene. A seguir (tempo 00:32), os archeiros. Isto só em Coimbra. Como é que convenço os seguranças da minha universidade a vestirem-se assim?

A seguir (01:17), vemos desfilarem os doutores pela ordem tradicional, começando pelas faculdades mais novas (Educação Física, castanho e marfim; Psicologia, cor de laranja; Economia, vermelho e branco). Também alguns doutores por universidades estrangeiras, com os respetivos trajes (01:40). Ao tempo 01:48, note-se que começam a aparecer professores só com hábito talar, sem insígnias. Isto era impossível antes, em Coimbra, e também só é permitido na minha universidade o traje solene, a menos que se use também uma medalha da universidade pendente de cordão dourado no caso especial de trajes judiciários ou eclesiásticos.
A 01:58, Farmácia, de roxo. Aos 02:10, mais um grande grupo contra a tradição, com hábito talar sem insígnias. A partir de 02:31, Ciências, de azul claro (com a exceção da matemática, azul claro e branco, como determinado por Pombal ao criar a Faculdade de Matemática). A seguir, por antiguidade, Medicina, de amarelo forte (03:13), depois Direito, de vermelho (03:32) e finalmente Letras, de azul ferrete (04:03), incluindo um professor espanhol, na primeira fila (com cores trocadas relativamente a nós: em Espanha, Letras é azul claro e Ciências azul forte).
No fim, os atores principais, o reitor, o doutorando e o seu padrinho (05:01). Repare-se que o reitor não usa capelo, só a borla. Há versões diferentes de explicação deste velho uso. Eu prefiro pensar que, seja qual for a explicação correta, isso simboliza que o reitor é de toda a universidade, não vinculado à sua própria faculdade.

Repare-se que os dois chefes de estado, português e brasileiro, desfilam no fim, já depois do cortejo. Lá dentro, vão-se sentar na primeira fila, porque para presidência só há uma cadeira. Na universidade, manda o reitor. E lugares destacados, no cadeiral, só para os doutores.
Antes, aos 04:50, vestidos de preto com um meio mantéu, um derivado da antiga capa de grande oficial à portuguesa, veem-se os bedéis, transportando as maças, símbolo do poder autónomo da universidade e das suas escolas. No caso da minha universidade, bastante recente, pensou-se que não se justificaria isto. Em sua substituição, mas com o mesmo significado, desfila no início do cortejo a bandeira da universidade, que depois é solenemente colocada no palco.
Faz sentido tudo isto, nos tempos de hoje? Creio que sim. Como na magistratura, na Igreja ou nas forças armadas, o ritual é identitário, reforça o espírito de corpo (no que ele tem de positivo) e, em termos modernos, faz marketing. “Gaudeamus igitur”.

NOTA - Leiam o verso de Terêncio que cito acima, e que é o lema da minha universidade. Sabem quem é que também o tinha como lema pessoal? Karl Marx!

(Editado em 2.4.2012, tendo em conta valiosas sugestões do Dr. António M. Nunes)

sexta-feira, 23 de março de 2012

50 anos



Como amanhã estou fora, tenho de deixar o registo da memória um dia antes. Há roturas na nossa vida, momentos de refundação pessoal. Para mim, jovem provinciano chegado a Coimbra, numa grande confusão de alguma abertura a conflituar com uma educação tradicional, este dia foi um desses grandes momentos.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Salut, la France (III)


Embora com alusões à rua, tenho estado a falar principalmente no plano institucional, partidário, da democracia formal. É neste que faço uma pergunta. Mas nós somos a França? De forma alguma. A Frente de Esquerda pode corresponder um pouco, entre nós, ao conjunto de partidos e movimentos que são o PCP, o BE, a Renovação comunista (RC) e uma ala esquerda indefinida e não organizada do PS. A Frente de Esquerda inclui também alguns pequenos grupos “esquerdistas”, incluindo um irrelevante partido comunista maoista.
PCP e PCF nada têm de comum. O PCF era eurocomunista desde os anos 60, sempre esteve aberto ao diálogo com o PSF, chegou a um programa comum e frentes eleitorais. Ao contrário do PCP, nunca teve dissensões à sua “direita”. Não há nada em França que se assemelhe à RC.
É interessante analisar-se a RC e outras dissensões comunistas. Primeiro, nos princípios dos anos 80, houve muitas saídas do PCP, silenciosas, desorganizadas. Não vou falar disto, estou em causa. Depois, foram as saídas mediáticas. Do grupo dos seis, pouco ficou. Veiga de Oliveira e Silva Graça acabaram em apoiantes de Cavaco, Vital Moreira é um entusiasta de Sócrates mesmo depois dele retirado. Próxima desse grupo foi a saída de Zita Seabra. Não vale a pena dizer nada.
Lembre-se que, nessa altura, houve um acontecimento que poderia ter tido consequências importantes no PCP: a rotura do MDP, que muito me disse. No entanto, não me lembro de um único membro do PCP que nos tivesse acompanhado. Mais tarde, veio a grande rotura, em 1991, depois do golpe de agosto na URSS.  Fora os que fizeram carreira no PS, de que não vou falar, houve o grupo influenciado por Miguel Portas, Plataforma de Esquerda, que “usou” o MDP para organizar e legalizar como partido a Política XXI, depois constituinte do Bloco de Esquerda.
Os atuais RC ainda continuaram no PCP. Sairam em consequência das punições de homens distintos, como Carlos Brito. Mas veja-se o livro de Carlos Brito sobre Cunhal. Ele é e será sempre um comunista tradicional, embora certamente não estalinista. Mas onde é que hoje o estalinismo serve para marcar uma fronteira? Tenho grandes amigos na RC, mas nada de prático ou mesmo ideológico me atrai a acompanhá-los. São um excelente grupo de amigos e assim os respeito, mas com reduzida eficácia política na ação quotidiana e no quadro político convencional.
Com a génese do nosso BE, também não há nada em França. O trotskismo de Krivine e o “anarquismo” de Cohn-Bendit foram pujantes nos tempos de 68, bem como o completamente esquecido terceiro-mundismo guerrilheiro de Régis Debray, mas depois não deram nada, muito menos a constituição de um partido com o sucesso eleitoral do nosso BE. Até se desviou foi para a direita, como se vê por “Danny le rouge”. A extrema-esquerda francesa é hoje irrelevante, em nada se comparando com o BE português.
O que em França se compara, mas só em termos de ser outro polo de esquerda em contraponto ao PCF é o Parti de Gauche (PG). Todavia, há uma diferença essencial: o PG tem origem não na esquerda “radical” mas sim numa dissidência da ala de esquerda mais afirmada do Partido Socialista. Os seus principais dirigentes, com destaque para Mélenchon, já o eram no PS. Simbolicamente, a sua inspiração é Jaurès (foto), sem prejuízo de muitas das suas bandeiras evocarem também Marx.
Recorde-se, aliás, que o PS francês sempre teve uma ala de esquerda forte e com posições nada concordantes com a degradação progressiva das sociais-democracias europeias nas últimas décadas. Um bom exemplo foi a entrada para o PS do PSU de Rocard, muito diferente das assimilações “ideologicamente canibais” do PS português, seja dos ex-MES, seja do grupo Pina Moura e outros de ex-PCP. Assim, onde se vê no PS português a perspetiva de dele se autonomizar uma nova formação política, de esquerda claramente oposta à ideologia ordoliberal e à sua prática consagrada na Europa?
Precisamos de tal partido novo, mas a sua génese e desenvolvimento terão de ser diferentes do PG. Portugal não é a França.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Salut, la France (II)




Há muitas ruas. “A la calle”, à anarquista espanhol, giro, romântico, imprevisível, com panache. Pode ser apimentado com uns molotovs, como em Atenas (e quando em Lisboa?). Com um punhado de gentes da rua se fez o 5 de outubro, com mais gente “arruada” a acompanhar uma meia dúzia de tanques se fez o 25 de abril.
Na rua se mostram hoje dezenas e dezenas de milhares a chamamento da CGTP, incomparavelmente menos a chamamento de coisas ainda muito embrionárias. Mas tudo é certinho, jogada de peão, nada aponta para um dia próximo de decisão.
A rua também pode ser um comício. Já tivemos comícios grandiosos, mas poucos como o da foto deste “post”, na Bastilha, para ouvir Jean-Luc Mélenchon. Como só vemos metade da praça, tão grande como o Terreiro do Paço, não estão menos de 100.000 pessoas.
Um comício enquadra-se num objetivo concreto, uma campanha eleitoral, mas claro que se alimenta do sentimento popular anterior. Imaginemos que temos eleições este ano. As pessoas começam a estar zangadas, mas também perplexas. Não sabem bem o que querem, muito menos saberiam encontrar uma alternativa política como esta francesa que lhes fosse bater na sua emoção de homens atordoados pelo sistema político-partidário. Alguém imagina uma nossa frente política de esquerda partidária a levar toda esta gente à rua?
E veja-se que, sem menosprezo pelas novas formas de intervenção política, este fulgor de esquerda em França se situa no mais convencional quadro político, institucional e partidário. Por isto, continuo a dizer: é urgente uma nova alternativa partidária de esquerda em Portugal.

Salut, la France (I)


A minha geração falou francês. Não fosse a ideia do meu pai, nos fins dos 50s, de que o inglês é que me serviria e de me ter metido em lições semanais de inglês, bem como me comprar todos os meus livros de medicina em inglês, estaria hoje tão afrancesado ainda como tantos meus amigos de “letras”. 

Todavia, ainda nos vem surpreendentemente alguma coisa dessa nossa segunda pátria tradicional. Nestes últimos dias, tenho lido menos em inglês, menos do que habitualmente os nobeis da economia ou a imprensa internacional. Leio e ouço um homem notável, Jean-Luc Mélenchon.
É um homem com a qualidade notável de não só dizer coisas certas como as dizer muito bem. Um grande orador, como só estávamos habituados a ouvir em inglês, por exemplo Martin Luther King.
É o candidato da frente de esquerda (Front de Gauche) às próximas eleições presidenciais francesas. O FG inclui o PCF, o Parti de Gauche (PG) e alguns grupos menores. Claro que não vai ganhar mas, na segunda volta, Hollande vai ter de considerar as posições do FG. Palpita-me que, depois das eleições francesas, muito do que tem sido marcado na Europa pelo coitadinho eixo Merkozy vai mudar. Por si só, Hollande já promete diferença. Com a pressão do FG, o sistema europeu da tristeza ideológica e económica dominante que se cuide.
Vai só aqui uma lista muito sucinta das posições do FG, os títulos dos capítulos do programa. Melhor é lerem-no.
  • Partilhar a riqueza e abolir a insegurança social.
  • Reconquistar o poder da banca e dos mercados financeiros.
  • Planeamento ecológico.
  • Modo de produção alternativo.
  • Uma verdadeira república.
  • Assembleia constituinte da VI República.
  • Denúncia do Tratado de Lisboa.
  • Mudança do caminho da globalização.
  • Emancipação humana.

Provavelmente por dificuldades de entendimento entre os participantes no FG, as posições quanto à crise e ao euro ficam diluídas e ambíguas. Mas já as do PG são muito claras, como direi noutra ocasião. Agora fico por aqui, mas vou ter de escrever mais sobre esta esperança que nos vem da Bastilha. Sempre a Bastilha, sempre a rua.

NOTA - Ainda antes do próximo “post”, fica claro que é difícil transpor isto para Portugal. O PCF não é o PCP e, principalmente, o PG não tem mesmo nada a ver com o BE. Depois explicarei.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Sempre a Bastilha

Como lembrou no seu discurso na praça da Bastilha o candidato presidencial da Frente de Esquerda, Jean-Luc Mélenchon (de cravo vermelho na lapela), é preciso lembrar a Comuna (fez ontem anos, 18 de março de 1871) e cantar "le temps des cerises":


É uma canção de amor, a canção símbolo da Comuna. Mas o amor é incompatível com a revolução?

domingo, 18 de março de 2012

Camaradas, pá!

Passou há dias o primeiro aniversário da grande manifestação do 12 de março, da “geração à rasca”. Provavelmente 100.000 pessoas. Foi celebrada este ano com uma ação de rua, defronte da loja do cidadão nos Restauradores, que juntou uma ou duas centenas de jovens, muitos com ar de estudantes ou desocupados, em casa dos pais, sem ainda nada saberem do que é desemprego ou emprego precário.
No entanto, “somos o povo, pá!”. Veja-se o vídeo (depois da publicidade que não consegui eliminar).




É claro que os 100.000 não podiam ser considerados à letra. Foi uma manifestação conjuntural que juntou tudo o que era anti-Sócrates, o que não era difícil. Depois, a acampada do Rossio foi pálida amostra. A manifestação do 15 de outubro nem chegou a um décimo. Agora isto. Dá para refletir, mas sem se cair na ridicularização injusta e historicamente errada destas movimentações.
Devemos considerá-las como parte, certamente ainda menor, do que é, politicamente, “a rua”. E esta vai ser cada vez mais determinante, muito mais cedo, nesta crise do capitalismo financeiro, do que se pensaria há uns anos, na via triunfal do liberalismo reforçado com a implosão do mundo soviético. No jogo político, a rua deixou de ser uma “infantilidade” ou aberração da democracia, reduzida para muita gente à sua vertente formal, institucional, hoje em descrédito. 
Por outro lado, em época de crise e num sistema democrático recente, como o nosso, em que a superestrutura institucional avançou mais depressa do que a dinâmica dos corpos intermédios, que não se decide com assinaturas no papel, estes acabam por só aparentarem força quando também saem para a rua, embora à sua maneira, como é o caso da CGTP.
Mas há rua e há rua, porque há gente na rua e gente na rua. A rua ocupada ordeiramente é obviamente um sinal importante do sentir do povo. Mas também pode ser, perversamente, uma válvula de escape do sistema, quando a pressão é controlada por um mecanismo muito mais potente: a hegemonia ideológica, de que falarei adiante, mais uma vez. Na Grécia - nós não somos gregos?!… - todas as semanas a Sintagma está cheia com uma manifestação. Que resultado? Claro que esta é uma pergunta perigosa, se não entendida dialeticamente. A ação de rua com a ação institucional não resulta em 1+1=2, dependem a cada momento uma da outra e fazem tudo o resto orbitar em volta de duas estrelas conexas em laço de forma de oito, coisa que não conhecemos no sistema solar.  
Se tudo fosse linear, milhões de eleitores amorfos mas “e pur” influenciáveis, e com apetência para serem esclarecidos, teriam na rua ordeira mais um fator de reflexão. No entanto, também há a rua grega dos prédios de escritórios incendiados, das agências bancárias destruídas. Mas nós não somos gregos!?… Será? O que estamos é temporalmente desfasados, um ano atrás dos gregos neste processo de miserabilização. A raiva dos gregos não será daqui a um ano a raiva dos portugueses?
Então, a esquerda tem de estar preparada para que a rua em chamas deixará de ser vista pelo eleitor comum como coisa positiva, a reforçar o seu desgosto impotente com o sistema político. Este sistema usará o perigo da rua para mais manipular e atemorizar o eleitor. Apesar disto, é quando a rua será revolucionária, porque o sistema estará na defensiva, mesmo que até podendo melhorar a sua posição no plano institucional, da democracia formal partidária.
Da rua é que virá a revolução, como sempre na história. O que será essa revolução ninguém sabe, exceto que certamente não será nada escrito já em livros ou desenhado a régua e esquadro. E que não será bem comportada e respeitadora dos “interesses legítimos” que, não sendo nada os da enorme maioria das pessoas, elas foram formatadas a pensar que são intocáveis para pessoas de boa educação. 
Na minha juventude política, estudantil, com muitos outros, aprendi a perceber racionalmente, também a intuir, quase que a cheirar, quando se podia avançar para uma ação ou quando ela seria condenada à derrota. Também a saber quando e se aproveitar uma ação surgida imprevistamente. Isto era coisa elementar de ensinamento dos clássicos, a perceção de uma situação revolucionária.
A rua e os chamados novos movimentos são hoje um desafio a este sentido da revolução. É bonita, está na moda, alguma atitude de infantilização em relação a eles por parte de gente experiente. O extremo oposto também é negativo, o de se olhar sobranceiramente para coisas politicamente pouco sustentadas, mas que pelo menos mal não fazem.
Mas está a revolução à porta, em tempo pessoal, diferente do histórico? Se sim, não é de concentrar na novidade histórica, nas novas movimentações, o essencial do esforço de luta? 
A meu ver, não. A história não caminha numa só linha, mas em linhas paralelas com velocidades diferentes. Como já aqui disse várias vezes que me preocupa muito, há um fator  muito importante que, travando muito a dinâmica de contradições na ação institucional (parlamentar, etc.), retira base de apoio subjetiva à movimentação revolucionária da rua. É a hegemonia ideológica
As pessoas estão dominadas por um “pensamento” hegemónico. As situações problemáticas são complexas, o eleitor fica desarmado se só confiar nos slogans partidários. Não tem bases técnicas para formar opinião. Ouve a televisão com o seu coro unanimista dos opinadores de serviço. Como são todos professores doutores, o homem comum submete-se inconscientemente ao argumento de autoridade. Também a duas outras coisas envenenadoras do espírito crítico: “sempre foi assim” e “está-se mesmo a ver”.
Com isto, foram 80% dos eleitores que apoiaram os acordos com a troika. Quantos serão da próxima vez? Por isto, volto e volto a dizer que penso que a prioridade (o que não quer de forma alguma dizer exclusividade) da ação política, a curto prazo, é a do terreno institucional, com criação de um novo partido a romper a cristalização do sistema partidário atual, em que a esquerda é objetivamente conivente com o sentimento geral de falta de alternativa.

Voltando à rua, a muito possível radicalização das suas movimentações coloca desafios à ação no plano institucional. Muitas pessoas precisarão de uma nova oferta partidária cuja pedagogia e seriedade, também com realismo, lhes permita escapar ao pânico de ficarem perdidos entre o “caos da rua” e a ineficácia do sistema político formal.
NOTA - Muitas vezes, os dirigentes de movimentos ainda pouco estruturados acabam por ser muito maus parteiros e por dar cabo da vitalidade da sua criança. Às vezes, até acabam por a abandonar, atraídos por ofertas sedutoras de quem, mais sabido, soube explorar algum desejo de notoriedade de até então desconhecidos. Outras vezes, é apenas questão de patetice, condizível com opiniões pessoais a que se tem pleno direito, por exemplo na esfera da pansexualidade (?) mas que não credibilizam muito a ação política. 
Raquel Freire, em nome do que é hoje o Movimento 12 de março, anunciou que vai ser criada uma Academia da Cidadania, “para explicar às pessoas o que é a democracia”. “O ativismo aprende-se, justificou a cineasta, explicando depois que a academia propõe-se dar formação específica a grupos populacionais tão distintos como crianças, mulheres ou trabalhadores precários. Pretende ainda produzir um manual para ensinar as pessoas a concorrerem às eleições autárquicas, através da criação de movimentos de cidadãos.” Ai, os intelectuais!

terça-feira, 13 de março de 2012

Merece destaque


“Pessoas que não conhecemos”: crónica a todos os títulos notável de José Vítor Malheiros, hoje no Público (só para assinantes), mas de acesso livre no seu blogue Versaletes. Há coisas que lemos e que nos agradam, que nos fazem sentir acompanhados, mas que podem fazer doer.
NOTA - Mas, JV, então “O Mandarim”?...

segunda-feira, 5 de março de 2012

Oliveira de Figueira


No Público, hoje: “Um teste de auto-colheita para deteção precoce do papiloma do vírus humano (HPV), responsável pelo cancro do colo do útero, é lançado no mercado quinta-feira, Dia da Mulher, por uma empresa da Universidade de Coimbra”.
Ou a notícia não está correta, ou esse laboratório de Coimbra das duas uma: ignorância crassa ou irresponsabilidade a raiar, objetivamente, a falta de seriedade.
Que parte muito significativa dos cancros do colo do útero são causados por vírus do género papiloma (um terço dos tipos de entre mais de uma centena), é bem conhecido. Por isto, a vacina em uso, sendo contra os vírus causadores, acaba por proteger essa alta percentagem de mulheres.
Já quanto a diagnóstico, a situação é tão diferente que é espantoso que esse laboratório não a conheça. Devem ser só engenheiros ou bioquímicos. Nunca uma empresa farmacêutica ou de diagnóstico, com médicos e - neste caso - virologistas - investiria um euro em tal kit.  A Universidade de Coimbra parece que sim, possivelmente com dinheiros da Fundação para a Ciência e Tecnologia. E é claro que nunca ninguém na Roche, na Abbott, na Merk se lembrou de tão brilhante ideia.
O que se está a detetar são vírus do papiloma, por intermédio do seu DNA. Simplesmente, se a maioria dos cancros do colo são causados por papiloma, o inverso não é verdadeiro: cerca de 30% (até 50% em alguns estudos) dos casos de cancro não são devidos ao vírus e, por outro lado, há muitos casos de infeção que nunca chegam a provocar cancro. Portanto, eu não gostaria de estar na posição de mulheres a quem possa ser diagnosticada a infeção viral crónica e que vão viver apavoradas com a incerteza de um dia virem a ter cancro.
Diferentemente, o clássico Papanicolau, diminuído pelos autores do invento, deteta de facto é as células cancerosas. Qual a vantagem do novo “teste”? Dirão que alertar essas mulheres para um controlo mais apertado, claro que com o tal Papanicolau. É inútil, porque de qualquer forma todas as mulheres o devem fazer regularmente, a partir de certa idade.
Voltando ao Público, “denominado “Teste da Mulher” e dirigido especialmente a mulheres com mais de 30 anos - “as que correm maior risco de desenvolver o cancro do colo do útero” -, é o primeiro método, em Portugal, que permite a auto-colheita e “é mais robusto e rápido do que o método clássico - teste de Papanicolau [citologia] - para detectar a presença do HPV”, lê-se numa nota de imprensa da UC.
Como se vê, outro aspeto estranho desta notícia é ser valorizada a autocolheita. Não pode ser um simples exsudado vaginal, tem de ser mesmo do colo do útero. Os autores desta invenção avançam qual a sua estimativa de percentagem de mulheres que o vai conseguir, às cegas? E o teste de Papanicolau alguma vez detetou DNA dos vírus de papiloma? E é menos rápido do que este que, se não me engano do que ouvi um dos autores, demora duas semanas (não percebo como, deve ser erro, porque provavelmente se baseia em PCR)?
Diz-se também na notícia que o rastreio por citologia (Papanicolau) se faz em alguns centros hospitalares do país. Não quero crer em tanta ignorância. Fazem-no, felizmente, muitas dezenas de milhar de mulheres, com colheita feita pelo ginecologista a cuja consulta de rotina devem ir anualmente pelo menos depois dos 50 anos, e com a análise citológica feita por este país fora em milhares de bons laboratórios de anatomia patológica.
Desde há uns anos que andamos embevecidos com os nossos sucessos científicos, seja a de publicações muito importantes com um nome português perdido entre duas dezenas de autores, seja uma novidade tecnológica que irá faturar fortunas. Vê-se. É caso de o rei vai nu. É muito uma feira de vaidades mas também é sinal de falta de seriedade na forma como se usam os nossos recursos para a investigação. 
E já chega de a imprensa mais os gabinetes de comunicação de universidades e institutos de investigação só usarem as formas garantidas de informação - artigos já publicados e não apenas anunciados, ensaios clínicos publicados (onde está esse de Uppsala?), patentes, etc. E fica-me ainda outra dúvida: o teste vai ser comercializado daqui a dias. Por quem e a quem? Em mercado aberto, que exige garantia? Quando e como foi obtida a certificação do Infarmed? Se o regulador autorizou o uso deste teste, fico preocupado. 
Nota - Podem-me acusar de estar a torcer um pouco as coisas: afinal, a notícia do Público refere claramente a deteção precoce dos vírus do papiloma [JVC: no caso do papiloma, com efeitos a longo prazo e em que já não se pode fazer nada depois da infeção, a precocidade conta pouco e em regra começa no início da vida sexual]. Não a deteção direta e propriamente do cancro do colo do útero. Não é verdade que faça isto. Mas ouvi cuidadosamente as declarações do responsável da empresa da UC e são claras: segundo ele, é um teste de deteção precoce do carcinoma do colo do útero. Como disse, não é!

sábado, 3 de março de 2012

Não bate certo...


Pacheco Pereira, hoje, no Público: “Portugal comprou esta semana a bala da sua execução. Refiro-me à assinatura do texto do novo "tratado" cisionista da UE”.
Artigo a não perder, mas a causar-me perplexidade. Eu a concordar tanto com Pacheco Pereira? Um de nós deve ter-se passado :-) A sério, diria que um exemplo de honestidade intelectual partilhada (embora, no caso de JPP, fique sempre com alguma dúvida sobre a sua agenda política).

sexta-feira, 2 de março de 2012

Bons alunos


A Europa é hoje uma escola primária à maneira de antigamente. Meninos bem comportados, uniformizados na sua bata branca (nada de vermelho!), retrato na parede do big brother da ideologia neo/ordo-liberal. De Cavaco a Passos Coelho, Guterres e Sócrates pelo meio, sempre o aluno português foi bem comportadinho, ganhando a medalhinha dos pastorinhos de Fátima.
No bom comportamento, há regras que não se discutem, até porque um pobrezinho para receber a esmola não pode tresandar a vinho. Regra das regras, o PEC de Maastricht, considerando crime contra a natureza, pedofilia contra a inocência infantil da virtude dos mercados, ultrapassar-se os míticos 3% de relação do défice orçamental em relação ao PIB.
Hoje, um primeiro ministro com quem até não tenho nenhuma afinidade, Mariano Rajoy, deu um murro na mesa e disse que o défice espanhol vai ficar em 5,8% e a Europa prussiana que se lixe. Como quem diz: atrevem-se a “chatear” a 3ª economia da eurolândia? Isto é deslocar a crise do terreno “cientificamente” económico para o verdadeiro terreno, o político. Aquele que está a ser totalmente diminuido em Portugal, com discursos de “que a economia manda, o que tem de ser tem muita força e temos de obedecer à receita da troika”.
Disse que não tenho afinidade com Rajoy mas tenho com os espanhóis, entre os quais conto dos meus melhores amigos, numa vida minha muito internacionalizada, profissionalmente. Sempre escrevi que, na nossa pequena dimensão, nos falta o sentido dos “grandes de España”, coisa vinda modernizada até amigos meus espanhóis de hoje, grandes homens de coluna ereta, grandes cientistas e convictos antifascistas. Nós somos “pequenos de Portugal”.
Marcante é que Rajoy tenha usado uma expressão magnífica para designar essa decisão: “Decisão soberana”. Tomem lá, Merkozys”! E mais Monti, que parece querer salvar Itália montando-a no burro franco-alemão.
E porque é que não se faz a urgentemente necessária frente do sul, na UE e na Eurolândia? Rajoy (que pena não ter sido Zapatero) promete, mas Itália e Grécia têm governos de banco-serviçais tecnocratas a soldo (bem pago) da ideologia dominante. Portugal tem um governo de escuteiros. Um grupo de meninos vestidos de pateta chefiados por um pateta vestido de menino.