quinta-feira, 30 de junho de 2011

Nós não somos gregos?

Ser colonizado sempre foi mau (nunca houve bom colonialismo). Ser colonizado, aceitar passivamente como ordem natural das coisas, é pior. Ser colonizado, aceitar a ordem colonial e ainda por cima pensar que, de facto, o colonizador é mais civilizado, mais evoluído, menos preguiçoso e mais sério, é muito pior. Ser colonizado e tudo isso mais e, ainda por cima, proclamar alto que se é mais venerador e admirador do dono do que o outro vizinho colonizado - não haja misturas com esse preto selvagem - é sórdido.
A tudo isto estamos a assistir, se olharmos em particular para Portugal e a Grécia. Portugal está a aceitar a nova ordem, como se viu pelos 78% de votantes na trindade interna espelho da trindade externa. A Grécia talvez tenha começado assim, mas agora que já alombou com um ano de austeridade, está a gritar na rua e, apesar de o plano sufocante de resgate ainda ontem ter sido ratificado no Parlamento, dizem as sondagens que cerca de 70% dos gregos estão contra.
Portugal acha que é mesmo mal comportado, merecedor de castigo, de juros de punição exigidos pelos seus “amigos europeus” mais altos do que os do FMI. Julga que não se pode comparar aos nórdicos trabalhadores, sérios, civilizados, como direi adiante. Muitos gregos acham já que, mais do que pagarem os erros dos seus governos, que reconhecem, estão a salvar os bancos franco-prussianos (expressão que, de guerra, passou a aliança).
Portugal (e já também a Espanha, a que se seguirá a Itália e sei lá quem mais) acha que ainda se pode safar se bater as todas as capelinhas dos poderes políticos e financeiros a garantir que “vejam bem, nós não somos a Grécia, até o programa de governo vai mais longe do que o memorando com a troika”. Os espanhóis vão dizer “nós não somos portugueses”, os italianos vão dizer “nós não somos espanhóis”, até os alemães acabarem a dizer “nós não somos europeus”.
Nos últimos dias, eu - e certamente que muita gente - tenho recebido informações “indiscutíveis”, daquelas que um mínimo de juízo crítico e sensatez levam, pelo menos, a dizer que quero primeiro confirmação. Confirmação que ainda não consegui em nenhum dos vários jornais europeus (ou o NYT) que leio diariamente, claro que na diagonal. Até me dizem que jornalistas da TV destacados em Atenas andam a reproduzir tais coisas.
“Um hospital de Atenas emprega 45 jardineiros para cuidar de quatro palmeiras. Os cabeleireiros são considerados como profissão de risco, com a possibilidade de se aposentarem aos 40 anos (com reforma por inteiro). Mais de 25% dos gregos não pagam impostos. As filhas de funcionários públicos que morrem, recebem pensão vitalícia de € 1000, etc.”
Ontem, ouvi um famoso economista dos que estão de serviço à TV dizer tudo isto e mais. Que, assim, os gregos não merecem a ajuda dos países amigos (!?). Passo melhor com os meus inimigos. Os nórdicos (digo assim para simplificar) estão a ajudar-se a si próprios. Em política, não há caridade, há defesa dos seus próprios interesses, muitas vezes dissimulando como interesses dos outros os seus próprios.
Não é preciso ser-se economista para se saber algumas coisas básicas. O euro é uma construção assimétrica, em que os periféricos entraram com sobrevalorização, e são o principal destino das exportações dos parceiros ricos, com os quais nem conseguem competir em relação a outros mercados. O euro foi um negócio franco-alemão em troca da unificação, mas em que a Alemanha impôs as regras viciosas do espaço do euro: falta de orçamento comum, obsessão com o controlo da inflação, falta de mecanismos de compensação intra-espaço euro, impossibilidade de emissão de dívida comum, etc.
A manutenção do euro não é vital para os periféricos, mas sim para os europeus ricos, que arriscam um desastre económico e financeiro se o euro ficar fragilizado, muito mais se desaparecer. Mas, note-se bem, o maior desastre não é, diretamente, para os estados e os povos. Só indiretamente, porque sujeitos ao domínio dos que seriam primeiramente atingidos, os bancos.
E a dívida dos PIGS (não consigo deixar de pensar na possível intenção ofensiva com que foi criada esta sigla)? Parece uma coisa abstrata, a entidades míticas que ninguém parece saber o que são, os tais “mercados nervosos”. Não, têm nome. No caso grego e português, não são Gekkos à Hollywood, são fundamentalmente bancos franceses e alemães (também espanhóis, no caso português). Afinal são esses tais nossos amigos? São os que vão ser “caridosos” quando forem confrontados com incumprimento? Para não encher isto de citações, apenas uma, com toda a informação e a mais autorizada no atual momento político: “Portugal na hora da verdade”, o recente livro de Álvaro Santos Pereira, ministro da Economia (2011, Gradiva, ISBN 978-989-616-413-3).
Mas também os bancos nacionais. Não tenho números, mas é voz corrente que detêm boa parte da dívida, como credores. Aliás, foi a sua decisão de não aceitar mais dívida que levou ao resgate pela “troika”. Também é público e não desmentido que essa dívida comprada pela banca portuguesa foi a que estava em leilão já a juros agiotas, de mais do que 10%, quando esses bancos a compraram com dinheiro emprestado pelo BCE a 1%. Grandes patriotas! Bem, emendo a mão: o que têm a ver os negócios com o patriotismo?
Passou-se o mesmo na Islândia. A sua enorme dívida, mas neste caso dos bancos islandeses, não estava difusa, era altamente centralizada em bancos ingleses e holandeses, a quem eles bateram o pé e não vão pagar sem grande discussão. Mas o que fizeram aos seus banqueiros? Nacionalizaram a banca e despediram-nos.
Centremos a atenção agora na nossa dívida. Muitas pessoas estão a incorrer no erro básico de só olhar para os cerca de 90% do PIB da dívida pública, do Estado. Com isto, dão ênfase, e obviamente com razão, às responsabilidades dos governos, pelo menos desde a época da adesão à então CEE. A despesa pública tem sido um escândalo, mas na velha tradição de toda a gente, no novo rotativismo, se “sentar à mesa do Orçamento”. Longe de mim desculpar o despesismo irresponsável dos sucessivos governos, sem exceção. Mas não é tudo. A dívida externa bruta, a nível nacional, é muito maior (ASP, pág. 222). Em 2010 era de 2235 do PIB, muito maior do que a da Espanha (164,7%) e mesmo, pasme-se, da falida Grécia (167,1%) (ASP, pág. 222). Mesmo em relação à dívida externa líquida, a nossa comparação com a falida Grécia é desfavorável: 109% contra 88% (ASP, pág. 227). Então em que é que somos diferentes dos gregos?
Voltando à dívida privada, quantas das pessoas que mandam mensagens e mais mensagens indignadas com os abusos do Estado ou com o consumismo dos gregos são grandes devedores, já não digo da casa, bem essencial (representando 75% da dívida das famílias, quase que única dívida das famílias de menores rendimentos; ASP, pág. 235), mas das férias anuais nos paraísos, dos cartões de crédito descontrolados, do plasma cada vez maior, do carro trocado ao fim de poucos anos, dos carros para cada um dos meninos? Isto não é dívida? E é a principal dívida, direta e indiretamente. Afinal, a dívida total (dívida externa bruta) vai para mais de 220% do PIB. Parte é de empresas (151% do PIB, ASP pág. 235), parte é dos particulares, através dos bancos (100% do PIB, ASP, pág. 235).
Quem foi na campanha agressiva de crédito feita pela banca, aos baixos juros permitidos pela adesão ao euro, não pensou - e nem sabe de economia política para pensar - que estava a alimentar esse monstro que é hoje a nossa dívida total. Claro que principalmente a dívida externa, porque os bancos, com pouco capital próprio (calcula-se que menos de 10% dos seus ativos), não alimentaram esses empréstimos com depósitos. Não estimularam a poupança, não a premiaram com retornos aliciantes, financiaram-se foi no exterior.
Portanto, senhores gastadores sem critério, com alto padrão de consumo, que hoje acusam o pobre zé de ter endividado o país, olhem primeiro para si e para os seus venerados banqueiros. Só depois digam que essas generalizações abstratas de “Portugal” ou da “Grécia” se portam mal, são irresponsáveis, merecem a falta de paciência e o castigo dos nórdicos bem comportados.
E será que os triplo-A são assim tão bem comportados? Em que se baseia o seu sucesso? Primeiro, houve momentos na sua história recente em que a propagandeada capacidade nacional de esforço patriótico, de construção da economia, escamoteia a grande participação financeira estrangeira (novamente, claro que por razões políticas, não desinteressadas): a grande ajuda à Finlândia depois da guerra com a URSS, a reconstrução das duas Alemanhas e da Áustria no pós-guerra, a ponte de Berlim, até a reunificação alemã.
Em segundo lugar, a competitividade destes países em relação às exportações, na impossibilidade de desvalorização da moeda, tem-se feito por desvalorização interna, por diminuição dos custos de trabalho, numa espécie de “dumping” social. Ser bem comportado, em termos do trabalhador alemão, é aceitar menores salários reais, menores benefícios sociais, menores regalias, em troca de um crescimento económico de que ele beneficia, é certo, mas em menor grau do que os empresários seus patrões.
Tudo isto só é possível pela hegemonia da ideologia dominante. De certa forma, cumpriu-se perversamente o “fim da história” anunciado por Fukuyama. Conjuntamente, o nascimento das ideias de Chigago que conduziram ao reaganismo-thatcherismo e a implosão do mundo comunista, perdendo-se a miragem de uma alternativa ao capitalismo, levaram a uma crença irracional no neoliberalismo, na primazia do capital financeiro, do papel “nacional” dos bancos. “Without you…”, já protestava Eliza no My Fair Lady.
E têm presente que essas santas instituições valem 47 mil milhões dos 78 que recebemos de empréstimo da “troika” (12 em recapitalização e 35 em garantias)? Estou a ser primariamente hostil aos bancos? Vejam o memorando trinitário e o programa do governo e tentem encontrar uma única medida de contenção dos lucros da banca, da distribuição de dividendos, do aumento dos impostos que pagam. Nem sequer o tal imposto extraordinário de que se falou no primeiro PEC e que ficou esquecido. Austeridade é para as pessoas.
Ninguém sabe o que vai ser a Europa e o seu euro daqui a um ano, daqui a um mês. A Grécia vai para o incumprimento? Ou, antes disso, para a reestruturação, "selvagem" ou controlada? E nós? Vai continuar a dizer-se na UE que os resgates tipo greco-português são dogma, que não há plano B, coisa que só pode ser afirmada por mentirosos, porque idiotas não são? Quem vai ganhar nesta divergência que se apercebe entre um governo alemão sem rumo e um BCE com rumo fixado por baias? Parece-me que, nesta incerteza, só haverá certeza no dia em que os bancos disserem “é assim que queremos que seja”.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

"Fait divers"

Vou falar de um “fait divers”, mas significativo, dos 45 minutos que demorei há pouco entre o Campo Grande e o Fonte Nova, na 2ª circular. As pessoas estão tão zangadas com “todos os políticos” que acham que o único problema é a corrupção, a desonestidade, a falta de ética. Não é. Isso é só o cume do iceberg permitido por coisas muito mais invisíveis, a incultura, o primarismo intelectual, o paroquialismo, o refastelanço na impunidade, a incompetência, o “funcionalismo”. O Estado é podre no cimo porque as suas raízes são podres.
Os funcionários públicos estão hoje na primeira linha das vítimas da austeridade, não há dúvida. Mas continuam a ser privilegiados em termos de relativa impunidade, não só pela lei mas principalmente pelos costumes e pela cultura política e administrativa, pela falta de sentido da exigência ética do serviço público. "Civil servant", na cultura britânica, é coisa que cá nem se imagina o que é.

Coisas que em qualquer empresa levariam a castigo duro e imediato empastelam-se na administração em intermináveis processos disciplinares cheios de garantias. Quando chegam a ser postos! porque eu tive experiência, na minha breve vida de dirigente, de me dizerem “olhe que isso não vai dar nada e só diminui a sua autoridade”. E tive um caso destes, de desautorização pelo reitor de um processo disciplinar óbvio a um professor, seu “par”. Corporativismo académico!
Uma via principal de Lisboa bloqueada em duas das suas três faixas às 15 horas de uma sexta feira, claro que só com um grande acidente, pensei eu. Afinal não. Eram três operários, a ritmo lento e com uma pequena escavadora a abrirem uma vala em duas das faixas de rodagem. Em qualquer país desenvolvido, isto despacha-se entre as 3 e as 6 da madrugada. Em Lisboa não. Quem deu ordem para tal enormidade? Certamente algum engenheiro da CML. Mas o Dr. António Costa tem poderes para mandar imediatamente para casa esse Sr X, para exemplo de todos os Srs Y nem se atreverem a tal imbecilidade? E se derem esse poder ao Dr. António Costa, não cai logo o Carmo e a Trindade do nosso garantismo?

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Pela boca morre o peixe

Ora aqui está um economista de renome que defende a reestruturação da dívida, não só por ser objetivamente o cenário mais provável mas também o mais desejável. Passo a citar:
“Uma das formas de os países muito endividados conseguirem evitar uma situação financeira mais delicada é a aceleração do crescimento económico. Neste sentido, não interessa necessariamente que a dívida de um país seja elevada. O que interessa é que os rendimentos desse país cresçam mais rapidamente do que a dívida. (…) Uma das causas do nosso elevado endividamento é precisamente o nosso crescimento medíocre nos últimos anos. Por isso, neste momento, e infelizmente, esta saída não parece exequível. 
Outra possibilidade de tornar a nossa dívida menos problemática e evitar uma situação de incumprimento poderia ser o estabelecimento de uma união fiscal europeia, na qual existiria uma maior integração das políticas fiscais e mecanismos de redistribuição fiscal entre os países da Zona Euro. (…) Como é evidente, o grande problema deste cenário é que não parece haver grande interesse ou vontade política por esta opção, nem em países como a Alemanha (que decerto seria um dos grandes financiadores dos Estados em dificuldades), nem nos países da periferia europeia (que perderiam ainda mais a sua soberania económica para os países financiadores da união fiscal). Por isso, o cenário de uma união fiscal europeia não parece exequível. 
Um cenário alternativo, mas igualmente pouco provável, seria o fim do euro, ou a saída unilateral de alguns países da moeda única europeia. Esta possibilidade não está totalmente posta de lado, apesar de não ser muito provável. (…) 

Finalmente, há ainda a possibilidade de reestruturar a dívida dos países em dificuldades, com uma possível insolvência parcial de um ou mais países e/ou o reescalonamento e a renegociação das dívidas soberanas nacionais. Neste caso, os países em dificuldades tentariam não só aumentar os prazos de pagamento das suas dívidas, mas também conseguir melhores facilidades de pagamento. Como? Quer através da redução das taxas de juro ciadas às suas dívidas, quer inclusivamente renegociando montantes do endividamento. Por isso, neste caso, os detentores das obrigações desses Estados seriam forçados a partilhar os custos da reestruturação da dívida. Esta é, de facto, a hipótese provável e, porventura, também a mais desejável.
(…) É possível e até provável que não consigamos evitar uma reestruturação das nossas dívidas. (…) perante o terrível leque de opções que enfrentamos, (…) a solução menos má parece ser a da reestruturação das nossas dívidas.” [JVC - itálico meu]
Quem escreveu isto, há bem pouco tempo, no seu livro muito auto-propagandeado (blogue Desmitos) e vendido, “Portugal na hora da verdade”? Álvaro Santos Pereira, que certamente vai atuar coerentemente com estas ideias agora que é ministro da Economia.

Pode fazer o favor de falar claro?

Excerto de uma entrevista de Francisco Louçã ao Correio da Manhã.
– Considera que Vítor Gaspar foi uma escolha acertada para comandar as Finanças do País no actual momento de dificuldades que atravessamos?
– Acredito que aplicará o memorando [da troika] da melhor forma que puder. Mas na verdade há um catálogo de medidas que têm de ser cumpridas, não há, de facto, muita margem.
Que medidas do plano de resgate, vulgo memorando, têm mesmo de ser cumpridas, para o coordenador do BE que defende a “renegociação” da dívida? Esta afirmação de Louçã é um espanto, porque a ambiguidade da resposta deixa aberto o caminho a todas as interpretações. 
Em política, ou isto é propositado e, em geral, é sinal de oportunismo, ou é um erro de palmatória. Será que o BE, depois do dia 5, ficou desnorteado? Os casos Rui Tavares, Daniel Oliveira e até, sibilinamente, Miguel Portas, mais a eleição de Fazenda, fazem crer que sim, que os tempos não andam bons para o BE.
Voltando à notícia do CM, é mesmo tempo de o BE explicar claramente, preto no branco, o que entende por “renegociação”. Será mesmo igualzinho ao que eu e muita gente ilustre entende como “reestruturação”? 

domingo, 19 de junho de 2011

Daqui a tempos, na rua

Cada vez mais os partidos vão deixar de corresponder às aspirações dos eleitores e muito mais dos que já nem querem ser eleitores ou votam no não-partido, o branco. Nem o grande dilema de hoje - o que fazer em relação à dívida e ao pacto com a “troika”? - ajuda a reconciliar muitas pessoas com os partidos, no seu panorama atual. É verdade que, aparentemente, há um campo partidário do “não” à submissão, PCP e BE, mesmo que valendo pouco mais do que 10% do eleitorado. Mas nem isso, porque não se comporta como alternativa coerente e unida, não dá expetativas de poder exercer o poder a médio e muito menos a curto prazo, porque não consegue transmitir uma imagem de superação de clichês antigos, porque a sua atitude de “não” à sujeição, por emblemática que seja nesta fase, não basta para fazer esquecer muitos erros, compromissos, vícios de comportamento.
A culpa não é só sua. Talvez até muito menos sua. O campo do “não” devia ter a amplidão daquilo que, para muitos, generosa mas talvez ingenuamente, é a esquerda, isto é, incluindo o PS. Em tempo útil, que é, para já, esta luta crucial contra a espiral de recessão, empobrecimento, desemprego, esta luta por uma alternativa do “não” (para mim, como tenho escrito, mas que agora não posso desenvolver, a reestruturação da dívida, sem eufemismos de “renegociação”) não conta com o PS, infelizmente. Os seus eleitores votaram com a direita neste aspeto fundamental. Os seus militantes endeusaram o querido líder ainda há pouco. Os dois candidatos de agora garantem o respeito escrupuloso pelos compromissos. Os seus notáveis assinaram manifestos de bem comportados, de braço dado com a mais retinta direita.
Que não fiquem dúvidas: desejo a companhia na luta de muitos e muitos socialistas, desejo que contribuam para a unidade da esquerda, desejo que estimulem, com a sua atitude própria de verdadeira social-democracia a reflexão dos outros partidos de esquerda sobre vícios e visões esquemáticas em que estão enquistados. Mas não sou parvo e não vou condicionar a minha atitude a curto prazo, ainda por cima no prazo das grandes decisões, por sonhos longínquos.
Assim, quando as coisas começarem a doer, as pessoas vão-se lembrar do que agora estão a ver na televisão como quem vê um “fait divers”, a Grécia a sair à rua. É só diferença de um ano, porque de resto é a mesma história, no essencial, mesmo que com algumas diferenças quantitativas: o mesmo problema essencial de endividamento, de falta de competitividade por adesão errada ao euro, de quase nulo crescimento económico, um setor financeiro muito dependente do crédito externo e com confusão entre atividade bancária tradicional e especulação financeira, quase total unanimidade dos partidos políticos em relação às regras do bom pensamento europeu neoliberal. 
Então porque é que o que se está a passar na Grécia - falhanço do resgate, amordaçamento da economia pela atitude de castigo por parte dos “bons europeus”, castigo até nos juros europeus - FEEF e BCE - superiores aos do FMI (como cá), manutenção de juros incomportáveis no mercado secundário da dívida, adiamento da previsão de possibilidade de regresso ao mercado, necessidade de novo empréstimo de resgate, desemprego, agitação social - não se há-de passar em Portugal, com o lapso de um ano que temos em relação à crise grega? Provem o que por aí dizem e ainda não vi demonstrado, que “Portugal não é a Grécia”.
Tudo isto junto, crise do sistema partidário e seu descrédito (carreirismo, mediocridade, falta de sentido do bem público, “jobs for the boys”, corrupção, promiscuidade com as empresas, etc.), falta de credibilidade de facto dos partidos do “não”, descontentamento social exponencial quando a política austeritária e o garrote do resgate se fizerem sentir em breve, a resposta, não haja dúvidas, virá da rua.
Não é inevitabilidade que me alegre obrigatoriamente. É previsão objetiva pelo menos para quem tem o sentido da dialética e do processo histórico. Vejo a rua como um grande parteiro da história, mas que muitas vezes, mesmo sem dolo, comete erros. Robespierre, no momento final no patíbulo, talvez se tenha arrependido do Terror, mas não o pôde controlar. E, ao mesmo tempo que toda a gente na rua cheia de razão, pode andar pela rua um cavalo do poder pronto a ser montado por qualquer Sidónio ou Gomes da Costa, para só falar da história portuguesa próxima.
Mesmo sem se poder controlar a rua, há coisas desejáveis. Obviamente, evitar o que possa alienar a simpatia de muitas pessoas: violência, vandalismo, sequestro de pessoas, ocupação de espaços de órgãos de soberania democrática e obstrução do seu funcionamento. Isto é banalidade. Menos banal é a questão das bandeiras de mobilização e das palavras de ordem. É bem frequente que, ao contrário da precedência “ideias-rua”, valha o inverso, “rua-ideias”. Pior é quando, inconsequentemente, só há rua, sem ideias nem antes nem depois.
As agitações sociais em Portugal, nos últimos tempos, principalmente personificadas por jovens, têm-me parecido frustrantes, neste aspeto. Não quero ser paternalista, mas também não vou incorrer no vício de infantilismo que tenho visto em muita gente madura que, talvez complexadamente, se baba acriticamente com tudo o que seja esta nova “movimentação social”.
A grande manifestação de 12 de Março teve motivações circunscritas (o desemprego e precaridade de trabalho dos jovens, principalmente dos universitários - logo algum elitismo) e creio que só se agigantou porque a onda foi surfada por muitos e muitos outros descontentes, até muito mais velhos. Depois foi o que se viu, uma mão cheia de nada, nenhuma ação eficaz e minimamente organizada, nem sequer o uso eficaz da net, com que tudo tinha começado. Uma ou outra declaração justa e interessante, mas de  política convencional, parece-me que muito pouco sobre o essencial hoje, a economia.
O mesmo com os acampados do Rossio. Digo honestamente que nunca os ouvi, falo só do que me contaram. Posso estar a ser injusto. Muita retórica, muitas intervenções relativamente vagas sobre a insatisfação com a democracia parlamentar, sobre a necessidade de democracia direta, de participação, de renovação do sistema. De propostas concretas, de configuração económica da sociedade, do malfadado resgate, da banca, do euro, da UE neoliberal, não ouvi dizer nada. Certamente que aquelas considerações sobre o sentimento de não-representação muito sentidas pelos jovens de classes educadas que lá estavam, certamente que também por mim que já não sou jovem mas que há muitos anos já discutia isso. Todavia, coisas que pouco dizem aos que realmente estão à rasca.
Concluindo, vem tudo isto a propósito do que li hoje, como afirmações de “indignados” em Madrid (porque é que temos sempre de aprender com os estrangeiros?). “Os manifestantes, sobretudo jovens, protestam contra as medidas decididas para enfrentar a crise, a actuação dos bancos e dos políticos. Mas é sobretudo o Pacto do Euro – o acordo conseguido em Março pelos Vinte e Sete para aumentar a competitividade e combater os défices galopantes – que preocupa o movimento. “Vêm aí mais cortes brutais”, disse ao “El País” Luis Fernández, da associação de desempregados Adesorg, acusando a classe política de “ter vendido o país, que já não é dos espanhóis, é da banca”.
Assim, sim, “a la calle!”

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Os futuros juizes

O caso da fraude num exame do Centro de Estudos Judiciários é tão tristemente eloquente que não estava a pensar falar sobre ele. Falei, sim, com os meus alunos, que estavam surpreendidos: “são os juízes que me podem vir a julgar?”. “Se eu fizer isto aqui na universidade chumbo”. E até aceitam, embora com alguma desadequação à brandura dos nossos costumes, que tal coisa resulte, na cultura universitária anglo-saxónica, em expulsão da universidade.
No CEJ, resultou na “brutal penalização” de serem corridos a 10 valores, mas obviamente aprovados. Hoje, depois de todo o alarido de protesto que por aí anda, ouço que afinal parece que o exame vai ser repetido. Isto é, todos esses aldrabões (nem sequer jovens estudantes, porque já todos licenciados ou mestres em Direito) vão ter uma segunda oportunidade de se apresentarem a exame e eventualmente passarem. Dirão os ingénuos que isto salvaguarda a justiça para com os que não copiaram. Quanto a isto, convém esclarecer alguns aspetos técnicos, embora eu não disponha de todos os dados.
A prova foi de escolha múltipla, os chamados, impropriamente, testes americanos. Por norma, não é possível copiar, pela simples razão de que é regra elementar que eles são diferentes. O conteúdo é o mesmo, mas varia a ordem das perguntas e a ordem das respostas a cada pergunta. Perguntar ao vizinho qual a resposta à pergunta x é quase certo receber informação errada. Se o CEJ não fez isto, então o problema é de ser supinamente incompetente, pedagogicamente.
Por outro lado, ao contrário do que se escreve, não parece tratar-se de copianço, que de forma alguma explica quase 100% de coincidência de respostas certas a perguntas difíceis e de respostas erradas a perguntas muito fáceis (o que significa que alguém, ao divulgar a chave, errou e difundiu o erro). Essa coincidência total indica que se conheceu previamente o teste e que todos tiveram acesso à resposta elaborada por alguém. Contra o copianço joga também o facto de os alunos estarem distribuídos por várias salas, relativamente afastados e vigiados por várias pessoas.
Portanto, das duas uma: ou todos são culpados, o que parece provável, ou alguns, não tendo beneficiado mas, num grupo pequeno, certamente tendo conhecimento da fraude, não a denunciaram. Por outro lado, parece óbvio que houve corrupção, com alguém, eventualmente de serviços académicos ou de reprografia, a passar o ponto aos alunos. Tem de haver um inquérito rigoroso a todo este caso lamentável.
A meu ver, os que ouvi hoje, desde o PGR até ao conhecido observador da justiça portuguesa, ao defenderem a solução da repetição do exame, estão a pregar mais um prego no caixão em que está a ser enterrada, pelos seus filhos e amigos, a moribunda justiça portuguesa. Também este caso parece demonstrar que o problema não é abstratamente sistémico. É, como sempre, humano, de gente que vai julgar os erros e crimes da sociedade mas que reflete já, em cultura, ética e comportamento videirinho, o que de pior tem esta sociedade. Não tenho qualquer dúvida em defender que, neste caso, este curso do CEJ devia ser pura e simplesmente expulso.
NOTA - A propósito disto, ouvi hoje um professor universitário, tido como muito progressista, afirmar que as provas de escolha múltipla não são um bom processo de avaliação e que nada chega a uma tradicional prova oral, com assistência de público. Como é possível?!

quarta-feira, 15 de junho de 2011

"Sound bite"

Não pode haver lugar de maior confiança política do que chefe de gabinete. Passos Coelho escolheu um diplomata, Ribeiro de Menezes. Era até agora chefe de gabinete de Luís Amado, já tinha sido de Jaime Gama. Dupont e Dupond? Há gente com uma enorme habilidade para conviver com deus e com o diabo.

Em duas simples frases

Hoje, só se viu a Grécia na rua. Um dia destes, será Portugal.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Gente séria, sensata, bem comportada

Ia deixar este comentário no bom “post” do José Correia Pinto, no Politeia, sobre o discurso acaciano de Barreto, mas acabou por sair longo e a merecer destaque no meu “blogue”. O tema, não o diz CP mas provavelmente pensa e digo eu, era o da venalidade, em sentido lato, dos nossos intelectuais.
Deixo de lado, em resposta ao “post”, adjetivações que também muito me apetecem. Mas o importante é ver como uma data de gente, pomposa, exausta, arredondada, suavizada e alentada de voz, solenes - afinal não resisto aos adjetivos! -, impera mediaticamente. Domina em hegemonia - ah, nosso caro Gramsci! Dão cobertura de maior nível cultural aos economistas e serventuários de obrigação.
Muito tipicamente, são os subscritores sensatos, sábios, bem comportados, do manifesto dos 47, “Um compromisso nacional” (nacional, uma das mais perigosas palavras!). Os que dizem que é imperioso um compromisso entre o Presidente da República e os principais partidos para que o governo (então Sócrates) tenha plenas condições para governar, com base nos PEC (ainda não havia os acordos com a troika).
Tenho dito que o primeiro dever de um homem de esquerda é distinguir-se dos falsos homens de esquerda, os que a mancham. Lendo os subscritores desse infeliz manifesto, tenho de apontar a dedo alguma gente. Dizem-me que muitos deles foram levados por pressão dessa vetusta mas parece que ainda eficaz figura manobradora que é Mário Soares. Não me interessa, não me leva a desculpá-los.
É gente adulta e que deve saber o que faz ao assinar manifesto tão triste, convencional, intelectualmente medíocre, centro-pantanoso (politicamente, “le marais”).
Afligem-me os nomes dos tidos como gente de esquerda, não me importa que me chamem de denunciante pidesco. Melhor até é começar pelos que fariam pensar na junção da assinatura: Adriano Moreira, Alexandre Soares dos Santos,  António Lobo Xavier, Belmiro de Azevedo, Daniel Proença de Carvalho, Manuel Braga da Cruz, Maria de Fátima Bonifácio, Paulo Azevedo, etc. A direita sem disfarce, ou isso já não existe? Não pensaria duas vezes em pôr o meu nome ao seu lado?
Tudo com a cobertura dos “senadores”, cada vez mais balofos, mais insignificantes, mais embrulhados em retórica vazia: os ex-presidentes, mais outros veneráveis, espaldados em vago passado de pergaminhos de vanguarda ideológica, hoje instalados em fundações e outras instituições respeitadas. E claro que, ridículo dos ridículos, oh gente do meu tempo, António Barreto.
A seguir, grande lista de “intelectuais”, artes e ciências, que quase por natureza da sua mentalidade especial, nunca sabem nada de política, nem devem ter percebido patavina do que subscreveram, deviam escrever só do que sabem mas não resistem a emprestar o seu renome cultural à conhecida porca. Também os funcionários, os dignitários do regime, lamentavelmente, para mim, com destaque para o meio académico e científico, reitores e investigadores reputados, bom número de prémios Pessoa.
Pior, muito pior, indesculpável, é ver preto no branco as assinaturas de gente que marca a nossa memória antiga e recente da coerência de esquerda radical ou que nunca desmentiram a sua simpatia por essa esquerda. Mais vergonhosamente, quem, mesmo depois dessa subscrição, continuou a fazer a sua demagogia esquerdista.
Será que cheguei à situação surrealista de dizer que, neste panorama da nossa “intelectualidade”, acabo por reconhecer maior mérito e coerência é a pessoas como Pacheco Pereira ou Pulido Valente?

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Um comentário interessante

Nenhum meu leitor fiel - se é que mereço tal honra - duvida da minha simpatia pela reestruturação da nossa dívida. Insisto sempre que reestruturação, para mim, é muito mais do que aquela coisa bem comportada, de devedor de chapéu na mão, a pedir um favorzinho ao patrão, de que falam alguns “renegociadores”. Mas estou aberto a toda a discussão, até porque, como escreverei um dia destes, espero que os meus amigos economistas me esclareçam muitas dúvidas técnicas que tenho sobre a reestruturação e os seus custos (embora convencido de que estes custos são menores do que os da espiral recessionista do resgate da “troika”).
Neste sentido, não resisto a transcrever um comentário invulgar da blogosfera. É uma resposta a um “post” dos Ladrões de Bicicletas, “O que fazer com esta dívida? O que é a auditoria e como se faz”, de José M. Castro Caldas. O autor do comentário, com pseudónimo “Louva a greve permanente em Deus” e visivelmente um latinoamericano de escrita, com uma intervenção na net muito curiosa mas a precisar de mais atenta análise, escreve o seguinte, a fazer pensar. Não subscrevo inteiramente o comentário, mas repito que me parece merecer reflexão.
“Reestruturação da dívida num país com os recursos geológicos e sílvícolas y agro-industriais do Equador e de moneda autónoma não é o mesmo que fazê-lo num país cheio de burguesitos assoberbados pela sua importância que nunca trabalharam grande coisa na sua vida e raramente passaram dificuldades.
É um pouquinho diferente.
Não esquecer que Portugal não tem fome há 65 anos e fome não é passar duas semanas sem comer."

sexta-feira, 10 de junho de 2011

"Yo no creo en brujas..."

Pero que las hay, hay! Dominique Strauss Kahn é culpado ou não? Claro que não digo uma palavra sobre isto. O que não me impede de ter em conta um ou outro aspeto que apenas tem a ver com a minha miserável inteligência. O homem tem um passado tenebroso de mulherengo. E depois?! Mulherengo quer dizer “engatatão”, sedutor, venerador de Casanova. Nada de venerador de D. Juan. Muito menos violador violento, a negação absoluta da autoestima de um conquistador. Depois a história da fuga à pressa, esquecendo o telemóvel. Afinal, telefonando para o hotel dizendo onde estava, no aeroporto, e pedindo a entrega do telemóvel, localizou-se à polícia, que o foi logo prender. O homem é assim tão estúpido? Fico a aguardar pela decisão da justiça, mas tenho o palpite de que a patetice de DSK foi ter acreditado numa oferta de “fruta” (onde é que já ouvi isto?…)
Dito isto, não vou entrar em teorias da conspiração. Mas este caso, seja DSK culpado ou inocente, acaba por ter importantes consequências políticas. Não falando agora nas presidenciais francesas, vou transcrever um bom texto que me foi enviado, sem identificação de origem, sobre o risco que DSK estava a representar para a nuvem tenebrosa e anónima dos interesses financeiros. Passo a citar.
“Dominique Strauss Kahn foi vítima de uma conspiração construída ao mais alto nível por se ter tornado uma ameaça crescente aos grandes grupos financeiros mundiais. As suas recentes declarações como a necessidade de regular os mercados e as taxas de transacções financeiras, assim como uma distribuição mais equitativa da riqueza, assustaram os que manipulam, especulam e mandam na economia mundial. 
Não vale a pena pronunciar-nos sobre a culpa ou inocência pelo crime sexual de que Dominique Strauss Kahn é acusado, os media já o lincharam. De qualquer maneira este caso criminal parece demasiado bem orquestrado para ser verdadeiro, as incongruências são muitas e é difícil acreditar nesta história. 
O que interessa aqui salientar é: quem beneficia com a saída de cena de Strauss Kahn? 
Convém lembrar que quando em 2007 ele foi designado para ser o patrão do FMI, foi eleito pelo o grupo do clube Bilderberg, do qual faz parte. Na altura, ele não representava qualquer "perigo" para as elites económicas e financeiras mundiais com as quais partilhava as mesmas ideias. 
Em 2008, surge a crise financeira mundial e com ela, passados alguns meses, as vozes criticas quanto à culpa da banca mundial e à ao papel permissivo e até colaborante do governo norte-americano. Pouco a pouco, o director do FMI começou a demarcar-se da política seguida pelos seus antecessores e do domínio que os Estados Unidos sempre tiveram no seio da organização. 
Ainda no início deste mês, passou despercebido nos media o discurso de Dominique Strauss Kahn. Ele estava agora bem longe do que sempre foi a orientação do FMI. Progressivamente o FMI estava a abandonar parte das suas grandes linhas de orientação: o controlo dos capitais e a flexibilização do emprego. A liberalização das finanças, dos capitais e dos mercados era cada vez mais, aos olhos de Strauss Kahn, a responsável pela proliferação da crise "made in America". 
O patrão do FMI mostrava agora nos seus discursos uma via mais "suave" de "ajuda" financeira aos países que dela necessitavam, permitia um desemprego menor e um consumo sustentado, e que portanto não seria necessário recorrer às privatizações desenfreadas que só atrasavam a retoma económica. Claro que os banqueiros mundiais não viam com bons olhos esta mudança, achavam que está tudo bem como sempre tinha estado, a saber: que a política seguida até então pelo FMI tinha tido os resultados esperados, isto é os lucros dos grandes grupos financeiros estavam garantidos. 
Esta reviravolta era bem-vinda para economistas progressistas como Joseph Stiglitz que num recente discurso no Brooklings Institution, poderá ter dado a sentença de morte ao elogiar o trabalho do seu amigo Dominique Strauss Kahn. Nessa reunião Strauss Kahn concluiu dizendo: "Afinal, o emprego e a justiça são as bases da estabilidade e da prosperidade económica, de uma política de estabilidade e da paz. Isto são as bases do mandato do FMI. Esta é a base do nosso programa". 
Era impensável o poder financeiro mundial aceitar um tal discurso, o FMI não podia transformar-se numa organização distribuidora de riqueza. Dominique Strauss Kahn tinha-se tornado num problema. 
Recentemente tinha declarado: "Ainda só fizemos metade do caminho. Temos que reforçar o controlo dos mercados pelos Estados, as políticas globais devem produzir uma melhor distribuição dos rendimentos, os bancos centrais devem limitar a expansão demasiado rápida dos créditos e dos preços imobiliários Progressivamente deve existir um regresso dos mercados ao estado". 
A semana passada, Dominique Strauss Kahn, na George Washington University, foi mais longe nas suas declarações: "A mundialização conseguiu muitos resultados...mas ela também um lado sombrio: o fosso cavado entre os ricos e os pobres. Parece evidente que temos que criar uma nova forma de mundialização para impedir que a "mão invisível" dos mercados se torne num "punho invisível". 
Dominique Strauss Kahn assinou aqui a sua sentença de morte, pisou a alinha vermelha, por isso foi armadilhado e esmagado.”

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Vale a pena ler

Como os meus leitores já devem ter notado, não tenho militância nem sequer especial simpatia em relação ao Bloco de Esquerda. Para não haver dúvidas, repito que sou de esquerda, convictamente, mas com total independência em relação a partidos ou associações políticas organizadas. Isto não impede - até exige - uma atenção crítica, permanente à atividade e propostas desses partidos.

Um bom elemento de reflexão é a entrada de hoje de Daniel Oliveira, no Arrastão, "Como o Bloco chegou à hora da verdade". A meu ver, um texto isento, rigoroso, desapaixonado. Vale a pena ler. Parabéns a Daniel Oliveira. Gostava de ler um texto do mesmo género escrito por um militante do PCP.

(Imagem retirada do "post" de D. Oliveira)

terça-feira, 7 de junho de 2011

Ordinarice

Ninguém imagina que eu simpatize, politicamente - e até pessoalmente - com Paulo Portas. Mas tenho algum sentido das maneiras e da elegância de discussão, embora veja que as pessoas, mesmo educadas, estão tão zangadas que se portam como alarves intelectuais, perderam o sentido mínimo da racionalidade e da objetividade.
O que hoje fez Ana Gomes é de uma baixeza inaudita. Diz a senhora, que parece estar a fazer renascer em si o primarismo mental e ético do seu passado MRPP, que Portas não tem idoneidade política nem pessoal (!) para estar no governo. Quanto à idoneidade política, fala nos submarinos e até aí muito bem. Quanto à idoneidade pessoal, alude sibilinamente a Strauss Kahn e continua dizendo que um provável MNE é muito vulnerável a chantagens de serviços secretos estrangeiros. Diz que "é uma posição particularmente vulnerável quando há aspectos questionáveis de comportamento pessoal". E lá vai dizendo que sente ser seu “dever de cidadania dizer aquilo que muitos sabem e calam”.
Toda a gente percebe do que ela está a falar. Mas é ordinarice. O nível a que chegou a política! 

domingo, 5 de junho de 2011

O PS vai acordar?

Pode um homem de esquerda, como eu, deixar de ficar triste por a direita pura e dura ter ganho as eleições e ir formar governo? É coisa complicada que não se compadece com o que se vai ouvir do PS oficial, que a esquerda radical traiu, fez o jogo da direita, provocou eleições que deram a maioria ao PSD com o CDS. Em primeiro lugar, a esquerda radical traiu quem? Traiu a esquerda em sentido amplo? O PS de Sócrates fazia parte dessa esquerda, em atos que não só palavras (e até nem sequer em palavras, a menos que bastasse falar em estado social para ser esquerda)? A esquerda radical e os seus eleitores como eu traíram a possibilidade de uma política menos neoliberal, menos obediente ao colonialismo troikista, como se alguém imaginasse que o PS de Sócrates seria essa possibilidade?
Não considero dramática a vitória do PSD-CDS, porque também vejo nela alguns aspetos secundários não inteiramente negativos. Claro que não deixo de ficar alerta para o maior risco desta maioria mais facilmente fazer com a “troika” festa de mal e caramunha. Mas sou realista e vejo que quase 80% dos eleitores votaram na “troika” interna que reflete a “troika” externa. Nada se fará sem parte considerável desta gente começar a sentir o que significa este seu encarreiramento na via do resgate que os vai empobrecer. Assim, não sendo adepto incondicional do quanto pior melhor, aceito suficientemente a dialética para pensar que, por vezes, uma agudização consentida (isto é, pelos adversários) da opressão pode criar mais rapidamente condições de luta.   
Não posso falar da derrota do PS sem a ligar à retirada de Sócrates. Só decidi escrever esta nota depois de o ouvir dizer que saía, preto no branco. Até lá, por mais inconcebível que fosse ele não se demitir, fiquei reservado, porque o homem já nos habituou a tudo. E daí vem a primeira nota sobre a minha “satisfação” (relativa, entenda-se) com estes resultados. Resolveu-se um problema de sanidade pública, abriu-se um abcesso que estava a causar danos à própria democracia, com muita gente a detestar a figura de Sócrates mas refletindo esse quase ódio num desgosto com todos os políticos, pior, com a democracia. Portugal vai ficar menos envergonhado por não ter de se rever, como imagem exterior do país nas esferas de governo, em tão incrível figura.
Mais importante, a substituição de Sócrates abre a porta a um acordar do PS. Pelo menos teoricamente. Naquilo que, nos próximos tempos, é o centro da luta política, a recusa da sujeição aos ditames externos, qualquer participação do PS, mesmo de militantes avulsos, era impossível. Não digo que agora, milagrosamente, vá ser possível mas, teoricamente, é hipótese menos fantasista. Pode-se contar mais, mesmo que minimamente, com um PS na oposição e sem Sócrates do que com o que era o PS até esta noite. O mesmo em relação à possibilidade de lutas conjuntas da CGTP e da UGT.
Nos próximos tempos, sem desprimor para a ação parlamentar, a luta estará cada vez mais na rua. Até agora, ninguém viu os anónimos PS, anestesiados. Vamos vê-los agora? Por mim, espero vê-los e dar-lhes fraternalmente o braço.
NOTA 1 - No entanto, o episódio caricato e incrivelmente inepto da declaração de Seguro não augura nada de bom. Não me lembro de algum exemplo tão falante da fábula do coice do burro no leão moribundo. Admito que, se fosse adepto de Sócrates, estaria chocado. O homem não podia ter contido a sua sofreguidão e ter deixado a noite de hoje para o luto dos seus camaradas socráticos? Vai haver ódios ferozes no PS, nesta renovação de liderança.

NOTA 2 - E Louçã?

sábado, 4 de junho de 2011

La donna e mobile

Dos vários intervenientes na política de emergência tardia na crise europeia da dívida soberana, ministros do Ecofin e Comissão europeia por intermédio do FEEF, FMI, BCE, parece indubitável que é este último o mais ortodoxo. Só atende ao controlo da inflação, limita a sua intervenção na compra de dívida no mercado secundário, não quer ouvir falar em reestruturações, uma catástrofe.
O presidente do BCE chama-se Jean-Claude Trichet.
Nos finais dos anos 80, alguns países da América latina e do leste europeu foram socorridos pelo chamado Plano Brady. Entre outras coisas, houve reestruturação da dívida, com cortes no montante (“haircuts”) mas também emissão de novos títulos que garantiram aos bancos credores, até por via de um instrumento contabilístico (regra FASB 15), compensação do “haircut”. O plano foi concebido e posto em prática pela Reserva Federal dos EUA, pelo FMI, pelo Banco Mundial e pelo “Clube de Paris”, uma organização informal dos países ricos credores.
O presidente de então do Clube de Paris chamava-se Jean-Claude Trichet.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Como vou votar? (2)

O voto branco é tão significativo, como sinal de rejeição do apodrecimento do sistema partidário, que eu próprio já estava a habituar-me a ele. No entanto, pelas razões que aduzi, desta vez quero votar no que, sem ambiguidade, significa a rejeição do austeritarismo, da sujeição quase (?) colonialista à santa trindade resgatadora, acolitada pela sua trindade interna. Aparentemente, isto significa votar PCP (não quero falar em CDU…) ou BE. Em qual?
Pensei até há pouco, até um “clique” final, que ia ser muito difícil a escolha. Quantas coisas a ponderar! Num caso e noutro, a modernidade ou não da ideologia, a sua correspondência às enormes mudanças sociais derivadas da evolução do capitalismo, da estrutura social, da técnica e da estrutura do trabalho, à alteração da atitude psico-social em relação às aspirações sociais, etc. (vantagem para nenhum). O posicionamento internacional, em relação  às escolhas de “partidos irmãos” (ponto claramente negativo para o PCP) ou ao maior ou menor realismo de uma luta por uma União Europeia diferente, num caso vista com reserva talvez extremada, noutro caso como ideal. O comportamento interno, que de certa forma faz prever o comportamento no poder (vantagem para o BE?). Claro que também as propostas concretas, noutros domínios (também vantagem para o BE). E até, porque não, a minha reação intuitiva em relação à personalidade, temperamento, caráter adivinhado dos dirigentes, até porque conheço bem muitos, e de um lado e outro (vantagem para o PCP)?
Por toda esta complexidade, pensei que não iria escrever sobre isto, por risco de azedume de críticas e por não ser possível, neste espaço, analisar todas aquelas questões. Todavia, pensei que era atitude sem muita coerência. Então digo que nenhum dos partidos me agrada muito, digo que votaria branco como protesto e que só não o faço porque o crucial domingo é o “não” ao resgate, porque quero dizer claramente “sim” à reestruturação, digo tudo isto e vou ficar limitado por toda essa misturada de razões de dúvida? Parece-me que o lógico é votar, mesmo que de olhos fechados a muito lastro negativo, naquele partido que melhor me responda a esse meu objetivo central de votar “não”.
No meio de tanto jogo de palavras, repito o que quero que me proponham como reestruturação (ou renegociação se, honestamente, estiverem a dizer a mesma coisa): 1. Um processo com vários componentes, não obrigatoriamente todos necessários, mas nenhum excluído à partida: anulação da dívida odiosa, redução do valor de parte da dívida (“haircut”), redução das taxas de juro, dilação dos prazos de amortização. 2. Um processo em que o devedor não se limita a pedir respeitosamente um jeitinho, mas em que ele decide, obviamente que tentando ao máximo negociar a aceitação pelos credores, mas com capacidade de ter soberanamente a última palavra, claro que pesando e assumindo os custos.
Então o que dizem os dois partidos sobre a reestruturação? 
Do compromisso eleitoral do PCP/CDU: 
“A renegociação imediata da dívida pública portuguesa – com a reavaliação dos prazos, das taxas de juro e dos montantes a pagar (sublinhado JVC) – no sentido de aliviar o Estado do peso e do esforço do serviço da dívida, canalizando recursos para a promoção do investimento produtivo, a criação de emprego e outras necessidades do país. Esta decisão, condicionando desde já o pagamento de parte dos compromissos de curto prazo da Dívida Pública e a tomada de outras medidas – por exemplo, a transformação de créditos externos de entidades públicas, expressos em obrigações e títulos de dívida de longo prazo, em títulos portugueses – permitiriam responder às preocupações com as dificuldades de financiamento/liquidez imediatos do Estado!
A intervenção junto de outros países que enfrentam problemas similares da dívida pública – Grécia, Irlanda, Espanha, Itália, Bélgica, etc. – visando uma acção convergente para barrar a actual espiral especulativa, a par da adopção de medidas que libertem os países visados das inaceitáveis imposições e políticas da União Económica e Monetária e do BCE, da Governação Económica e do Pacto para o euro mais, e visem o crescimento económico, a criação de emprego e a melhoria dos salários.
A diversificação das fontes de financiamento, retomando uma política activa de emissão de Certificados de Aforro e de Tesouro e de outros instrumentos vocacionados para a captação de poupança nacional, bem como o desenvolvimento de relações bilaterais encontrando formas mais vantajosas de financiamento. Uma política de diversificação também das relações comerciais, mutuamente vantajosas, com outros países designadamente de África, Ásia e América Latina.”
Do compromisso eleitoral do BE:
Auditoria à dívida: (…) é necessário conhecer a composição das dívidas pública e privada, a sua origem, os seus prazos e os seus juros. A dívida deve ser paga por quem a cria. A parte do Estado é a mais pequena, mas inclui já hoje parcelas ilegítimas, resultantes de juros abusivos e negócios de corrupção e favorecimento. Para decidirmos sobre a dívida, é necessário separar o trigo do joio.”
Concordo, mas quais as consequências práticas da auditoria? Por exemplo, ainda hoje um comentador do Público acha que a auditoria deve servir para “identificarmos os erros do passado, e responsabilizando politica e legalmente os eventuais transgressores que tenham ajudado a aumentar a dívida (…) e compreendermos se é justificável, ou não, a imposição de um Estado social, económico e político cada vez mais austeritário”. É curto. Vejamos então o que diz o BE sobre a renegociação (dou o benefício da dúvida de que significando reestruturação), na sequência da auditoria.
O Bloco propõe uma renegociação que estabeleça novos prazos, novas taxas de juro e condições de cumprimento razoáveis, que acompanhem a recuperação económica, e que anule a dívida inexistente. Em vez de ser uma oportunidade de negócio para os credores dos países da periferia, as presentes dificuldades devem mobilizar uma política de cooperação europeia contra a especulação.”
O que é a dívida inexistente? Admite o BE também a redução do montante (“haircut”) de dívida existente? Só das "parcelas ilegítimas" (a dívida odiosa, presumo)? A renegociação é com a “troika” ou com todos os credores, incluindo os bancos portugueses? Quais as fontes alternativas de financiamento?
Mesmo assim, ainda estava em dúvida até ouvir ontem Louçã: “se contassem todas as opiniões que defendem a sensatez da renegociação da dívida o partido já tinha maioria absoluta”. Quais são todas essas opiniões sensatas (!) e identifica-se o BE com elas? Louçã estava a referir-se a Nogueira Leite e a muitos economistas de variados quadrantes que começam a defender a “renegociação”. Imagina-se facilmente que essa renegociação sensata, ao estilo desta recente convergência espúria, não é certamente a que me faz votar no “não”.
Mas não se ficou por aqui. Fiquei sem margem para dúvida sobre a renegociação ao gosto de Louçã (até duvido que seja ao gosto de todo o BE), dando "o exemplo dos portugueses que têm uma dívida de habitação e, desempregados, negociaram com o seu banco a taxa de juro ou o prazo de pagamento, (…) defendendo que renegociar a dívida é simplesmente proteger as pessoas do calote.” E puderam também negociar com o banco o montante da dívida?
De fora, compreendo racionalmente a habilidade eleitoralista de Louçã (que lhe deu problemas na convenção do BE, mas em que ele reincide) de aparecer como bem comportado, razoável, sensato. Mas, com tudo isto, claro que, pela primeira vez em 30 anos, vou votar no PCP.

NOTA - Chamo a atenção para a mesma atitude, de votação num dos partidos do "não", proclamada por Daniel Oliveira no Arrastão, embora a sua escolha seja oposta à minha. O que interessa é o objetivo comum.