sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Londres, outra perspetiva



A visão de um meu querido amigo brasileiro. Parece-me que os intervenientes brasileiros na discussão estão a ser um pouco condescendentes, "socio-simpáticos". Mas o testemunho do sessentão negro é um lado de toda esta história (e referindo-se aos acontecimentos iniciais) que merece atenção, mesmo que crítica.

No meio de tudo o que se tem escrito, volto a querer esclarecer a minha posição. Isto é coisa a analisar muito bem, sociologicamente. Do ponto de vista político, claro que é um fator de contradição dialética da crise social e política. Mostra claramente que há uma situação objetivamente favorável à revolução, o que não quer dizer, marxismo elementar, que seja subjetivamente favorável. Continuo a dizer que este tipo de acções de motim não é um elemento revolucionário, é só um aspeto da conjuntura em que se deve organizar a revolução, mas sem o lumpen. O lumpen, a selvajaria, as pilhagens dos bens simbólicos do consumismo, é canalhice, não é luta de classes, não é a revolução, por muito que mostre que o sistema, com esta canalhice, está a abrir as portas à verdadeira revolução, que será feita por outra gente.

Mesmo a outro nível, muito mais respeitável, se vê a mesma atitude de confusão. Os revolucionários com consciência, com elaboração ideológica sólida, parece estarem envergonhados por não terem a projeção mediática dos jovens protestativos, sinceros, generosos, mas frequentemente pouco organizados e pouco consequentes. A mesma coisa, bons fatores objetivos, fracos fatores subjetivos. Leia-se Gramsci. Anulam-se esses meus coevos, dizem que só os jovens é que são o futuro, que nós já acabamos.

Não é verdade. A revolução precisará de todos, da maturidade e experiência dos mais velhos, da generosidade e combatividade dos mais novos. Os da minha geração que dizem que temos de nos apagar à sombra dos acampados do Rossio são derrotistas ou hipócritas a dizerem coisas "bonitas" que não sentem. Hipocrisia de S. Boaventura afinal demagogia insultuosa para os tais jovens que, no fundo, despreza olimpicamente.

Para ser brutal, acuso claramente: quem entre nós elogia babadamente estes saqueadores londrinos é gente que respeito como bem intencionada, com quem tenho dialogado, mas que, felizmente mais jovens do que eu, tiveram pouca experiência, felizmente também do que é ter de se pensar a sério no que é ser-se revolucionário consequente, em tempos que não permitiam "flestirias" e a luta não se fazia em escritos na net. Hoje é fácil ser-se todo prafrentex, mas era bom pensar-se um pouco nos prejuízos que esta atitude de esquerda diletante causa à verdadeira esquerda.

A latere - Este texto veio-me a propósito de uma conversa do meu amigo Eduardo Costa, brasileiro. Fiquei a pensar em como ele lerá esta resposta. Ambos com funda formação marxista, temos de reconhecer o relativismo. Eu estou a pensar à europeia. Mas se estivesse no lugar dele, de quem andou de "canhota" na mão, na guerrilha, de quem sabe o que a favela lumpen talvez seja o fermento da revolução brasileira, de quem sabe o que não sabemos cá, o que são os sem-terra, de quem sabe o que matou o Che, a falta de apoio dos pobres mesmo pobres, não proletários e sem consciência revolucionária, admito que tinha de abrir a mente. E Lula nunca deve ter lido uma página de Marx! Eduardo, estamos a precisar de grande conversa com um chopinho, charque e aipim. Ou uns petiscos açorianos no meu ninho da águia.

E ainda mais à margem, Eduardo, não imaginas o que é o bombardeamento que aqui temos de inteletuais brasileiros bem pensantes e bem educados que se horrorizam com a sua ultrapassagem pelos fraldiqueiros, que gozam com um Lula analfabruto, que não leram o Viva o Povo Brasileiro, o maior romance da língua portuguesa do último século.

E neste tempo de crise e mediocridade europeia, eu acho que era bem melhor eu ser membro do 27º estado brasileiro, Portugal. Assim se cumpria  "Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: ainda vai tornar-se um imenso Portugal!". Grande Chico!

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Ça ira!

Estou a ouvir notícias. Desde manhã, são os eurobonds. Trocando por miúdos, trata-se de títulos de dívida pelos quais são solidariamente responsáveis todos os países do euro, em vez das dívidas nacionais. Claro que isto tem de ter regras, nenhum país pode ter a liberdade de emitir eurobonds à sua discrição, penalizando os parceiros. O importante é que, garantidos estes títulos por toda a zona euro, o seu juro é baixo e não especulativo, como acontece com a dívida dos países periféricos.
Há três meses, era coisa de que só falavam os economistas não europeus, perigosos comunistas americanos, como Stiglitz ou Krugman, premiados com o Nobel por outros perigosos esquerdistas, os administradores do banco da Suécia. Depois, alguns economistas do BCE e da UE começaram a piar pianinho, não fossem perder o emprego. Ontem foi a Itália a exigi-los, com as calças já a cheirar a queimado. A sargenta Merkel, exemplo do maior espírito quadrado de respeito pelos mais irracionais preconceitos de economia política comunitária (ela vem da ex-RDA!) continua a opor-se mas já o principal especialista económico do seu partido vem tornear a irredutibilidade. Ela ainda vai à vida por simples inflexibilidade, a pior coisa que há na política.
É claro que isto tem muito a ver com coisa que fica esquecida pelo "big brother" da desinformação económica: no segundo trimestre deste ano, a economia alemã teve o resultado magnífico de um crescimento de 0,1%!

Simplesmente, tudo é lento, empastelado, incompetente, entregue a uma "classe" política europeia medíocre. Ouvi há pouco uma coisa espantosa dita por um porta voz da comissão: "a Europa ainda não está preparada para os eurobonds". A política europeia não é proativa, aguarda por coisa misteriosa que é o momento de se estar preparado.
Entretanto, o governo português mais o seu companheiro PS da troika interna não dizem uma palavra, não piam na discussão europeia, continuam com os antolhos postos na obrigação de cumprir o acordo de resgate. Nunca sequer isto dos eurobonds exigiram, nem a baixa dos juros de castigo cobrados pelo FEEF e pelo BCE (superiores aos do FMI), e de que afinal vão beneficiar só por causa da luta dos gregos, com a cedência relativa dos AAA em 21 de Julho. Se dissermos não aos poderosos eles vergam, porque têm muito mais a perder com uma crise do euro do que nós. Se dissermos que vamos reestruturar a dívida, vêm logo conversar sobre como fazer isso sem convulsão na zona euro. Simplesmente, os nossos políticos não os têm no sítio, sofrem todos de criptorquidia atrófica.
O pior que está a acontecer-nos é termos enfiado a carapuça de beneficiados desonestos, abusadores, irresponsáveis, devedores, que devemos agradecer aos nossos benfeitores AAA (alemães, holandeses, austríacos, finlandeses - por sinal aqueles países onde cada vez mais cresce eleitoralmente o neofascismo de extrema direita nacionalista e xenófoba, ao contrário de nós). E toda uma máquina nossa mediática, de economistas de serviço, nos mete isto na cabeça, sem nos fazer perceber que esses AAA só são ricos à nossa custa, e é para isto que serviu o euro. Não me digam que estou a fazer propaganda sem irem primeiro ler alguma coisa do muito que hoje se escreve sobre isto, para quem quer mais do que se sentar no sofá a ver a TV. Googlem!
Estou a escrever a muitas pessoas que votaram na troika interna, porque acharam que não havia alternativa, que não podemos ser caloteiros. Com isto, procederam como gente honesta, mas sem perceberem que a honestidade nas contas familiares não tem nada a ver com a economia política. Não estão a ver o que está a mudar em relação aos dogmas económicos da zona euro desde 21 de Julho? Não estão a ver como foram enganados nas últimas eleições? E como não vão poder emendar tão cedo o seu voto, ao menos que gritem e que saiam à rua quando vier o momento, e não tarda.
Eu não peço a estes eleitores que mudem radicalmente de posição, até porque sei que não veem uma alternativa que os convença. Mas ao menos que comecem a pensar que é necessário qualquer coisa nova que não pode ser a dos tais 80% que têm razão. E que comecem a ouvir, mesmo com ceticismo, e a não achar que são esquerdistas malucos os que, como eu sessentão e considerado cidadão e profissional respeitável, e todos aqueles que desde há muito têm vindo a dizer o que agora até o sistema vem dizer, como o governo italiano a clamar por eurobonds.
E, quando já ia publicar isto, ouço que Sarkozy e Merkel propõem um mecanismo reforçado de governo económico europeu. Por um lado, é a confissão evidente do falhanço do euro baseado no mercado “inteligente”, da não necessidade de governo económico, de orçamento comum, de política fiscal europeia, do dogma derivado da criação do euro à imagem e semelhança do marco. Talvez ainda mais importante como sinal do sismo que a ideologia económica europeia está a sofrer, propõem uma taxa Tobin sobre as transações financeiras. Estão malucos ou desnorteados, estes governantes, dizem-se e desdizem-se.

Mas fico receoso com a proposta de esse governo económico europeu ser entregue a personagem tão cinzenta, tão simbólica da burocracia de Bruxelas que é van Rompuy. Mais, que isto esteja ligado, vê-se logo o dedinho prussiano, à exigência de constitucionalização das regras de Maastricht por todos os estados membros. Mas tenhamos calma. O que se vê é o sistema europeu a abrir brechas por todos os lados. É natural que haja coisas contraditórias. Mas “ça ira!”

Bem observado!

"A única coisa que se pôde confirmar com a vaga de críticas aos salários dos gabinetes foi que as pessoas consideram sumptuoso qualquer salário mais elevado que o seu - ainda que julguem o seu salário injustamente baixo."
José Vítor Malheiros, "Mais cargos, mais nomes, mais dados, mais transparência", Público, 16.8.2011.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Feios, porcos e maus

Há quem queira reduzir os motins ingleses a simples caso de polícia. E há quem os veja num enquadramento político e social, como entendo que se justifica, mas com perspetivas muito diferentes, algumas para mim inaceitáveis. 
Antes da análise, os factos, parece-me que indesmentíveis, porque as filmagens não enganam. São toda uma mistura de gente que vai de crianças a professores primários e a mães de família, todos unidos no simples roubo, não o “roubo” politicamente significativo (assalto a banco, à LUAR). Não representam comunidades étnicas, que até se estão a organizar para proteger dos vândalos as suas propriedades, lojas e negócios, antes me parecem ser maioritariamente, pelo que vejo na TV, brancos ingleses. Não atacam os símbolos políticos, quartéis, tribunais, esquadras de polícia, os serviços sociais que não lhes dão o que querem (e não dão a esses? ou não dão é a outros?). Ao contrário de movimentos de protesto político e social à norte-africana ou à grega, não têm nenhuma palavra de ordem política. Ao contrário de Jean Valgean, não roubam pão, de que não precisam, roubam televisores, computadores, telemóveis topo de gama, roupa de marca. 

Afinal, é o que muitos pais sabem quando os seus filhos foram assaltados, à porta da escola, por jovens marginais que só queriam roubar-lhes era os ténis de marca e o telemóvel. São desempregados em revolta social legítima, estão a fazer protesto político, desejam uma sociedade mais justa? Tolice, são apenas marginais sociopatas. Claro que com isto estou a culpar a sociedade que permite isto, também as famílias desestruturadas que os criam, também a escola que não consegue fixá-los, mas não estou é a fazer deles a juventude revolucionária. Seria uma ofensa aos "geração à rasca", aos 15-M, afinal também à memória da minha juventude.

Estes selvagens londrinos cultivam a violência pela violência, “tout court”. Como é que não nos lembramos da Laranja mecânica ou dos hooligans (afinal, isto é muito inglês, “low class”, na mais snobemente estratificada sociedade do mundo, com uma classe baixa, provavelmente a mais ordinária classe baixa europeia. Deixo claro, estou a falar de nativos, não de imigrantes, falo do que o Algarve conhece como desordeiros bêbedos das docas de Liverpool, mas que deliram ler os tabloides com fofocas sobre a família real.
O que não posso admitir é que uma certa esquerda nossa de hoje venha falar disto como um problema de classes, treslendo o velho génio renano. Literalmente, o bloguista refere o carácter de classe do protesto” (!). Quando um drogado lhe fura um pneu porque não recebeu o euro devido ao seu trabalho digno de “arrumador”, o bloguista vai-lhe dar um abraço de solidariedade de classe? 
Claro que o que se está a passar na Inglaterra é um problema óbvio de disfunção social, de psico-sociopatia, mas pensar em termos de luta de classes é coisa que horrorizaria Marx se ouvisse dizer que esta canalha era classe revolucionária. Marx ensinou o que era o lumpen-proletariat, o que estamos a ver agora em Inglaterra. E ensinou como ele até serve abjetamente, no momento da verdade, os interesses da classe dominante (como Hitler bem o usou nas suas primordiais e esquecidas SA de meros bandidos rufiões). E já se estão a ver nas ruas inglesas os neonazis, agora como vigilantes, à sua maneira bem especial.
Independentemente de se concordar com que estes desmandos sociais ingleses devem fazer pensar na sociopatia que todos os nossos países vivem, uns mais outros menos, o que é inaceitável é ter alguma atitude de consideração para com os feios, porcos e maus (curiosamente, ainda ontem vi o filme do Ettore Scola, num canal de cabo - terá sido propositadamente?). A mim, horrorizam-me, sejam ou não vítimas, porque são mesmo feios, porcos e maus. Serem vítimas do sistema - e são, sem dúvida - não lhes justifica a porcaria, porque as vítimas merecedoras são as que lutam ou pelo menos se comportam como qualquer pessoa de esquerda deseja que se comporte o “homem bom” (ia dizer utopicamente o “homem novo”). O verdadeiro revolucionário não pode ter qualquer condescendência com o lumpen, porque senão degrada-se ao seu nível. E não me venham com essa de não haver revoluções asséticas. Mistificação. Eu leio Marx, não Bakunin.
Diz-se que o blogue em que li esta monstruosidade é conotado, não sei se corretamente, com o PCP. Eu não consigo saber o que é hoje a referência ideológica do PCP, nessa linha estranha que foi abusivamente feita de marxismo-leninismo-estalinismo-khrutchovismo-brejnevismo-cunhalismo. Eu fico-me por Marx, que dispensa a etiqueta de marxismo e acho que fico muito bem e com grande proveito intelectual e de influência para a ação. Pena é que muitos atuais comunistas nunca tenham lido o grande mestre a não ser pela falsificação das sebentas de agitprop ou da cartilha de Politzer. 

Com gente de “esquerda” destas, digo “que me protejam dos meus amigos, porque com os meus inimigos posso eu bem”. Enormidades como essa simpatia e defesa dos motins fazem mais mal à esquerda, junto das pessoas minimamente sensatas e sensíveis à necessidade de uma mudança social, candidatos a virem ao nosso lado, do que os ataques da direita.

P. S., 12.8.2011- Um prezado amigo criticou-me por aparentemente eu não enquadrar suficientemente estes acontecimentos no contexto social de um capitalismo  a abrir brechas e a agravar as diferenças sociais e económicas. É verdade que não discorri muito sobre isto - coisa para mim óbvia - porque o meu objetivo primeiro, em resposta à tal apreciação de "carácter de classe dos motins", era tentar mostrar que as típicas ações de lumpen, para os clássicos, sempre foram condenáveis, mesmo percebendo-se que eram, em última instância, de vítimas de toda uma sociedade e, neste caso, com o evidente componente de resultado expetável do consumismo e dos padrões sociais de ostentação. Mas não me parece justo criticarem-me esse tal esquecimento do quadro social. Leia-se melhor o segundo período do primeiro parágrafo.